¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, maio 31, 2013
 
QUESTÕES DE FÉ:
DEUS E O PONTO G *



A fé, dizem os teólogos, é a atitude interior daquele que crê. O verbo “crer” faz sua primeira aparição em Gênesis, 15,6, quando Deus faz a Abraão uma promessa inverossímil: “Olha agora para o céu, e conta as estrelas, se as podes contar; e acrescentou-lhe: Assim será a tua descendência”. Verdade que Jeová exagerava em sua bíblica retórica, ou talvez desconhecesse as dimensões do universo que criara, afinal se dos filhos de Abraão hoje temos uma idéia mais ou menos precisa de quantos são, das estrelas não temos idéia alguma.

Mas falava de fé: “E creu Abrão no Senhor, e o Senhor imputou-lhe isto como justiça”. Nasci ateu, como nascem todas as crianças. A fé só me foi inculcada mais tarde, através da catequese. Felizmente, para meu conforto interior, logo descobri que Deus só existia em minha cabeça. Verdade que esta certeza em muito antecede minha existência, mas que se vai fazer? Fora o Fulano aquele, ninguém nasce com a ciência infusa.

Se precisei de alguma reflexão para descrer em Deus, no chamado ponto G nunca tive muita fé. Se a idéia de Deus nasceu bem antes de mim, a idéia do ponto G surge bem depois. Sou homem antigo, quando ainda não existiam TPM, transtorno bipolar nem ponto G.

Nasci em 1947 e o tal de ponto erótico só foi aventado em 1950, pelo ginecologista alemão Ernst Gräfenberg, daí o G. Ou seja, antes de meados do século passado ninguém tinha ponto G. Ou, se tinha, jamais havia percebido. Pobre humanidade esta nossa, que durante milênios ignorou um local de prazeres inefáveis. Depois de Gräfenberg, o ponto G virou dogma. E milhares de homens e mulheres saíram em sua busca.

De minha parte, confesso que jamais o encontrei. Por outro lado, jamais o procurei. Tampouco conheci mulher que o tenha encontrado. Ponto G, para mim, faz parte das lendas urbanas. O Journal of Sexual Medicine, do King’s College London, acaba de confirmar minha descrença. A esquiva zona de prazer que existiria em certas mulheres seria um mito, dizem os pesquisadores que tentaram encontrá-la. A pesquisa, que envolveu 1800 mulheres, concluiu que o ponto G é um produto da imaginação das mulheres, encorajado pela imprensa e pelos terapeutas sexuais.

Francesas, indignadas, protestam. Em irado artigo no Libération, sem assinatura mas de óbvia lavra feminina, leio:

“Não gozem mais! Seus orgasmos não passam de auto-sugestão. No 04 de janeiro de 2010, como se fosse necessário começar o ano com um estudo que não serve para nada, uma equipe do King’s College London, composta por Tim Spector (professor de epidemiologia genética) e Andrea Burri (psicóloga de Berna), entregou o resultado da “mais extensa pesquisa jamais feita no mundo sobre o ponto G” (sic), com as seguintes conclusões: o ponto G é um dado totalmente subjetivo”.

A articulista continua derramando sua indignação. Ironiza: que as mulheres que pretendem ter um ponto G teriam imaginação excessiva. Que Andrea Burri inclusive acusou os sexólogos de ter inventado esta zona erógena, tornando assim loucas de inquietação as infelizes que não a tenham encontrado. “É totalmente irresponsável proclamar a existência de uma entidade de cuja existência não se tem prova nenhuma e, isto feito, pressionar as mulheres, que se sentem diminuídas, aleijadas pelo fato de não corresponderem à norma”.

Mutatis mutandis, é o que penso da “existência” de Deus. Com uma diferença: a suposta existência de Deus é muito útil para quem pretende exercer poder sobre seus semelhantes. O ponto G só serve para diminuir mulheres que nele acreditam mas não conseguem achá-lo.

O estudo foi feito entre 1804 mulheres, todas gêmeas, de idade entre 23 a 83 anos. Partindo do princípio de que gêmeas têm um mesmo DNA, os dois pesquisadores tentaram mostrar que não era normal que certas mulheres tivessem um ponto G e não suas irmãs. “Se o ponto G existisse, cada gêmea teria um, não é verdade?” Falso – respondem outros médicos -. As gêmeas geralmente não têm o mesmo parceiro sexual.

Argumento frágil, o destes outros médicos. É como afirmar que o ponto G não está na mulher, mas depende do parceiro. Nos anos 50, Simone de Beauvoir brandiu um argumento que empestou o feminismo durante décadas: não se nasce mulher, torna-se mulher. A sexóloga Beverly Whipple, responsável pela popularização do ponto G em 1981, retoma la Beauvoir: “Ninguém nasce com um ponto G. Encontra-se”.

Como o orgasmo, o prazer propiciado pelo ponto G seria fruto de um treinamento, de uma progressiva educação do corpo e, sobretudo... do azar. “Você pode encontrá-lo tateando. Você pode aumentar sua potência e executá-lo como a um instrumento. É como na loteria. Nem todas as mulheres o têm. Algumas o encontram em idade avançada. Outras têm a sorte de pôr o dedo em cima rapidamente”. O que me lembra o paradoxo do gato de Schrödinger, que existe e não existe ao mesmo tempo.

A articulista prossegue, furiosa: “O corpo humano é tão cambiante que basta às vezes uma carícia inédita, de um(a) novo(a) parceiro(a), de uma mudança do regime alimentar ou de uma maternidade, para colocar bruscamente em tensão partes do corpo que até ali pareciam apenas mediocremente providas de nervos... Cada centímetro de pele esconde tesouros de sensações. Por que então, nestas condições, lançar-se em um estudo assim absurdo que consiste em afirmar que um lugar do corpo não é erógeno enquanto todos os outros o são, potencialmente?”. O que a autora afirma confirma minha intuição inicial. Como Deus, o ponto G está em todas as partes.

Ela insiste: “Para apreciar o vinho, certas pessoas treinam suas papilas a distinguir cada aroma. Para distinguir e memorizar os perfumes, outras participam de concursos de incenso. Aguçamos nosso olfato, como aguçamos outras sensações... provenham elas de mucosas ou não. É provavelmente aqui que falha o estudo britânico. Negando a existência do ponto G, os cientistas afirmam que liberam as mulheres (e os homens) de uma carga muito pesada de portar. Eles se equivocam.

Aqueles e aquelas que se queixam do diktat do prazer seriam bem mais aliviados ao saber que não existem um, mas centenas de pontos G, de receptores capazes de transformar os sons, as carícias, os odores, as palavras, as cores, ou os sinais químicos em tantos outros estímulos afrodisíacos. Por que circunscrever as zonas erógenas, reduzi-las a alguns dados médicos (corpúsculos de Krause, glandes de Skene, que sei eu), com esta maldita mania de objetividade?”.

Já melhorou. Neste sentido, tanto o os olhos como os ouvidos podem ser pontos G. Por que então situá-lo na vagina? É espantoso como as coisas que não existem se parecem. A moça fala em vinho e perfumes. Ora, o vinho tem consistência, tem cor, tem sabor. O perfume tem consistência, tem odor. Deus e o ponto G jamais foram vistos, não têm consistência alguma, cor muito menos, sabor nenhum, odor idem.

“Deus existe, eu O encontrei” – este é o título de um livro no qual André Frossard, editor chefe durante várias décadas do diário Le Figaro, no qual o jornalista conta sua experiência de fé. Certa vez entrou em um lugar onde alguns cristãos estavam reunidos, sendo ele incrédulo e livre-pensador, e saiu um momento mais tarde como cristão convertido. Jamais ouvi de uma mulher: “O ponto G existe, eu o encontrei”. Deus só existe na cabeça dos teólogos. E o ponto G, no bestunto dos sexólogos.

É de espantar o empenho com que o Libération, em plena França do século XXI, se lança em defesa de uma ficção de sexólogos.

Verdade que a imprensa, por mais lúcida que se pretenda, sempre acaba caindo em contos semelhantes. Em 1983, a Veja endossou como verdade científica uma brincadeira de 1º de abril, lançada pela revista inglesa New Science. Tratava-se de uma nova conquista científica, um fruto de carne, derivado da fusão da carne do boi e do tomate, que recebeu o nome de boimate. Se a editoria de ciências de Veja visse esta notícia num jornal brasileiro, evidentemente ficaria com um pé atrás. Para a revista, a experiência dos pesquisadores alemães permitia "sonhar com um tomate do qual já se colha algo parecido com um filé ao molho de tomate. E abre uma nova fronteira científica".

Isso que a New Science dava uma série de pistas para evidenciar a piada: os biólogos Barry McDonald e William Wimpey tinham esses nomes para lembrar as cadeias internacionais de alimentação McDonald´s e Wimpy´s. A Universidade de Hamburgo, palco do "grande fato", foi citada para que pudesse ser cotejada com hambúrguer. Os alertas de nada adiantaram. Como se tratava de uma prestigiosa publicação européia, a Veja embarcou com entusiasmo na piada.

Em 1988, foi a vez de uma prestigiosa revista científica de língua inglesa, a Nature, cair em barriga semelhante. Desta vez, a barriga não decorria de uma piada, mas de um embuste mesmo. Jacques Benveniste, doutor em medicina e diretor de pesquisas do Inserm, na França, criou a exótica teoria da memória da água. Isto é, a água conservaria na memória as moléculas de base com as quais havia sido colocada anteriormente em contato. A quem interessava o crime? Aos homeopatas, que se regozijaram ao supor que finalmente tinham a prova indiscutível de que a homeopatia era ciência. A memória da água fez longa carreira, mobilizou prêmios Nobel e laboratórios na Europa toda. O sóbrio Le Monde caiu como um patinho recém-emplumado, concedendo várias páginas ao embuste.

A ficção da vez agora é outra. Deus morreu, o muro de Berlim já caiu, o comunismo desmoronou, a União Soviética ruiu. O ponto G continua em pé.

* 11/01/2010

quinta-feira, maio 30, 2013
 
VOUS ÊTES BENIE ENTRE
TOUTES LES PEDRITENSES





Quem acha que vivo neste mundo, em muito se engana. Vivo em 2013, é verdade, mas não tenho muita idéia do que ocorre nestes dias. Os jornais me falam de celebridades que vendem milhões de discos, que publicaram dezenas de livros e não tenho idéia de quem sejam.

Ainda há pouco, alguém me falou de um tal de Luan Santana. Tive de recorrer ao Google para saber quem era. Não passa dia sem que eu leia em algum jornal: morreu o escritor fulano de tal. O fulano era então escritor? Só fui saber no dia de sua morte.

Decididamente, vivo fora deste insensato mundo. Há três anos, li nos jornais que São Paulo shows do Black Eyed Peas, Jonas Brothers e Eminem. Ora, eu não tinha – nem tenho hoje - a mínima idéia de quem sejam estes senhores. Me espanta que tenham público em São Paulo.

Vivo fora desse mundo. Lembro que há uns vinte anos, uma sobrinha veio do Rio Grande do Sul para ver um show de um tal de U-2. Que é isso? – perguntei. Ela se escandalizou. Eu, jornalista, não sabia o que era o U-2? Não sabia, não. E não sentia falta alguma por não saber. Parece que eram muito conhecidos no Brasil, já que gentes do país todo acorreram a São Paulo para ver os ditos.

Vivemos tempos medíocres, em que a mídia louva e incensa medíocres que não valem um vintém, como se fossem grandes vultos da história ou da cultura. Basta morrer um drogado do mundo do show business, e no mesmo dia vira herói. Quando morreu Amy Winehouse, leitores me pediram um comentário sobre sua morte. Ora, pouco ou nada sei sobre a moça, esse mundo do show-business nada me diz. Leitor de jornais, claro que tropecei várias vezes com seu nome. Apenas tropecei e segui em frente. Ídolos não me interessam. E suicidas não me comovem.

Cá no Brasil, têm sido celebrado como heróis pobres diabos que sequer sabem gerir as drogas que ingerem. De Janis Joplin a Cazuza. Ainda há pouco, ganhou as manchetes um roqueiro semianalfabeto e drogado, o tal de Lobão, só porque escreveu um livro onde diz um amontoado de besteiras. A louvação da imprensa é unânime quando morre um medíocre famoso. No dia de sua morte, Lobão terá seu panteão.

Vivo longe deste mundo. É o mundo pintado com genialidade por Enrique Discépolo, em Siglo XX, Cambalache, tango que vale por uma obra filosófica.

Que el mundo fue y será una porquería
ya lo sé...
(¡En el quinientos seis
y en el dos mil también!).
Que siempre ha habido chorros,
maquiavelos y estafaos,
contentos y amargaos,
valores y dublé...

¡Hoy resulta que es lo mismo
ser derecho que traidor!...
¡Ignorante, sabio o chorro,
generoso o estafador!
¡Todo es igual!
¡Nada es mejor!
¡Lo mismo un burro
que un gran profesor!

Ainda há pouco, escrevi sobre minha ojeriza aos intelectuais. Quem salva o Brasil – afirmei – é aquele anônimo cidadão que faz seu humilde – ou não tão humilde – trabalho, sem palavras nem intenções grandiloqüentes, mas tratando de fazê-lo da melhor maneira possível. É o padeiro que distribui o pão nosso de cada dia, o garçom que nos serve, o taxista ou motorista que nos conduz. Ou o professor que se sente bem educando, consciente de que está semeando o futuro.

¡Lo mismo un burro que un gran profesor! – dizia Discépolo sobre o século XX. Como não sou o século XX – nem nele vivo, de certa forma – prefiro cultuar meus anônimos professores, que foram indubitavelmente maiores que roqueiros idiotas ou celebridades vazias, mas jamais foram lembrados pela imprensa. Meus heróis são outros. Não é de hoje que louvo os professores que tive em Dom Pedrito. Entre eles, Maria Veiga Miranda, que me ensinou francês e me levou a Paris, muito antes de que lá chegasse.

No Colégio do Patrocínio, Maria instalou uma boutique, que só se podia freqüentar em francês. Era minha aula preferida. Eu não tinha idéia alguma porque aprendia francês naquelas bibocas, mas me agradava falar outra língua. Era como se saísse de mim mesmo. Só entendi o sentido daquele ensino no dia em que defendi uma tese em Paris. Quando entrei na sala Bourjac, no vetusto prédio da Sorbonne, para minha soutennance, meu primeiro pensamento foi para ela. Maria é hoje uma brisa do Sena que paira sobre as margens do Santa Maria. No dia em que Maria partir, Dom Pedrito ficará mais pobre.

Maria é daqueles que seres que, mesmo aposentados, jamais se aposentam. Já perto dos oitenta, todos os dias trota, lépida e faceira, pela Barão de Upacaray até o Horto, onde continua a missão que se atribuiu, semear a cultura francesa em um agreste de idéias. Discépolo tinha razão. Paulo Coelho recebeu a Légion d'Honneur e Maria não.

Hoje é dia de festa para as gerações que passaram pelas mãos de Maria. Dom Pedrito celebra mais de setenta voltas em torno ao sol de um de seus grandes homens. Maria cumpre não mais um ano de vida, mas mais um ano de magistério.

Je vous salue, Marie, pleine de grâces, la Sagesse est avec vous, vous êtes bénie entre toutes les pedritenses. Grosses bises et à un de ces quatres.

quarta-feira, maio 29, 2013
 
LE GLISSEMENT IDÉOLOGIQUE


Mais irritante que o intelectual, só mesmo o intelectual militante. Seja de esquerda, seja de direita, se é que estas palavras ainda têm algum sentido – escrevi ontem. Marco Antonio quer saber:

- Por que diabos, caras do nível do Janer Cristaldo insistem em dizer que não há mais sentido em se falar em "direita e esquerda"?

Ora, quando nos anos 70 a China inaugurou um monumento a Pinochet em Pequim, e Moscou apoiava Idi Amin Dada em Uganda, já não tinha mais sentido falar em direita e esquerda. Quando escrevi sobre isto, um colega de Filosofia, guerrilheiro urbano, veio preocupado me perguntar: de onde tiraste isto?

Eu havia tirado de uma entrevista no Jornal do Brasil, com o chanceler da China. Na verdade, as idéias de esquerda e direita – a esquerda vista como do bem e revolucionária, a direita como encarnação do mal e avessa a todo progresso – há muito vinham desmoronando.

Marco Antonio volta à carga:

- Quem está aproveitando muito bem esse pensamento consagrado é a própria esquerda. Devem adorar ver os poucos seres pensantes que ainda existem alegar que eles não existem e que não faz sentido algum entabular raciocínios dirigidos aos polos. Nesse meio tempo, terreno é tomado e políticas são enfiadas goela abaixo sem que ninguém perceba, afinal, não existe mais esse negócio de esquerda e direita, não é mesmo?

Sei. Quando as esquerdas defendem as falcatruas da direita, as esquerdas continuam sendo esquerdas. Mas não é bem assim. Que o diga Clóvis Rossi. Em crônica de 2005, afirmou: "É um caso de estudo para a ciência política universal. Já escrevi neste espaço uma e outra vez que o PT fez a mais radical e rápida guinada para a direita de que se tem notícia na história partidária do planeta".

Isto é: se o PT se revela corrupto, ele não é mais esquerda. É direita, porque só a direita é corrupta. Mesmo que o PT seja hoje o mesmo desde que nasceu, mesmo que os grandes implicados na corrupção - Genoíno, Mercadante, Zé Dirceu, Lula - sejam seus pais fundadores. Segundo Rossi, o PT guinou para a direita. E por que guinou para a direita? Porque suas falcatruas foram trazidas à tona. Permanecessem submersas, o partido continuaria sendo de esquerda. Quem nasceu de sangue azul, jamais será plebeu.

Se bem que, para as esquerdas, elas existem, sem dúvida alguma. É fácil ouvir: “nós, esquerdistas”. Já a direita é mais pudenda. Jamais ouviremos “nós, da direita”. Neste sentido, ao menos para efeitos de argumentação, cabe falar em direita ou esquerda. Mas seus conceitos de berço há muito se perderam na poeira da História.

Triste sina a da direita no Brasil – escrevi em 2005 –. Em países mais civilizados, ser de direita é apenas não concordar com as propostas da esquerda, direito legítimo de todo cidadão. No Brasil, direita significa portar toda a infâmia do mundo. A afirmação de Clóvis Rossi é o que os franceses chamam de glissement idéologique – escorregão ideológico. O conceito de esquerda sempre muda, à medida em que se corrompe. A direita é a boceta de Pandora, o repositório de todos os males do mundo, inclusive os das esquerdas. Pois quando as esquerdas cometem crimes - ou "erros", como preferem seus líderes - é que não eram de esquerda, mas de direita.

As esquerdas jamais cometem crimes. Segundo Dona Dilma, apenas malfeitos. Para o Tarso Genro, são desvios. O stalinismo, costuma dizer o Genro, foi apenas um desvio do marxismo. Esta é a defesa de muitas das viúvas do Kremlin, para as quais até hoje nenhuma nação atingiu a excelsa condição do comunismo. Por isso afundaram. É preciso, pois, continuar lutando pela Idéia, como se dizia então. Pelas manhãs que cantam.

O PT, partido que nasce do ventre de uma mentira secular, mesmo ao tentar reerguer-se continua mentindo. Ainda em 2005, em sabatina organizada pela Folha de São Paulo, Tarso Genro, então presidente fresquinho do partido, foi buscar situações análogas em outros partidos de centro-esquerda no mundo, como os democratas cristãos italianos e o partido socialista espanhol. "Isso tem algumas explicações que são de natureza histórica e que diz respeito a questões filosóficas, teóricas, profundas e questões relacionadas com responsabilidades individuais", disse o mago das palavras.

Em verdade, não disse nada, sua explicação e explicação nenhuma são a mesma coisa. Mas conseguiu um milagre de retórica: mesmo sem dizer nada, mentiu. As situações análogas às do PT não devem ser buscadas nas sociais-democracias européias, pois nelas não estão nem nunca estiveram as origens de seu partido.

Pergunta a quem interessar possa: Quando os EUA combatem a tirania de Bashar al-Assad e Putin a defende, quem é de direita e quem é esquerda? Quando o PT defende os mensaleiros? É ainda um partido de esquerda ou virou direita? Sou todo ouvidos.

As origens do PT estão nas ideologias que empestaram o século passado, no bolchevismo, maoísmo, trotskismo, polpotismo, no comunismo albanês. Todas elas de esquerda. Os quadros do partido eram egressos destas doutrinas e sempre condenaram as sociais-democracias, às quais atribuíam a pecha de revisionistas. O que está sendo derrubado, hoje, no Brasil, é o muro de Berlim mental das esquerdas tupiniquins, 24 anos após a queda do muro de concreto. A estrela vermelha, hoje cadente no Brasil, nunca foi símbolo de social-democracia alguma, mas insígnia do Exército Soviético. Nos anos 90, foi arrancada de todos os prédios do poder na ex-URSS. Mas permaneceu pregada no peito das sedizentes esquerdas latino-americanas.

O glissement ideológico é muito usual na França, país onde surgiu a expressão. Que é a extrema direita? Extrema direita é um partido de direita que adquiriu projeção e ameaça a hegemonia das ditas esquerdas. É o caso de Le Pen. Quando o Front National começou a despontar nas pesquisas, o líder da direita francesa de repente foi promovido à extrema-direita. Quando não a nazista. O mesmo está acontecendo hoje na França, com as manifestações contra o casamento das neobichas. Quando o movimento adquiriu proporções de sete dígitos, virou imediatamente extremam direita.

Enquanto isso, François Mitterrand até hoje é cultuado como socialista. Há uma história pouco conhecida no Brasil - et pour cause - que gosto de contar. A eleição de Mitterrand é um desses mistérios que confunde qualquer analista político. Ninguém desconhecia sua participação no governo pró-nazista de Vichy, do qual recebeu, na primavera de 43, a Francisque, a mais alta condecoração conferida pelo marechal Pétain. Tampouco era desconhecida sua participação decisiva, como ministro do Interior, na guerra da Argélia e nas torturas praticadas pelo Exército francês.

Defensor de uma Argélia francesa, Mitterrand reprimiu com ferocidade os movimentos insurrecionais. Em setembro de 53, declarou: "Para mim, a manutenção da presença francesa na África do Norte, de Bizerte a Casablanca, é o primeiro imperativo de toda política". Em 54, afirmou na tribuna da Assembléia Nacional: "A rebelião argelina não pode encontrar senão uma forma terminal: a guerra".

Um golpe de imprensa empanava sua trajetória, o falso atentado nas cercanias do Luxembourg. Na noite de 15 de outubro de 59, ao sair da brasserie Lipp, Mitterrand, então senador pela Nièvre, sentiu-se perseguido por um carro. Ele faz um desvio pela avenue de l’Observatoire, pára sua 403, pula uma cerca viva e se joga de bruços na grama. Uma rajada de metralhadora é disparada sobre seu carro.

No dia seguinte, o fato está na primeira página de todos os jornais, do Le Monde ao Humanité. Este último, jornal oficial do PC francês, pede a dissolução das "quadrilhas fascistas". O que não deixa de ser surpreendente. No ano anterior, como candidato às eleições em Nièvre, Mitterrand se apresentava como um baluarte contra o comunismo: "Posso afirmar, sob o controle dos nivernais, que fiz o comunismo recuar neste departamento. Eu lutarei sem fraquejar para economizar à França os horrores de uma ditadura coletivista".

Aos 43 anos, o político ambicioso vira herói. A glória é efêmera. Três dias depois, o jornal Rivarol, entrevista um dos agressores de Mitterrand, que afirma ter sido o próprio Mitterrand que encomendara o atentado, para fazer subir sua cota de popularidade. O desmonte da farsa caiu no vazio. Processado por ultraje à magistratura, após a cassação de sua imunidade parlamentar, Mitterrand será beneficiado por um non-lieu, como também seus "agressores".

Ex-colaborador de um governo pró-nazista, condecorado por este mesmo governo, mentor da guerra na Argélia e responsável pela tortura de milhares de argelinos, anticomunista ferrenho numa França que sempre nutriu simpatias pelo regime soviético, farsante vulgar capaz de forjar um atentado para ganhar votos, nada disto impediu Mitterrand de derrotar Giscard em 81, com 52,22% dos votos expressos, e de eleger-se por mais um setenato em 88. Seu ar bonachão lhe valeu o apodo de Tonton (titio). Seu estilo e suas obras faraônicas mudaram um pouco o simpático apelido. Passou a ser chamado, por obra do Canard Enchainé, de Tontonkhamon. Como faraó viveu e como faraó morreu, dando-se ao luxo de organizar o cerimonial de sua própria morte, dispondo até mesmo a posição, na foto oficial das exéquias, da mulher e da filha de uma amante.

Mas o nazista horrendo da extrema direita continua sendo Le Pen – que nunca foi condecorado pelos nazistas - e agora sua filha, Marine, que assumiu a liderança do Front National. Mitterrand, até hoje, continua sendo cultuado como líder socialista.

É o glissement ideológico em ação. Os conceitos de esquerda e direita mudam conforme o rumo dos ventos. Hoje, são os trotskistas do PSOL e símiles que pretendem empunhar a bandeira da vraie gauche. Até o PT está virando direita. Exceto para os pais fundadores do partido. Que só admitem, no máximo, malfeitos ou desvios.

terça-feira, maio 28, 2013
 
CARTA ABERTA AOS MILITANTES


Mais irritante que o intelectual, só mesmo o intelectual militante. Seja de esquerda, seja de direita, se é que estas palavras ainda têm algum sentido. Por intelectual militante entendo aqueles salvadores de pátria, que lutam para salvar o que pode ser salvo do Brasil.

Ora, direis, nada mais nobre do que salvar a pátria. Até pode ser. Mas fazer disso um ofício ou profissão de fé é vigarice. Estes vigaristas pululam nestes dias de Internet. Inundam as ditas redes sociais denunciando a corrupção, xingando o PT e os petistas, fazendo da desestatização um mantra, pregando o liberalismo e citando Von Mises e Ayn Rand. Não que haja algo reprovável nestas bandeiras ou no culto a profetas do óbvio. Acontece que o militante se esgota no militar, e se sente um herói incompreendido em seu desejo de um mundo melhor.

Sim, eu já fui militante do mundo melhor. Aconteceu nos breves dias em que era católico e pertenci inicialmente à JEC e depois à JUC. Por um mundo melhor – este era nosso lema. Nos reuníamos em congressos pelo país afora e voltávamos inflamados, cheios de um entusiasmo sagrado, dispostos a transformar o homem e o mundo. No fundo, estávamos sendo manipulados por padres e marxistas, que faziam do ativismo intelectual uma profissão.

Eu era dos mais fogosos. Aos quinze, dezesseis anos, era bom de verbo e conquistava platéias. Certa vez, quando nos despedíamos em um congresso em São Paulo, todos cheios de fogo e dispostos a incendiar as cidades para as quais voltávamos, quais um Paulo após a queda do cavalo na estrada de Damasco, uma freirinha abraçou-me chorando: com mil homens como você, salvávamos o mundo.

Que homens? Que homem? Que mundo? Eu era um adolescente fanatizado, que sequer ganhava a própria vida e a única coisa que sabia fazer bem era falar. Não, não me arrependo nem me envergonho daqueles dias. Eu vivia circunstâncias pelas quais devia passar, para chegar um dia ao entendimento.

Não demorou muito para descrer de tudo aquilo em que acreditava e me senti ridículo até o âmago. Ainda bem que vivi bem cedo esse ridículo. Aos vinte, não mais militava e tratava de cuidar de meu jardim. Eram dias em que a adultez costumava chegar em seu devido tempo. Hoje vemos barbados, de trinta e mais anos, agindo como adolescentes entusiasmados com a descoberta de um brinquedinho excitante. O poeta cedo soube disso:

O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.


Derrotismo? Nada disso. Apenas a consciência de que falar e apenas falar não leva a nada. Quem salva o Brasil – ou qualquer país – é aquele anônimo cidadão que faz seu humilde – ou não tão humilde – trabalho, sem palavras nem intenções grandiloqüentes, mas tratando de fazê-lo da melhor maneira possível. É o padeiro que distribui o pão nosso de cada dia, o garçom que nos serve, o taxista ou motorista que nos conduz. Ou o professor que se sente bem educando, consciente de que está semeando o futuro, o engenheiro que constrói prédios e pontes, consciente de que constrói a cidade humana, o médico que faz o que pode para devolver moribundos à vida, o enfermeiro que dá continuidade à ação do médico.

Desde jovem, fui tomado por um vício que hoje considero um tanto perverso, o culto aos escritores e artistas. Quando publiquei meus primeiros rabiscos, em uma entrevista, respondi a uma jornalista, com a arrogância típica dos jovens:

- Escrevo para expulsar meus demônios.

Durante semanas, repousei contente sobre o efeito daquela frase. Que demônios? Eu certamente havia lido o chavão em algum lugar e o repetia como se tivesse descoberto a América. Eu escrevia movido pelo motivo que move todos que escrevem, a vaidade.

Durante muito tempo, acreditei que nos escritores residia a salvação do mundo. Provavelmente influenciado por Sábato, que sempre defendeu uma espécie de clericatura da literatura. Hoje, me sinto mais inclinado a conviver com engenheiros, médicos, cientistas e técnicos. E, que me perdoem os amigos escritores que ainda conservo, me sinto um pouco mal junto a escritores. A verdade é que escritor – hoje no Brasil – é um sofisticado esmoler de favores do erário, um penetra sedento no banquete dos bem aquinhoados.

Quando fazia Filosofia, lembro-me que tínhamos profundo desprezo pelos estudantes de engenharia. Nós é que entendíamos o mundo, os candidatos a engenheiro não passavam de mercenários interessados no vil metal e nos confortos burgueses. Uma menina da Filosofia que fosse aos bailes da Engenharia era vista como uma piranha. Na verdade, a moça já descobrira que com os salvadores do mundo não tinha um futuro brilhante.

Não, não estou traindo a grande arte ou a grande literatura. Entre meus heróis ainda estão Cervantes, Swift, Schliemann, Orwell, Pessoa, Hernández, Mozart, Bizet, Verdi. Mas a vida ensinou-me a admirar aqueles seres que, muitas vezes sem grandes conhecimentos de arte, constroem o mundo em que vivemos.

Há moleques na Internet se julgando heróis porque combatem – julgam combater – a corrupção. Como se para combatê-la bastasse dizer: abaixo a corrupção, morte aos corruptos. Em entrevista que devo publicar em breve, eu respondia a um desses jovens salvadores da pátria:

- Não simpatizo nada com esses protestos em redes sociais e muitos blogs contra a corrupção. De modo geral, é coisa de militante de sofá. Corrupção não é coisa que possa ser combatida – nem mesmo denunciada – por cândidas almas indignadas. Que tem a dizer sobre o Maluf um pobre diabo indignado, se nem a máquina da Justiça consegue colocá-lo atrás das grades?

A maior parte dos protestos contra a corrupção que se vê por aí é coisa de bobalhões que se pretendem heróis. Um cidadão comum pouco ou nada pode fazer para combater a corrupção. Poderá fazer algo se estiver muito próximo do esquema corrupto e puder denunciá-lo com provas e documentos.

Corrupção não é, em princípio, coisa para cidadão comum. É caso para a justiça, para a polícia, para peritos, para jornalismo altamente especializado. Os crimes de lavagem de dinheiro são sofisticados e combatê-los exige uma máquina muito cara e investigadores treinados. A Receita Federal tem enviado auditores fiscais para treinamento nos Estados Unidos. Isto é: se corrupção não é para qualquer um, combatê-la muito menos.

Há quem me julgue um batalhador das boas causas, alguém que luta por um país melhor. Equívoco. Não luto por nada. Apenas constato e me divirto constatando. Jamais direi: abaixo a corrupção. Isto é bandeira dos militantes do óbvio. Mas me diverte, isto sim, desvelar os baixos instintos que se escondem atrás de causas pretensamente nobres.

Escrevo para divertir-me, não para construir mundos melhores. Deixo esta bandeira para os militantes de sofá. Por hoje é só.

segunda-feira, maio 27, 2013
 
SERÁ O LEITOR O
MELHOR PATRÃO?



- Quanto mais reflito, e quanto mais tempo sou editor, mais me convenço de que jornalista não precisa de diploma de jornalista, mas sim de uma boa e sólida formação que começa em casa, passa pela escola básica, e pode até chegar à universidade. Um jornalista precisa de escolas, sim — escolas sem rótulos, que ensinem história, literatura, economia, ciência, filosofia, direito… o universo! Um jornalista precisa aprender a pensar, analisar, questionar, usar a cabeça. Um jornalista precisa ler muitos livros, precisa ser curioso, querer saber sempre o porquê das coisas, todas as coisas. E precisa gostar de contar o que descobre, de contar histórias…

Depoimento de Roberto Civita, criador da Veja e de outras revistas do grupo Abril, que morreu ontem, reproduzido em uma entrevista sua, publicada em 2008, que na verdade é um apanhado de excertos de entrevistas outras dadas ao longo de sua vida. São reflexões de um homem que fez jornalismo por mais de meio século e foi um dos grandes responsáveis pela formatação da opinião nacional. Ao texto citado, nenhuma vírgula a acrescentar. Disse tudo que pode ser dito sobre a definição do que é ser jornalista.

Já uma outra resposta sua comporta uma série de perguntas.

- Quando o senhor sabe que uma publicação está no caminho certo?
- Existem muitas variáveis, mas a infalível é quando os jornalistas de uma revista acreditam que o leitor é o seu verdadeiro patrão. Quando eles trabalham unicamente para atender às necessidades desses leitores, por meio de um jornalismo sério, bem pautado, bem apurado, bem escrito, bem editado — resultando em revistas honestas, bonitas, úteis e surpreendentes.

Neste país inculto e dominado pela televisão, me parece no mínimo arriscado para um jornalista considerar o leitor seu verdadeiro patrão. Para começar, eu diria que boa parte dos leitores de Veja são os petistas, em função das denúncias feitas pela revista sobre as corrupções do PT. Tanto que houve até mesmo um animal que festejou a morte de Civita. Ser patrão da Veja é o sonho de todo petista, não por acaso há horas o partido vem lutando para impor uma censura nacional à imprensa. Ora, ter o PT como patrão é o mesmo que calar todo pensamento contrário ao arbítrio, toda denúncia de corrupção. É sepultar qualquer crítica ao governo e aceitar a ditadura de um partido único.

Por outro lado, leitor não é sinônimo de pessoa inteligente. Uma revista ou jornal inteligente tem muitos leitores burros. A Veja, talvez mais que qualquer órgão da imprensa nacional, sabe disso. E faz acenos a este leitor burro. Sem ir mais longe, as páginas de crítica cinematográfica. Invariavelmente, comentam os blockbusters, os filmes que lotam milhares de salas, e que de arte pouco ou nada têm. São apenas divertissements endereçados a um público embotado pelo atual cinema americano. Leio a Veja todas as semanas e não tenho lembrança de ter visto um filme bom comentado. Abacaxis como Avatar, Batman, Homem de Ferro mereceram longos artigos da revista, que neste momento teve como patrão o espectador embrutecido pelo péssimo cinema.

O mesmo diga-se dos best-sellers. Em setembro passado, a revista dava a capa e mais nada menos que treze páginas a um livro vagabundo, de autoria da britânica E. L. James, intitulado Cinqüenta tons de cinza. Que é o primeiro de uma trilogia girando em torno ao sexo sadomasoquista. Segundo os jornais, vendeu mais que pão quente. Neste momento, o patrão de Veja foi o leitor inculto de best-sellers.

Que a Veja divulgue lixo quando fala de artes, isto virou rotina. Há muito a revista não sugere a seus leitores livro ou filme que preste. Seus redatores preferem comentar o que está vendendo bem. E o que está vendendo bem, quando se fala em cinema ou literatura, normalmente não presta.

É deplorável que Veja – que goza a fama de ser o único partido de oposição no Brasil – na hora de comentar literatura dedique capa e trezes páginas a uma autora de uma mediocridade atroz.

Segundo a revista, em seis semanas mulheres do mundo inteiro devoraram 10 milhões de cópias. 99,9% dos compradores do livro são do sexo feminino. Por ocasião da reportagem, o primeiro volume da trilogia já vendera no Brasil, desde julho, 340 mil exemplares e estava há sete semanas consecutivas na lista dos mais vendidos. Neste momento, o patrão da revista foi a mediocridade dos compradores do livro. Claro que tal fenômeno editorial merece uma reportagem. Mas precisava dar capa e treze páginas?

Pessoalmente, vejo o jornalismo como um ofício não apenas informativo, mas também pedagógico. Cabe ao jornalista transmitir ao leitor mesmo coisas que ele prefere ignorar. Para educá-lo. O jornalista tem de ousar remar contra a correnteza. Isto é: contra o leitor, se for o caso. Bom jornalista é o que não se rende às modas em matéria de pensamento.

Neste sentido, a imprensa toda do século passado foi falha. Durante décadas, constituiu heresia dizer qualquer coisa contra o comunismo. O próprio mundo editorial se absteve de publicar denúncias vitais, porque os jornalistas sabotariam as editoras. Sem ir mais longe: O Homem Revoltado, de Camus, publicado em 1951 na França, só foi editado no Brasil em 1996, sete anos após a queda do Muro, cinco anos após o desmoronamento da União Soviética. Nessa altura, o livro não passava de uma curiosidade histórica.

Foi esta censura – exercida pelo leitor-patrão do século passado – que fez com que o leitor brasileiro, durante décadas, ignorasse os crimes do stalinismo. Que só foram conhecidos entre nós a partir das denúncias de Kruschov, em 56, no XX Congresso do PCUS, apesar de terem sido denunciados desde a década dos 30. Este silêncio durante gerações possibilitou a chegada do PT ao poder. Se alguém ainda tem memória, o PT em sua infância portava bandeiras socialistas. E a universidade brasileira, que deveria ser vanguarda do pensamento, ainda hoje abriga e nutre o pensamento marxista.

Não me parece que o leitor seja o melhor patrão de um jornal. Patrão deve ser aquele jornalista sem diploma, tão bem definido por Civita. Patrão deve ser quem conhece os fatos, quem investiga e tem capacidade analítica. Se o leitor os conhecesse, não precisaria informar-se em jornais. Informa quem conhece. Quem não conhece, lê para informar-se.

Se leitor fosse patrão, o jornalismo nacional não teria nem mesmo a Veja. Que, apesar dos pesares, tem constituído uma das poucas defesas do cidadão ante a corrupção e arbítrio do governo.

domingo, maio 26, 2013
 
SENADOR LAMBE SANDÁLIAS
E VIRA PROFESSOR DE MORAL



Denunciar os crimes do PT – que os petistas chamam de malfeitos – é um imperativo de todo cidadão honesto. Daí a conceder créditos a qualquer idiota que critica o PT vai uma longa distância. Ainda há pouco, o tal de Lobão andou publicando livro em que desanca tanto o partido como do governo como as esquerdas em geral, particularmente Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto. Que de esquerda nada têm e não passam de meros oportunistas. Se amanhã der dinheiro e prestígio ser de direita, viram a biruta na hora. Da noite para o dia, o roqueiro virou herói, merecendo até mesmo elogios do Rodrigo Constantino.

Demonstrando coragem insólita, o analfabeto funcional fez uma crítica letal às esquerdas: “intelectual de esquerda é punheta de pau mole”. Foi incensado por articulistas hostis ao PT. Como se seus impropérios de mau gosto quisessem dizer algo. O roqueiro atroz revela a mesma estupidez do recórter tucanopapista hidrófobo da Veja, quando chama Che Guevara de porco fedorento. Ora, para que servem tais insultos de moleque? No fundo, invalidam a crítica e acabam prestigiando o criticado. Quem quiser criticar as esquerdas, que as critique com propriedade. Palavrões só servem para absolvê-las.

Sobre o corajoso “intelectual” que “ousou” enunciar o óbvio, recebi de um leitor algumas informações a partir de uma entrevista sua, concedida à Playboy em 2000. Pinço alguns itens:

- tentou suicídio com overdose de Rivotril, em 1979, por estar vivendo no que classificou de “cárcere privado”; sua mãe bipolar tentou pelo menos 16 vezes suicídio, mas só foi exitosa em 1984
- tomou “acidentalmente” um coquetel de calmantes e álcool que o deixou em coma por quinze dias
- usou e abusou de maconha, cocaína, heroína e álcool além de promover turnês ensandecidas
- em 1987 foi preso com um papelote de cocaína, 30 gramas de haxixe e 2 gramas de maconha no aeroporto Tom Jobim. Foi processado, julgado e condenado. Ficou preso durante um ano (1988-1989) sem direito a sursis. Uma arbitrariedade, segundo ele
- foi preso cinco vezes por desacato à autoridade, incitação ao uso de drogas e atentado ao pudor e respondeu a apenas 132 processos judiciais (prescritos)
- começou a fazer reportagens com exus, leu toda a doutrina espírita e umbandista. Decidiu fazer um ritual em casa. Colocou um LP de Pink Floyd na vitrola, fez um altarzinho, acendeu umas velas e disse: “Ó, Exu, pode me falar. Aqui tem um ombro amigo, pode vir. Estou aqui para lhe servir. Você deve ser uma figura difícil, rejeitada, utilizada pelas pessoas. Olha, acho isso um absurdo...” Dali a pouco estrebuchou, caiu no chão. Acordou tonto, deitado na cama. Olhou ao redor e percebeu que tudo estava destruído, as gavetas puxadas, uma garrafa de álcool que tinha rasgada no meio. Chamou pela mamãe bipolar. Perguntou-lhe se não tinha ouvido algum barulho. “Barulho seu eu sempre ouço”, respondeu ela. Depois disso, o roqueiro foi fazer eletroencefalograma
- achou que, em certa época, era uma coisa charmosa ficar chocando as pessoas com suas histórias de incesto
- a primeira masturbação foi numa cruz. Teve tesão por Jesus Cristo. Tinha 6 anos de idade e foi numa Sexta-Feira Santa. Foi beijar o corpo de Cristo na igreja, e achou aquela tanguinha uma delícia! Quando chegou ao quarto, botou a cruz no colchão, deitou em cima e se masturbou pela primeira vez. Ao mesmo tempo que era uma coisa meio pervertida, também achou que era lúdico
- e, pior que tudo isto, votou em Lula por duas vezes.

Com esse formidável currículo, o ex-detento, viciado, profanador de imagem religiosa e decadente roqueiro – como diz o leitor – vira lúcido só porque proferiu algumas sandices contra as esquerdas.

Neste país em que até os partidos ditos de oposição não ousam criticar o governo corrupto do PT, a única oposição que se vê no horizonte é aquela feita pela imprensa. Que tem denunciado, antes mesmo da Polícia ou do Ministério Público, os “malfeitos” – como costuma dizer a presidente – do PT. Não fosse a imprensa, maracutaias como o mensalão teriam passado despercebidas pelo próprio Judiciário. Neste sentido, louve-se a Veja, que tem sido a fonte de não poucas denúncias. Mas a revista exagera em seu zelo.

Recentemente, um senador da República, abdicando da dignidade inerente – ou que inerente deveria ser – a um senador, escreveu uma carta cheia de lamúrias ao ex-presidente da República, reclamando de seu malvado partido, o PT, que quer subtrair-lhe a curul no Senado.

Caro presidente Luiz Inácio Lula da Silva,

Sempre teríamos na transparência de nossos atos e na ética da vida pública os valores fundamentais do PT, foi o que muitas vezes ouvi de você. Nesses 33 anos de militância honrei esses valores e objetivos.

Quero lhe transmitir pessoalmente a minha disposição de ser candidato ao Senado em 2014 e naquela casa continuar a honrar o PT. Tenho procurado marcar um encontro pessoal, há meses, mas por alguma razão tem sido sempre adiado. Gostaria de relembrar que, em 2011, quando éramos cinco os pré-candidatos a prefeito de São Paulo, você convocou os demais para dialogarem com você no Instituto Lula para que desistissem em favor de Fernando Haddad. Imagino que tenha avaliado que não precisava conversar comigo.

Há cerca de duas semanas, conforme soube pela imprensa, houve reunião no Instituto Lula, em que estiveram presentes os presidentes nacional e estadual, Rui Falcão e Edinho Silva, outros importantes dirigentes e pelo menos oito prefeitos do PT. Não fui convidado, embora ali se tenha discutido a campanha de 2014, os procedimentos para a escolha do nosso candidato ao governo de São Paulo, ao Senado e possíveis coligações.


E por aí vai. Temendo perder a legenda, o senador lambe as sandálias do nordestino analfabeto. Veja titula:

Em carta a Lula, Suplicy dá sutil lição de moral

Nos planos da cúpula do PT, o senador Eduardo Suplicy foi escolhido para o sacrifício eleitoral. Para viabilizarem uma coligação ampla que permita ao partido disputar o governo de São Paulo em 2014, os petistas planejam entregar a vaga do senador a outra agremiação. Pode ser ao PMDB, ao PSD ou até mesmo ao PR do mensaleiro Valdemar Costa Neto. Feito isso, a menos que mude de partido, Suplicy não poderia disputar sua recondução ao Senado. A estratégia petista prevê, no máximo, a possibilidade de ele concorrer a uma vaga na Câmara dos Deputados. “Ele seria o nosso Tiririca”, conta uma liderança petista. Suplicy identificou a origem do plano e, durante os últimos meses, tentou uma audiência com o ex-presidente Lula para tratar do assunto. Ligou para a secretária, pediu a ajuda de companheiros, enviou recados. Nada. No último dia 6, sem receber nenhuma resposta, o senador foi ao Instituto Lula e entregou uma carta ao ex-presidente. Uma carta cheia de ponderações e desabafos - uma sutil lição de moral.


Que lição de moral? O senador despiu-se de toda dignidade e implorou pela preservação de sua boquinha. Clown de plantão do PT – neste país em que ser palhaço rende milhões de votos, vide Tiririca – Suplicy, o tanso, ainda não percebeu que seu partido acaba de jogá-lo à intempérie. A súplica choramingas de Suplicy o transforma, de repente, em professor de moral.

sábado, maio 25, 2013
 
SOBRE O BOM USO DA
VERDADE NO SOCIALISMO *



Comentando a falta de papel higiênico na Venezuela "bolivariana", me reportei às minhas viagens a países socialistas, antes da queda do Muro e do desmoronamento da União Soviética, onde sempre sofri a falta deste item tão singelo mas tão fundamental para viver civilizadamente. Escrevi ainda que a falta era bem anterior à época em que viajei. Recebi dezenas de mensagens comentando a crônica, como também fartas contribuições ao debate. Entre elas, os depoimentos abaixo de outros viajantes, que mostram que o problema é crônico e inerente ao socialismo.

1. Some Mainly Historical Reports of Toilet Paper Usage in The Soviet Union

From: Harold: a senior British academic

As a member of the NUS delegation to the USSR in the spring of 1954, I remember being bemused by the large cotton-wool pads for use in the bathroom of my suite at the Metropole in Moscow. In the hotels we stayed in elsewhere the toilet paper made no lasting impression, so presumably it was not very different from the hard, shiny Bronco toilet paper then commonly in use in the UK (and at St Antony's College until 1969 when the Bursar was compelled by popular protest to dispose of the huge supply he had bought at a knock-down price and find something less offensive. In the early 1990s, a British livestock dealer who spent most of his time on farms in Ukraine, assured me that the wipe of choice was corn-cobs, after they had been stripped of their corn. I have no first-hand knowledge of how workers deal with the problem, though it was always said that the pages of Pravda were their first choice.

From: Walter: a senior American academic

When I was in Leningrad for ten months, Sept. 1959 - July 1960, toilet paper was extremely difficult to obtain. My strong impression was that in homes that we visited, and in the dormitory where we lived, most Russians used cut up newspaper. In later years supplies of toilet paper improved somewhat, but I doubt if the use of newspaper ended.

From: Jack in Leningrad

On my visit to Leningrad in 1959, I was fortunate enough to visit the apartment of a well-off Russian family. When I made use of the facilities, I was surprised to find cut up pieces of Pravda where a roll should be. I thought it a most excellent use for Pravda.

From: Dimitri

This sounds like an intriguing research question. Anyways, in the good ole Soviet days, newspapers were the way to go even in the "middle class" families. Probably this explains the high circulation of the Soviet press as well as the high awareness of an average individual of the current events. Well, times change and the political literacy of the Russian population is slumping, maybe exactly because of the advent of textless toilet paper. Yes, it actually exists in Russia and people seem to be using it the same way as elsewhere. As to the quality... come on! It's been less than ten years since the transition started!

From: "Inna" who makes an interesting historical contrast between Russia and China

I feel very interesting this discussion. My mother (born in 1914) grew up in Moscow's downtown in a big communalka where lived ex middle class people after October revolution. As she remembers, she had never seen any toilet paper in 20s, 30s and 40s before she came to China (married to my father). What about me, I was shocked in my childhood by these cut up newspapers after coming to Moscow and being used to the toilet paper in China. Maybe it sounds strange, but in China I've never passed a shortage of toilet paper including the time of "cultural revolution" (although it was a kind of very ugly and hard yellow paper which was given for example in Qingcheng prison). I wonder what's the origin of this toilet paper phenomenon?

So my question is: when did the manufacturing of toilet paper begin in Europe and USA? Was there any manufacture of toilet paper in Russia before the October Revolution? I believe that the toilet paper and its manufacturing was a innovation brought by Europeans to China (may be in 20s?)And after that the production has never stopped.

From: Kosta on child labour

Bill, you missed something. Back in USSR there wasn't enough toilet paper produced. I was told by my friends that some lucky ones had connections that gave them access to toilet paper. I remember seeing on the streets people walking with enormous quantities of toilet paper rolls. The lines that people had to stay in to buy it (when rarely it has been sold) were huge -- you'll stand for a couple of hours. o people like my parents and I used newspapers. When I was a kid, it was my work to cut newspapers for my family. Now in cities most can afford to buy toilet paper, but I suspect that some people in villages and even some people in cities live without it.

From: more from Kosta and Bill

Yes kost but the point that an analyst was making was that the situation is worse now. I don't agree do you? he said that although there were shortages in Soviet days--now people cannot afford to buy toilet paper so they don't use it. That is the opposite of my experience. What do you think??

Bill, you are right. Much more people use toilet paper now than before. In other words, a social base of toilet paper consumers is much wider these days than in 1970-s and 1980-s.

From: Willis – an historian in Canada

I suspect that you will acquire a whole roll of responses to your plea for toilet paper intelligence. And soon it will spread to paper napkins, the small triangular size and quite differing quality one often got at a restaurant (but rarely was visible at a stolovaia) seems just as suggestive. But it gets worse. I lived at MGU 1964-66, and recall that my roommate in the second year had a 'preferred' newspaper (Sovetskii sport). Since he was highly interested in athletics, however, that may have affected his scientific judgment.

Does all this sound ripe for a round table panel at the next AAASS? There have been worse uses of our time. Other random thoughts: Soviet trains that travelled into EE/West, by my recollection, were more far more likely to carry toilet paper than the hard cars within the Soiuz. By the way, I still have a partial roll of the gently corrugated toilet paper style if you ever need a visual aid. My great shame is that I allowed a student to make off with my prize visual aid--a sheet that wrapped a packet (not the rolled variety) of toilet paper: I used it to show all the perfection of censorship, since the few lines reporting the factory and number of sheets of course included the zakaz/censor's order/approval number.

Finally (for now), a colleague to this day admits that he is beholden to me: when you lived there for an extended period, you always carried your own. On one occasion I gave mine to a desperate fellow stazher, and he has mentioned that act of kindness often since.

From: Lawrence - a former senior member of the US military

While I do not pretend to have exhaustive knowledge of toilet paper use through the FSU, I can provide you the following insights based on firsthand experience:

1. My first trip to the USSR occurred in 1967, when I studied at LGU (Leningrad State University). We had been warned to either bring our own toilet paper or reconcile ourselves to using makeshift alternatives, since the Soviet product -- when available at all -- resembled waxed paper. The warnings were accurate, except that I would say "single-sheet waxed paper." Routinely, Russians and foreigners resorted to newspaper, a more than fitting use for Pravda. Of course, I am referring here to the men's facilities; I do not know what amenities the women enjoyed. (My guess, based on the paternalism of the society, is that the women fared better than we did and may have actually had something usable.)

2. During much of my military career (1968-95) I dealt with Soviet forces in the field and in garrison. I can confirm to you without hesitation that what troops and officers alike employ in the toilets is recycled newspapers, letters from home, and scrap paper. And naturally, the further into the "sticks" you go, the fewer the amenities. In some special facilities, such as guest houses for senior officers, you can find real, third-rate toilet paper resembling bottom-of-the-line brands occasionally sold in Western supermarkets for a couple of cents per roll. But such "luxuries" represent the exception, not the rule.

3. Naturally, the hotels where foreigners could stay in Moscow and Leningrad had real paper -- my last visit was in 1994, so this information is not current -- but its quality was, as noted above, poor.

4. You mentioned in your JRL piece a colleague from the former GDR, who provided you with insights based on her experiences. I would caution you not take comments on life in the GDR to be directly applicable to the USSR; the differences were great. I spent 3-1/2 years in East Germany in the mid-1980s as part of the US Military Liaison Mission to the Group of Soviet Forces in Germany and came to know East German reality fairly well. In fact, we knew more about the GDR than many East Germans did - not to mention the West Germans, for whom the country might as well have been located on the moon. Just as a chasm separated the living standards in the GDR from those in the FRG, something similar can be said about a comparison between the GDR and USSR. On average, the East Germans lived far better than the Russians -- esp. after Brandt's Ostpolitik, one of the principal goals of which was to ease the burdens of daily life for the Deutsche im Osten. Thus, for instance, Bonn insisted on having the EEU (at the time) treat the GDR as a member of the Common Market for purposes of tariffs and (non-CoCom) trade, meaning that Western consumer goods could enter the GDR in far greater quantities and at lower prices than elsewhere.

From Lindsay: who worked for Progress

My first visit to the USSR in 1969-70 (as a 3rd year undergraduate) involved a whole year away from home working for Progress, the foreign languages publishers, and sharing a flat with a fellow British student, with no access to the Embassy shop -- a rare experience in those days. Getting hold of such defitsitnye items as toilet paper became a near obsession. Once our supplies from the UK ran out (how on earth could one carry a year's supply?!) we searched in vain until we discovered that the place to find the said item was a stationery (kantseliarskii) shop or department. Even then, the quality was not what we were used to in the UK (which in my experience lagged behind countries like the USA and Germany in matters lavatorial). This remained the situation for the next couple of decades. In the Progress offices on Zubovsky Boulevard the toilets were well stocked with cut up paper from galley and page proofs. The translated works of Soviet poets featured for several weeks, but the various editions of works of Lenin in English, which were constantly in production in Progress, were never used for this purpose.

With regard to the present, during visits to Moscow and St Petersburg in autumn 1999 and spring 2000 I found that two- or four-packs of soft toilet tissue (imported) were readily available, for example on market stalls by metro stations, but at 40 roubles plus would be regarded as a luxury by many Russians. The visitor to the new public pay WCs, one of the better manifestations of private enterprise, are expected to tear sheets from a roll before entering a cubicle, no doubt reflecting the fact that business would suffer if clients were allowed a free hand. I'm sure I don't need to elaborate on the often deplorable state of the lavatories in libraries and archives, which is where most of us spend most of our time (in the reading room, I mean). As far as people's homes are concerned, foreign visitors cannot be certain that facilities to hand reflect normal usage. Some Moscow friends actually decorated their bathroom in anticipation of my arrival.

* Texto integral em http://home.wlv.ac.uk/~le1958/t2.htm. Pravda, em russo, significa verdade.

sexta-feira, maio 24, 2013
 
EL PAÍS SE RENDE


Sempre tive um certo fascínio pela Europa, antes mesmo de conhecê-la. Para começar, era o distante, o diferente. E o que está longe sempre nos atrai. O que está perto, sempre se pode deixar para ver depois. Além do mais, havia cidades antigas, neve, montanhas e castelos, coisas que não existiam nas longitudes onde nasci. A Europa também estava nos contos de fada de minha infância.

No ginásio, li sobre os feitos de seus habitantes, desde os filósofos gregos até os cientistas mais contemporâneos. Graças à Maria Miranda, professora de francês, Paris sempre esteve presente em minha adolescência. Em minha primeira visita à Notre Dame ou Torre Eiffel, a sensação foi de déjà vu.

Cheguei ao continente pela primeira vez em 1971. Lisboa foi a primeira cidade européia em que pus os pés. Felizmente cheguei de navio, no Eugenio C, desarmado já há mais de duas décadas. Há uma diferença muito grande em chegar de avião e de barco ou trem em uma cidade. Na primeira hipótese, a cidade nos chega de chofre. De trem, ela vai chegando aos poucos, revelando sua arquitetura com aquele vagar inerente à sensualidade. De navio, ela chega muito - mas muito mesmo - lentamente.

Quando avistei aquela ponta do continente, acho que fui tomado de sensação semelhante a de Cabral ao chegar ao Brasil. O marujo tinha suas dúvidas quanto a existência ou não do Brasil e eu, apesar de todas as evidências, tinha algumas em relação à existência da Europa. Que existia, eu sabia. Mas não tinha muitas esperanças de que um dia chegaria lá. O Eugenio se aproximava da terra e eu não conseguia acreditar que dentro de algumas horas estaria pisando em solo europeu. Só acreditaria quando pusesse os pés no chão. Aos poucos, foi surgindo a ponte sobre o Tejo e o navio começou a balançar na desembocadura do rio.

Quando morei na Suécia, nem tinha noção do que era um imigrante. Fui conhecê-los lá. No total, vivi seis anos no continente, em Estocolmo, Paris e Madri. Nas duas primeiras cidades, eu passeava nas madrugadas com a tranquilidade de quem perambulava na noite em Dom Pedrito. Em Madri já foi um pouco diferente. Cheguei lá em 87 e já não era muito saudável flanar pela Gran Via tarde da noite. Lá, a Baixinha foi brutalmente assaltada por árabes, na centralíssima Calle de Etchegaray, a las cinco en punto de la tarde.

Há mais de dez anos, comentei manchete que me surpreendeu no Aftonbladet:

Stockholmarnas farligaste gator

Ou seja, as ruas mais perigosas de Estocolmo. Ora, quando vivi lá, em 71/72, não havia uma única rua perigosa na cidade. Eu vagava de ilha em ilha, nas noites brancas dos hiperbóreos, sem sensação alguma de perigo. Há alguns anos, o Aftonbladet listava mais de cem ruas perigosas. Que ocorrera de lá para cá? A invasão muçulmana. O mesmo diga-se de Paris. Eu morava no 13º e tive uma namorada no 16º. Nas madrugadas, voltava a pé para casa, cortando a cidade em diagonal, sem sensação alguma de perigo. Dava quase duas horas de passeio noite adentro. Hoje, não ousaria fazer o mesmo.

Paris, desde 2005, tem encontro marcado com o vandalismo a cada réveillon. São centenas de carros queimados, sob o olhar impotente da polícia. Em 2011, o alvo dos vândalos foi Londres. Nestes dias, foi a hora e vez de Estocolmo. Já faz quatro dias que bairros periféricos da cidade ardem em chamas, quando grupos de “jovens”, como dizem os jornais, saem às ruas para botar fogo em containers, carros, quebrar vitrines e enfrentar a polícia a pedradas. A Europa não é mais o que foi. Em breve será a vez de Viena, Madri, Roma, Bruxelas. Nos próximos anos, a epidemia fará parte da normalidade do continente. Quem viver, verá.

O que espanta em tudo isso – e há mais de década venho comentando o fato – é que a imprensa evita nominar os “jovens”. Os responsáveis pela violência são invariavelmente árabes e africanos de segunda, terceira e quarta gerações e, o que é mais significativo, árabes e africanos muçulmanos. Em nome do politicamente correto e do multiculturalismo, os jornais se proíbem de dar nome aos bois.

Enquanto no Brasil há juízes pretendendo censurar até mesmo a Internet, na Europa a imprensa toda se censura a si mesma. Ainda ontem comentei a contenção dos jornais e das autoridades suecas, que só falam em “jovens da periferia”. Agora foi a vez da Espanha. Se os espanhóis, há cinco séculos, não hesitaram um segundo em expulsar “los moros” da península, hoje autoridades e jornalistas não ousam sequer nominá-los. Comentando os episódios de Estocolmo, El País escreve:

Husby, donde empezó todo, es una zona de unos 12.000 habitantes en la que el 85% es inmigrante de primera o segunda generación. La chispa que encendió el fuego saltó allí, a 17 kilómetros al noroeste de Estocolmo, el pasado lunes 14. Un vecino de 69 años murió en su apartamento, abatido a tiros por la policía después de haber amenazado a los agentes con un machete. La tensión fue subiendo a lo largo de la semana hasta que el domingo pasado, entre 50 y 60 jóvenes comenzaron a quemar coches y cuando llegó la policía, se enfrentaron con los agentes lanzándoles piedras.

Imigrantes de primeira e segunda gerações. 50 ou 60 jovens. Que imigrantes? Que jovens? A Suécia, desde os anos 60, foi invadida por imigrantes de todos azimutes. Latinos, eslavos, chineses, hindus e, mais tarde, árabes e africanos. Alguém imagina um brasileiro, chileno, chinês ou indiano incendiando carros em Estocolmo? Não dá para imaginar. A violência é obra de negros e árabes muçulmanos. Desarraigados de sua cultura e sem conseguir integrar-se na cultura que os recebe, reagem com a única linguagem que dominam, a da violência.

Até não muito tempo, a Espanha era um baluarte contra o politicamente correto. Árabes sequer eram chamados de árabes, mas de moros. De repente, não mais que de repente, viraram “jovenes”. A Espanha, acompanhando os demais países europeus, acaba de render-se à invasão dos bárbaros.

Sempre considerei El País como um dos melhores jornais da Europa. É triste ver um jornal honesto e combativo tornar-se conivente com a hipocrisia e entregar-se à sanha de ressentidos. O continente que amei está morrendo. E seus últimos bastiões estão entregando seus donjons ao inimigo.

quinta-feira, maio 23, 2013
 
FSP SE DOBRA À HIPOCRISIA
DA IMPRENSA EUROPÉIA



Leio na Folha de São Paulo de hoje:

Jovens da periferia queimam carros na capital da Suécia

Centenas de jovens da periferia de Estocolmo, capital da Suécia, incendiaram carros, destruíram vitrines de lojas e incendiaram uma escola, uma enfermaria e um centro cultural no quarto e mais violento dia de protestos contra a ação da polícia.

Agentes de segurança prenderam sete suspeitos na capital. Na cidade de Malmö, no sul do país, pelo menos dois carros foram incendiados, de acordo com policiais.

A onda de vandalismo começou no domingo, seis dias depois de operação policial que resultou na morte de um homem de 69 anos no bairro de Husby, em Estocolmo.

Segundo a imprensa sueca, o idoso era um imigrante com problemas psíquicos e estava num apartamento com sua mulher quando foi baleado e morto pelos policiais - a polícia disse que ele era "europeu", mas não especificou sua nacionalidade.


Desde há muito venho denunciando – e suspeito que sou o único a denunciar – a mania politicamente correta de boa parte da imprensa européia de omitir nome, origem e etnia de criminosos quando estes são árabes ou negros. Na França, por exemplo, para identificar os árabes e negros que queimam milhares de carros nos réveillons, os jornais usam um eufemismo divino, les jeunes. Os jovens. Se for cidadão nacional, de longa estirpe e boa cepa, o nome vai para a primeira página dos jornais. Imigrante, jamais. Leio usualmente jornais da Suécia, França, Espanha e Itália. Nunca li alguma determinação escrita sobre este silêncio. A censura é tácita, sem diploma legal algum que a determine. Está no bestunto dos jornalistas.

Na Suécia, a imprensa está proibida de noticiar a cor da pele ou etnia dos agressores. Em 2010, uma sueca de dezoito anos foi violada e torturada por quatro negros muçulmanos, que foram identificados como “dois suecos, um finlandês e um somali”. Ora, eram todos imigrantes originários da Somália.

Alguém ainda lembra dos distúrbios de 2011 no Reino Unido? Certamente não. A memória das gentes já não mais alcança dois anos. Pois em agosto daquele ano, o Time Magazine dizia que nunca tantos incêndios devastaram Londres tão intensamente ao mesmo tempo desde a Segunda Guerra Mundial. Tudo começou com um tumulto no bairro multirracial (atenção à palavrinha) de Tottenham, ao norte da cidade, no sábado passado. O estopim teria sido a morte de Mark Duggan, 29 anos, que tinha quatro filhos e trabalhava como motorista de um serviço alternativo de táxis. Segundo a polícia, ele foi morto após atirar num policial. Segundo a família de Duggan, esta versão é ridícula. Mas as investigações provaram que Duggan estava armado.

Estivesse ou não armado, sua morte não poderia ser pretexto para vandalismo, incêndios e saques. Que se espalharam pelos demais bairros de Londres, como Croydon, Peckham e Lewisham, no sul da cidade. Vários grupos de saqueadores agiam nas ruas de Hackney (leste), Clapham (sul), Camden (norte) e Ealing (oeste). Os distúrbios se esparramaram por outras cidades, como Birmingham, Liverpool e Bristol. Segundo as companhias de seguro, os prejuízos apenas nas três primeiras noites de distúrbios atingiram os cem milhões de libras.

O Serviço de Polícia Metropolitana de Londres descreveu a violência daquela noite como a pior da qual se tem lembrança. Dezesseis mil policiais foram às ruas e fizeram mais de 200 detenções durante a noite, elevando o total para quase 700 desde o início do tumulto. Quarenta e quatro policiais sofreram ferimentos naquela segunda-feira e um policial quebrou vários ossos após um carro ter avançado contra ele.

Na ocasião, li vários jornais da imprensa nossa e internacional, tentando informar-me sobre a bagunça. Em todos, a única informação que encontrei sobre os responsáveis é que eram jovens. Ora, isto é muito vago. Que tipo de jovens? A que países ou etnias pertencem? Não acredito que britânicos de souche saiam a incendiar suas cidades.

No caso das depredações de Estocolmo, a ministra da Justiça da Suécia, Beatrice Ask, tentou acalmar os ânimos: "Nós entendemos por que os moradores de Husby e dos outros subúrbios estão preocupados e furiosos. Exclusão social é a causa de muitos problemas sérios", declarou.

São os moradores de Husby, segundo a ministra. O problema é a exclusão social e não o ódio dos cabeças de toalha aos europeus. A polícia atribuiu os ataques a "gangues" e disse que as operações continuarão. Proibido falar em origem ou etnia dos vândalos.

Lê-se no Dagens Nyheter:

O tumulto começou quando os jovens atearam fogo em carros na Husby, um subúrbio no extremo norte de Estocolmo. Testemunhas afirmam que pelo menos 100 veículos na área estavam em chamas. Outro incêndio ocorreu em uma garagem próxima, resultando na evacuação do prédio. Cerca de 50 moradores foram atendidos e abrigados em ônibus que estavam por perto.

O centro comercial local também foi vandalizado e três policiais ficaram feridos no tumulto. A polícia estima que os distúrbios envolvidos em algum lugar entre 50 e 60 jovens.


Estas queimas de carro se tornarão corriqueiras nas capitais européias. Para a imprensa do continente, dominada pelo politicamente correto, muçulmano agora é sinônimo de jovem. Que os jornais europeus se dobrem ante o Islã até que se entende, há muito o continente vem se rendendo à invasão dos cabeças-de-toalha. Se se entende, não se justifica.

Mas a Folha é um jornal de São Paulo e essa guerra não é nossa. Não precisava fazer papel tão servil.

 
JUÍZA QUER DEVOLVER PASTA
DE DENTE PARA O TUBO



A juíza Camila Castanho Opdebeeck, da 3ª Vara Cível de Indaiatuba (SP), ordenou à Folha de São Paulo e a seu colunista José Simão a retirada imediata de sua coluna de 22 de agosto de 2012 na "Ilustrada" de qualquer forma de veiculação eletrônica. Este é o texto censurado:

"E agora não sei se voto na Verinha Capeta, na Regininha Drag Queen ou na Alzira Kibe Esfiha! Vou votar na Alzira Kibe Esfiha, do PPS! Pra prefeita do Habib’s. Olhando a foto, o kibe e a esfirra dá pra comer numa boa. Já a Alzira..."

Postei o texto no Facebook. Será que a juíza vai proibir a publicação neste blog? E no Facebook? Divulgue para reptar a juíza. Está na hora de mostrar que depois da Internet censura é utopia de neoluditas.

quarta-feira, maio 22, 2013
 
JUIZ MARANHENSE ANULA
EDITAIS RACISTAS DO MINC



Em outubro do ano passado, comentei antecipadamente uma decisão racista de Marta Suplicy, ministra da Cultura. Na ocasião, em comemoração do Dia da Consciência Negra (20 de novembro), a ministra lançou editais para beneficiar apenas produtores e criadores negros. "É para negros serem prestigiados na criação, e não apenas na temática. É para premiar o criador negro, seja como ator, seja como diretor ou como dançarino", disse então a ministra à Folha de São Paulo.

Curiosamente, a decisão foi tomada em reunião em Brasília com a ministra Luiza Bairros, da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Estranha igualdade racial que exclui brancos e mulatos da participação nos editais. Para Nuno Coelho de Alcântara, da Fundação Cultural Palmares, instituição ligada ao MinC para promover e preservar a cultura afro-brasileira, um edital que condicione a seleção à raça do criador ou produtor pode "fomentar o preconceito racial".

Alcântara foi modesto. Pode fomentar o preconceito racial? Não é que possa fomentar. É claro que fomenta o preconceito racial. Como desde há muito vem fomentando – não o preconceito racial, mas o ódio racial – a política de cotas na universidade. Qual branco vai olhar com carinho um negro que lhe roubou a vaga na universidade só porque sua pele é negra?

Nesta segunda-feira, a Justiça Federal do Maranhão suspendeu os editais de Dona Marta, por entender que eles representam uma prática racista. Com um valor total de R$ 9 milhões, os editais foram, até agora, a principal novidade da gestão de Marta Suplicy à frente da pasta, que assumiu há cerca de nove meses prometendo políticas de inclusão.

Os editais suspensos foram: Apoio para Curta-Metragem — Curta Afirmativo: Protagonismo da Juventude Negra na Produção Audiovisual; Prêmio Funarte de Arte Negra; Apoio de Coedição de Livros de Autores Negros; e Apoio a Pesquisadores Negros. O primeiro é de gestão da Secretaria do Audiovisual (SAv) do MinC, o segundo, da Funarte, e os dois últimos, da Fundação Biblioteca Nacional. A afrodescendentada chiou:

— O racismo no Brasil em relação ao negro é uma questão histórica — avalia Antonio Costa Neto, assistente técnico do IARA. — Houve racismo durante a escravidão, posteriormente com a teoria de branquear a população e depois como política pública na educação e também na imigração. Então hoje tentamos desconstruir o racismo através de políticas públicas afirmativas. O magistrado leva em consideração o momento atual, que não admite prática de racismo, mas deve considerar também esses fatos históricos. Se fizermos um recorte racial, há poucos produtores negros com acesso a essas política públicas.

Os negros sempre apelam à escravidão, instituição abolida há mais de século no país, como se até hoje fossem escravos. Da abolição para cá, nunca tivemos, no Brasil, leis proibindo a negros qualquer direito. As chamadas leis Jim Crow, declaradas inconstitucionais pela Suprema Corte americana em 1954, constituíram a partir de 1880 a base legal da discriminação contra negros nos Estados do Sul, proibindo até mesmo um estudante passar um livro escolar a outro que não fosse da mesma raça.

No Alabama, nenhum hospital podia contratar uma enfermeira branca se nele estivesse sendo tratado um negro. As estações de ônibus tinham de ter salas de espera e guichês de bilhetes separados para cada raça. Os ônibus tinham assentos também separados. E os restaurantes deveriam providenciar separações de pelo menos sete pés de altura para negros e brancos.

No Arizona, eram nulos casamento de qualquer pessoa de sangue caucasiano com outras de sangue negro, mongol, malaio ou hindu. Na Florida, proibia-se o casamento de brancos com negros, mesmo descendentes de quarta geração. Neste mesmo Estado, quando um negro compartilhasse por uma noite o mesmo quarto que uma mulher branca, ambos seriam punidos com prisão que não deveria exceder 12 meses e multa até 500 dólares. Na Geórgia, cerveja ou vinho tinham de ser vendidos exclusivamente a brancos ou a negros, mas jamais às duas raças no mesmo local. No Mississipi, mesmo as prisões tinham refeitórios e dormitórios separados para prisioneiros de cada raça. No Texas, cabia ao Estado providenciar escolas para crianças brancas e para negras. As leis Jim Crow explicam a mauvaise conscience ianque, que se traduziu na ação afirmativa.

Nada disso existiu no Brasil no século passado. Que os negros egressos da escravidão tenham tido dificuldades para entrar no mercado de trabalho, entende-se. Tinham escassa ou nenhuma instrução e, de início, o estigma da escravatura ainda imperava. Nada disso ocorre mais. Negro não é impedido de ocupar nenhum cargo e mais: um dos personagens hoje mais celebrado pela imprensa e até mesmo cotado para a Presidência da República é um negro racista, autoritário e desbocado.

Há horas venho afirmando. Os antigos profissionais da luta de classes, ao perderem a antiga bandeira, precisavam de uma nova. Se hoje se tornou obsoleto falar em burguesia e proletariado, cria-se uma cisão entre brancos e negros, homens e mulheres, heterossexuais e homossexuais. Se não existe ódio entre uns e outros, é preciso criá-lo. Luta de classes morta, luta racial posta.

Comentaristas desinformados, que parecem não ler jornais, disseram então que Dona Marta estava oficializando o racismo no Brasil.

Nada disso! O racismo foi oficializado dia 26 de abril daquele ano, seis meses antes dos editais do Minc, quando a suprema corte judiciária do país o legalizou, por unanimidade, no país. Naquela data, o STF revogou, com a tranqüilidade dos justos, o art. 5º da Constituição Federal, segundo o qual todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza. A partir de então, tornou-se legal a prática perversa instituída por várias universidades, de considerar que negros valem mais do que um branco na hora do vestibular. Parafraseando Pessoa: constituições são papéis pintados com tinta. Que podem ser rasgados ao sabor das ideologias.

Os considerandos a favor do racismo são vários. Segundo o ministro Cezar Peluso, “há graves e conhecidas barreiras institucionais do acesso aos negros às fontes da educação”. Como se não houvesse barreiras institucionais também para os brancos. Se o vestibular barra negros, barra também brancos, amarelos, verdes ou azuis. “É preciso desfazer a injustiça histórica de que os negros são vítimas no Brasil”, continuou o ministro. Como se os milhões de brancos que vivem na miséria não fossem vítimas de injustiças históricas.

Segundo a decisão do juiz José Carlos do Vale Madeira, da 5ª Vara Federal do Maranhão, o ministério "não poderia excluir sumariamente as demais etnias" de seus editais e determinou "a imediata sustação de todo e qualquer ato de execução dos concursos que estejam relacionados" a eles.

Ainda segundo a decisão, a criação de editais para criadores e produtores negros "não pode servir de pretexto para a estruturação estatal de guetos culturais, que provoquem, por intermédio de ações com o timbre da exclusividade, o isolamento dos negros, colocando-os em compartimentos segregacionistas".

Finalmente uma decisão sensata oriunda da Justiça, depois que o STF rasgou serenamente a Constituição. O juiz maranhense será devidamente anatematizado como racista. Aliás, já o foi – indiretamente – pela ministra da Cultura. Que deve recorrer. E o recurso cairá forçosamente nas mãos dos senhores ministros que instituíram legalmente o racismo no Brasil no ano passado.

terça-feira, maio 21, 2013
 
PASTANDO NO CAMPUS


As revoluções começam com maiúsculas, continuam com minúsculas e acabam entre aspas, escreveu Ernesto Sábato. É espantoso ver ainda nos dias de hoje – quase um século após a Revolução de 1917, 24 anos após a queda do Muro, 22 anos após o desmoronamento da União Soviética – quem ainda defenda o socialismo. No entanto, aí estão. Devo ser um dos únicos jornalistas no Brasil – se não o único – que leu Panaïti Istrati, o escritor romeno de expressão francesa, que em 1928 viajou pela União Soviética com o escritor cretense Nikos Kazantzakis.

Foram de Kiev a Moscou, de Leningrado a Murmansk, através do Cáucaso e da Armênia. Ambos viam miséria por todo lado. Depois, sozinho, Kazantzakis segue da Sibéria até Vladivostok e Turquistão. O cretense, um deslumbrado que tinha como ídolos figuras tão díspares como Cristo, Lênin e Buda, dizia que não se faz omelete sem quebrar os ovos. Já Istrati, com sua desconfiança inata de camponês, dizia só ver ovos quebrados e nada de omelete.

Em 1929, Istrati publica Vers l’autre flamme, primeira denúncia do stalinismo no Ocidente. A recusa ao novo dogma é tão traumática que, tendo seu livro publicado em Paris, naquele ano, uma segunda edição só surgiria na mesma cidade em 1980. Suas Obras Completas são publicadas pela Gallimard, exceto Vers l’autre flamme, cujos originais levam Romain Rolland, seu padrinho literário em Paris, a aconselhá-lo:

“Isto será uma paulada a toda Rússia. Estas páginas são sagradas, elas devem ser consagradas nos arquivos da Revolução Eterna, em seu Livro de Ouro. Nós lhe estimamos ainda mais e lhe veneramos por tê-las escrito. Mas não as publique jamais”.

Não foram muitos os escritores a intuir que não se estava precisamente ante uma revolução, mas ante uma nova religião. Entre estes, poucos foram tão precisos na denúncia do novo dogma como Nikos Kazantzakis, que acaba abandonando sua teoria da omelete. No relato de sua peregrinação à Rússia — Voyages — Russie —, diz o cretense que pouco a pouco a luz se fazia em seu espírito. Para ele, todos os apóstolos do materialismo davam às questões respostas grosseiras, de uma evidência simplista. Como em todas as religiões, eles buscavam divulgar essas respostas, tentando torná-las compreensíveis para o povo. Kazantzakis reconhece então, na Rússia, a existência de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos e educava como bem entendia milhões de crianças.

Este exército, diz o cretense, possui seu Evangelho, O Capital. Seu profeta, Lênin. E seus apóstolos fanatizados que pregam as Boas Novas a todas as gentes. Possui também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, sua hierarquia, sua liturgia e mesmo a excomunhão. E sobretudo a fé, que lhe assegurava deter a verdade e trazia a resposta definitiva aos problemas da vida.

Não há apenas um Livro — acrescentaríamos —, como também os livros apócrifos. Assim como a Igreja Romana censura os testemunhos gnósticos que não servem à sua ambição de poder, assim censurou-se até mesmo a obra de Marx na finada União Soviética. “Nós somos contemporâneos — diz Kazantzakis — deste grande momento em que nasce uma nova religião”. Albert Camus é outra voz solitária a denunciar o caráter eclesial da nova idéia. O proletariado — diz Camus tentando entender o marxismo — “por suas dores e suas lutas, é o Cristo humano que resgata o pecado coletivo da alienação”.

Sua percepção do caráter religioso do marxismo é continuamente retomada em seus ensaio mais ambicioso, L’Homme Revolté:

“O movimento revolucionário, ao final do século XIX e ao começo do século XX, viveu como os primeiros cristãos, à espera do fim do mundo e da Parusia do Cristo proletário”.

“A revolução russa permanece só, viva contra seu próprio sistema, ainda longe das portas celestes, com um apocalipse a organizar. A Parusia se afasta ainda mais. A fé resta intacta, mas ela se curva sob uma enorme massa de problemas e de descobertas que o marxismo não havia previsto. A nova igreja está de novo diante de Galileu: para conservar a fé, ela vai negar o sol e humilhar o homem livre”.

A nova religião nascera e os intelectuais do Ocidente, os lúcidos entre os lúcidos, caíram como patinhos no engodo. Este é o grande enigma que cerca o fenômeno Stalin: como foi possível que espíritos abertos e generosos da época se tornassem cúmplices e devotos deste formidável assassino? Ou talvez não fossem tão lúcidos, nem tão abertos nem tão generosos, e sim pobres crianças em busca de um novo pai? Não será por acaso que a ladainha mais freqüente entoada a Stalin é a de Paisinho dos Povos.

Desde então, décadas rolaram sob as pontes. Houve os gulags (que datam de 1918, é bom lembrar), as primeiras purgas de 1935, o pacto Stalin/von Ribbentrop, de 1939, a affaire Lyssenko, de 1949, e o XX Congresso do PCUS, em 1956, année-charnière. Interrompido o sonho quiliasta dos intelectuais deste século, o final dos anos 50 assistiu a um congestionamento na estrada de Damasco. Não poucos escritores refizeram ou tentaram refazer suas obras, renegaram livros e suprimiram poemas de suas antologias.

No Brasil, silêncio profundo. Não temos, na história das idéias do país, polêmicas férteis como a de D’Astier de la Vigerie com Albert Camus, as affaires Lyssenko e Kravchenko, os depoimentos de Panaïti Istrati sobre a União Soviética, as reflexões de Arthur Koestler, Ignazio Sillone, Richard Wright, André Gide, Louis Fischer e Stephen Spender em Le Dieu des ténébres.

Os livros citados de Panaïti e Kazantzakis jamais foram publicados no Brasil. O de Camus, que saiu na França em 1951, só foi traduzido entre nós em 1996, quase meio século depois, quando a denúncia do autor já era supérflua. Graças ao stalinismo que grassou subterraneamente na cultura nacional, gerações e gerações ignoraram o que ocorria do outro lado dos Urais.

Intelectuais e professores que fizeram suas carreiras montados no marxismo não ousam afirmar que só escreveram bobagens a vida inteira. A bicicleta precisa continuar andando. Os últimos comunossauros do século ainda pastam nos campi do país.

segunda-feira, maio 20, 2013
 
Ainda sobre consumo:
UM BOM DIA PARA COMPRAR *



Madri, vésperas de Natal. Já não lembro o ano. De repente, tomo consciência de algo trágico: não tenho uma mísera garrafa de vinho no hotel. Desci com a pressa que a situação exigia e tomei o rumo da Puerta del Sol, questão de encontrar uma casa qualquer onde suprir-me.

Melhor ficasse no quarto. Os madrilenhos têm fama de callejeros. Não são pessoas de ficar em casa assistindo televisão e este é um dos encantos de Madri. Mas em certas datas exageram. As ruas estavam tomadas por uma multidão ávida de consumo, lutando ombro a ombro para entrar nas lojas e comprar o que vissem pela frente, fossem perus ou champanhes, queijos ou presuntos, livros ou CDs, enfim, qualquer coisa que estivesse ao alcance da mão e do bolso. É Natal, Cristo nasceu, é preciso comprar.

O consumo nas capitais européias não é coisa de Natal, mas de todos os dias. Havia no entanto uma gula, quase uma histeria, no comportamento dos madrilenhos, que não recordo ter observado em nenhuma outra cidade ou data. Como se o fim dos tempos fosse amanhã e o melhor a fazer fosse desfrutar o hoje. Amarrotado pela multidão, eu remava como podia para ver se salvava meu modesto vinho de cada dia.

À força de braços e empurrões, consegui salvá-lo. Confesso que tais histerias não me fascinam. Não costumo dar presentes no Natal e tampouco os recebo. Ateu, não tenho razão nenhuma para celebrar o nascimento de nenhum deus. E se as tivesse, não seria comprando que o celebraria. Sempre me mantive afastado desta corrida desesperada às lojas em um dia que se deveria reverenciar a pobreza e o desprendimento. Aliás, não gosto de datas. Alegria, a meu ver, não pode ser evento marcado em agenda.

Mas o pior estava por vir. Ao emergir da multidão desvairada, com meu humilde Rioja debaixo do braço, me deparei na rua com uns dez ou doze gatos pingados católicos, empunhando faixas e cartazes berrando frases agressivas contra a fúria consumista dos madrilenhos. Ora, se o que era festa religiosa virou orgia pagã, isto é uma decisão tomada, consciente ou inconscientemente, por cidadãos de um estado laico. Que mais não seja, ao correr dos séculos, a Igreja cobriu com celebrações católicas o que era ritual pagão. Se padres ou fiéis querem celebrar o nascimento de seu deus com frugalidade e recolhimento, que o façam. Disto ninguém os impede. Mas para que estragar a festa de quem sente prazer em consumir?

Quem lê estas linhas e não me conhece, já deve estar concluindo, que além de consumista ferrenho, sou defensor fanático do consumismo. Longe disso. Vivo com muito pouco, guardo distância dos templos de consumo e, até hoje, com mais de meio século de jornada, jamais entrei em um shopping center. Mas que consumo é salutar, isto não se pode negar. Aqueles espanhóis quase brigando a tapas pelo supérfluo, com sua fome desmesurada de comprar, estavam garantindo emprego a operários e camponeses nos mais longínquos rincões do país e do continente.

Um peru ou um presunto, dez garrafas de vinho ou vinte de champanhe, certamente não representarão nada no padrão de vida do trabalhador espanhol ou europeu. Mas quando a histeria natalina multiplica essa demanda por dez, vinte, cem mil ou um milhão, isto faz uma senhora diferença na economia de um país. Minha singela garrafinha terá rendido centavos de peseta - se tanto - a cada um dos muitos operários que mourejaram para extrair o vinho da terra e fazê-lo chegar a meu palato. Mas o furor dos madrilenhos multiplicava esses centavos por milhões. O consumo muda então de figura e transforma-se em elemento constitutivo de bem-estar. Os papa-hóstias que condenavam a alegria dos madriles com seus cartazes inquisitoriais, estavam em verdade lutando contra centenas de milhares de horas de trabalho e por maiores índices de desemprego na Espanha.

Por estas e por outras, vejo com profunda desconfiança a proposta com a qual venho sendo bombardeado via e-mail, a do Buy Nothing Day / No Shop Day. Ou seja, um dia de protesto contra o consumo compulsivo e a desigual distribuição de riquezas no Ocidente, a ser celebrado em fins de novembro na Europa, Estados Unidos, Canadá e Austrália. A iniciativa é de um cidadão canadense, Ted Dave, profissional do ramo da publicidade. O suficiente é suficiente – este é o slogan da campanha. Cansado de comprar e induzir pessoas a comprar o supérfluo todos os dias do ano, ao que tudo indica o publicitário quer fazer penitência e convida o planeta todo a partilhar de seu dia de abstenção. Justifica seu convite empunhando o Human Development Report, segundo o qual 86% das compras para consumo pessoal são feitas por 20% da população. Para o publicitário penitente, soa como pecado que estes 20%, com seus padrões de compra, gerem emprego para milhões de pessoas que garantem este consumo.

Será suficiente o suficiente? Pode ser, mas quem gera riqueza é o supérfluo. Vinho ou champanhe, trufas ou foie gras não constituem exatamente necessidades. No entanto, no dia em que o Ocidente decidir boicotar estes supérfluos, o que vai faltar na mesa de milhões de europeus será o necessário. O socialismo, filho dileto do cristianismo, nasceu desta repulsa católica ao dinheiro e à riqueza. O regime gerou a miséria infamante dos países onde foi implantado, onde nem mesmo o necessário estava ao alcance de todos.

Para mim, que celebro o Buy Nothing Day quase todos os dias do ano, a idéia poderia até soar como simpática. Mas não soa. Mauvaise conscience de publicitário de Primeiro Mundo não me comove. Em todo caso, se vingar o dia de nada comprar, será uma ótima ocasião para comprar algo, sem o atropelo dos consumidores compulsivos.

* 17/09/1999

domingo, maio 19, 2013
 
ÓRFÃOS DE THOREAU


Modas bobas com foros de sabedoria é o que não falta na imprensa. A última parece ser a da penúria como modo de vida. Em artigo para o jornal Valor Econômico, leio sobre um escritor carioca que, criado em um apartamento de 600 metros quadrados na Barra da Tijuca, no Rio, cresceu tendo para si um quarto com mais de 20 metros quadrados. Hoje vive em um apartamento pouco maior do que isso. Nos 22 metros que ocupa, em Copacabana, são poucos os móveis e objetos e, se há um sofá e uma rede, não há espaço para uma cama. Nem gavetas nem armários, exceto um pequeno, de limpeza.

Além de três pares de sapatos, seus pertences são outros três de Havaianas, três calças, uma camisa, 12 camisetas (número aproximado), dois casacos, um blazer, dois jogos de toalhas, dois de cama, alguns utensílios de cozinha, um notebook, um Kindle, um celular e uma câmera digital. Poderia ser uma história de ruína financeira, mas se trata de um fenômeno cada vez mais observável. Castro aderiu a um estilo de vida minimalista.

Confesso que até hoje não entendi o que queira dizer minimalista. Nem ninguém conseguiu explicar-me. A palavra pretende significar tantas coisas que acaba não significando nada. É o mesmo que holística, palavrinha que geralmente vem acoplada a picaretagens. Mas admitamos que minimalista, no caso, tenha o prosaico significado de viver com o mínimo necessário.

Pra começar, o escritor tem algumas posses a mais do que eu, a saber, 12 camisetas, um blazer e dois casacos. Não tenho nenhum destes itens e vivo muito bem. Utensílios de cozinha e celular, os tenho porque herdei da finada. Não como em casa nem utilizo o celular. Quanto a viver sem gavetas, os despojados que me desculpem. As gavetas foram um dos grandes momentos da criatividade humana e viver sem elas é conviver com o caos. Quanto a viver num ap de 22 metros quadrados podendo viver num de 600, sem espaço para uma cama, isto já é estar de mal com o mundo. Como receber uma visita, um amigo, uma amiga, um parente?

E a biblioteca do escritor onde fica? Ou será um escritor tão minimalista que nem biblioteca tem? Ou a terá no Kindle? Mas nem todos os livros que necessitamos têm versão digital. Pelo jeito, o escritor não preserva a memória. Mesmo na era digital, memória ocupa espaço. São os objetos pelos quais temos apreço estético ou valor afetivo, presentes de pessoas queridas, ornamentos que tornam nosso entorno mais aconchegante.

A reportagem opõe esta opção – vá lá! – minimalista ao consumo. “Histórias como a dele se contrapõem a um fenômeno: somos acumuladores. Não é preciso recorrer a casos extremos de pessoas que vivem cercadas pelo próprio lixo. Em um estudo da Universidade da Califórnia, antropólogos submergiram por nove anos na vida de 32 famílias de classe média americanas. Fotografaram cada objeto que entrava nas casas, registrando o atulhamento. Constataram que gerenciar a quantidade de tralhas acumuladas é uma das prioridades de qualquer morador adulto e que há uma curiosa correlação entre a bagunça de ímãs e bilhetes na porta da geladeira e do resto da casa. E a melhor de todas: 75% das garagens estavam tão lotadas de quinquilharias que já não permitiam a entrada dos carros”.

Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Isso de cercar-se de lixo é uma perturbadora doença urbana e já a vi de perto. Em meus dias de Paris, encontrei uma uruguaia, que se pretendia refugiada política. Conversa daqui, conversa dali, ela convidou-me para ir até a sua casa. Casa? - perguntei. Em Paris não há casas. Ela insistiu que morava em uma casa. Paguei para ver.

De fato, era uma casa, mais precisamente um sobrado, situado no centro de uma cour. Mal entrei não acreditei no que via. O lixo infestava todo o térreo, empilhado até a altura dos ombros. Por um estreito corredor em meio à muralha de lixo, chegava-se até a cozinha, onde se abria um espaço de uns dois metros quadrados para uma mesa e duas cadeiras. Ao sentar-me, minha cabeça ficou um pouco abaixo do nível de lixo. Um outro corredor levava até o banheiro.

Por uma escadaria também atulhada de lixo, ela subiu ao primeiro piso para trocar-se. Pediu que eu não subisse: "Aqui está pior". Saí voando daquela casa. É claro que não voltei a revê-la. Se a casa era aquilo, fiquei me perguntando como seria a cabeça da moça. Isto nada tem de novo. Seguidamente os jornais nos falam de pessoas que vivem em meio a um lixo laboriosamente juntado vida afora, e às vezes são mesmo soterradas pela tralha toda.

A reportagem nos fala de Andrew Hyde, escritor e consultor de "startups", que desistiu do apartamento onde acumulava coisas de uma vida toda. Primeiro, reduziu todos os pertences a cem itens. Concluiu: ainda era demais. Em agosto de 2010, pôs à venda quase tudo e ficou com apenas 15 coisas. Desde então, é o máximo de objetos que se permite ter. Descoberto por um radialista, ficou famoso. Aproveitou a notoriedade e, com itens como uma mochila, um par de camisas (veste uma a cada dois dias), um iPhone e uma toalha, viajou por 15 países, inclusive o Brasil no segundo semestre de 2012, reunindo histórias para o livro 15 A Modern Manual - 15 Countries with 15 Things (Um manual moderno - 15 países com 15 coisas").

Por que 15? Por que não 13? Ou 17? Pelo jeito, o escritor estava buscando mídia. Uma vez famoso por sua mania, saiu a viajar pelo mundo. Com 15 coisas, é claro. Mas viajar pelo mundo nada tem de minimalista. Por mais barato que custe, custa bastante. E viajar não é morar. Para viajar, 15 coisas é um conforto.

Valor fala ainda da alemã Heidemarie, que viveu sem dinheiro por 15 anos até ser descoberta pela BBC e virar tema do documentário: aposentada e autora de três livros, ela doa tudo o que ganha para a caridade. "É um processo de anos. Você vai percebendo que precisa de menos coisas. Que não precisa de dez calças, de dez pares de sapatos. Que não precisa ter na estante todos os livros que leu", diz Alex Castro. Ele se preocupa agora em manter o estilo de vida espartano também no mundo digital. "Não guardo filme algum. Sempre que assisto, apago."

É uma idéia. Não é fácil virar tema de documentário da BBC. Ela pode até ter encontrado uma fórmula de viver sem dinheiro, apelando ao escambo ou à troca de serviços por comida ou roupas. Mas o substrato do mundo no qual vive sem dinheiro é justamente o dinheiro. Sem dinheiro, não se produz sequer um grama de comida.

A reportagem cita também o inglês Mark Boyle, ex-dono de duas empresas de comida orgânica, formado em economia, que decidiu, em 2008, que dava para viver sem dinheiro. Na Inglaterra, uma série de artigos para o jornal The Guardian, que o batizou de "o homem sem dinheiro", fez dele uma celebridade. Vive em um trailer velho, que ia ser jogado fora, no Sudoeste da Inglaterra, plantando a própria comida e usando baterias solares para recarregar o celular e o notebook. Cozinha em um forno a lenha com a madeira que colhe na floresta. Depois de um ano da experiência, escreveu um livro, The Moneyless Man: a Year of Freeconomic Living (O homem sem dinheiro: um ano vivendo na economia livre), em que conta como foi a experiência. "Foi difícil nos primeiros dois ou três meses. Tudo era novo para mim, mas, desde então, ficou mais fácil e é o período da vida em que mais me senti livre", diz.

Ao que tudo indica, uma certa imprensa quer transformar indigência em saber viver. Vai ver que os tempos se tornaram bicudos e é preciso valorizar o pouco que se tem. Quando assim escrevo, até pareço um acumulador contumaz. Nada disso. Disponho de bastante espaço para viver, muito menos do que quando vivia no campo, bem entendido. Já pensei em viver em Paris. Até poderia. Mas não teria grana senão para um pequeno studio, onde não caberia nem a quarta parte de minha biblioteca.

Já vivi assim em Paris. Mas não era o projeto de uma vida toda. E tinha juntado apenas uns 500 livros, os demais tinham ficado aqui. O maior obstáculo que sempre me impediu de morar em Paris ou Madri é o preço do metro quadrado. Melhor então viver aqui e passar alguns meses lá. Vivo com pouca coisa, mas não me disponho a separar-me de meus livros. E eles exigem espaço.

Nada de novo sob o sol. Estes pretensos despojados, que buscam a fama sem a alavanca do dinheiro, são em verdade os órfãos contemporâneos de Henry Thoureau, o utopista americano que se dedicava inclusive a confeccionar sua própria roupa. Não passam de malucos pedantes, que pretendem começar de zero, renegando assim todo labor humano que torna esta vida tão breve pelo menos confortável.