¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, abril 30, 2013
 
SOBRE MINHAS OJERIZAS


Pois, Rodrigo, não é que eu vista a roupa de homem comum. Sou um homem comum, inclusive quando leio bons livros e escuto boa música, afinal isto também faz parte da vida do homem comum. Sou homem comum, mas tenho minhas manias. Ou meus princípios, como quisermos.

Minha infância está tomada por Disney. Tenho centenas de horas de leitura de Pato Donald, Mickey, Pateta, Tio Patinhas. Foram revistinhas que me ajudaram no aprendizado da leitura. Aliás, diria que estão na base do aprendizado de todo brasileiro que hoje tenha mais de 60 anos. Ler publicações da Disney quando se é criança nada tem de vergonhoso. Nem mesmo quando adolescente. E mesmo se você, adulto, quiser dar uma repassada nas revistinhas de seus dias de criança, nada demais. Para bom leitor, toda leitura sempre tem sentido. Escrevia há pouco um dos participantes do debate:

- Acredito que uma das qualidades essenciais a um intelectual (ou pelo menos a quem se pretende) seja a capacidade de compreender e refletir sobre as inquietações de seu tempo, bem como ter a sensibilidade necessária para estabelecer relações entre as diferentes manifestações culturais. Quem disse que não é possível escutar ecos de um Goethe ou Kafka em meio às agruras existenciais do Batman ou Hulk?!

Sem dúvida alguma. É o casco da ferradura quando bate na calçada, como dizia Agripino Grieco. São inserções de roteiristas que se pretendem hábeis e querem dar algum verniz de erudição a suas historietas anódinas. Mas Batman ou Hulk não são os foruns adequados para debatermos inquietações de Goethe ou Kafka.

Vou mais longe: claro que se pode fazer uma reflexão inteligente a partir dessas historietas. Bem ou mal, elas refletem idiossincrasias da época. Posso analisar comportamentos da classe média americana a partir do Tio Patinhas ou Pato Donald. Como também a partir dos super-heróis. Ou de qualquer outra historieta ou filme bobo. Já Disneylândia é outra coisa.

Disneylândia é um chamado de consumo, quase um atentado à infância do país. Há escolas que organizam excursões aos parques da Disney e ai da criança que não for. Se sentirá diminuída ante os que foram. Os pais sabem disso e, mesmo que tenham poucas posses, fazem das tripas coração para mandar o rebento aos States. Se você paga cinco ou dez reais por uma revistinha, Disneylândia é mais salgado.

Sim, tenho filha. Poderia morrer chorando, eu jamais a levaria lá. Sou da época em que filhos não mandavam em casa. Se os pais hoje são escravos de seus rebentos, jamais participei nem participo desta filosofia. Ofereceria à minha filha o mundo todo. Jamais a Disneylândia. Isso sem falar em outras manias ianques que abomino. Meus pés jamais pisarão parques temáticos. Há muita coisa linda no mundo fora do roteiro das multidões.

Sou fanzoca de Asterix, que considero literatura e das boas. Em minha biblioteca, ao lado de Tomás de Aquino e Casanova, estão as “obras completas” de Goscinny e Uderzo. Quando em Paris, pensei ir à inauguração do Parc Axterix, em Oise. Pelo que sabia então, até suas ruelas exalavam odores de comida, para estimular o apetite dos visitantes. Recurso besta, mas vá lá. Foi quando soube que era proibido consumir álcool no parque. Querem então que eu, estando na França, coma sem beber vinho? Não fui. Estupidez tem limite e não tenho paciência com coisas estúpidas.

Já viajei por países onde o álcool é proibido. Se é proibido, não serei eu quem desrespeitará a legislação local. Mas na França álcool não é proibido. Enfim, diria que não perdi nada. Literatura é uma coisa e pode ser consumida em casa. Um parque não traduzirá o encanto da literatura.

Desde que me entendo por gente, sou hostil ao que atrai milhões. Inteligência é moeda rara e não existem no mundo milhões de pessoas inteligentes. Daí minha ojeriza a best-sellers e shows que atraem multidões. A multidão máxima que suporto é a de uma sala de ópera. Mais do que isso, espetáculo algum terá minha presença.

Vi outro dia, na televisão, o último Batman. Como o filme foi em prosa e verso cantado, decidi ver o que andam vendo por aí. Filme sem dúvida tecnicamente bem feito, afinal o mercado não pode oferecer qualquer lixo aos consumidores. Mas que ridículo atroz, meu Deus! (Há horas em que viro místico!). Que faz aquele personagem com os músculos do rosto à mostra? Não existem cirurgiões plásticos em Gotham City? O recurso, obviamente, é para chocar o espectador. Resulta ridículo e acaba não chocando ninguém.

Há alguns anos, vi declarações de um produtor americano, explicando por que havia tanta flatulência nos filmes ianques. Dizia que puns fazem adolescentes rir. Como o cinema está sendo dirigido aos jovens, satisfaça-se a estupidez inerente à adolescência. O problema é que barbados buscam tais filmes. Vão ao cinema para rir de flatulências. Pelo jeito, não tiveram adolescência.

Fui um apaixonado pelo cinema. Fiz um ano de curso de cinema na Stockholms Universitet, em cuja cinemateca revi toda a história do cinema mudo. Em meus dias como jornalista na Europa, cobri os festivais de Berlim, Cannes e Cartago. Eram outros tempos, os de Ingmar Bergman, Federico Fellini, Kurosawa, Sam Peckinpah, Costa-Gavras, Buñuel, Visconti. Vivi em uma Porto Alegre que respirava cinema. Sexta-feira, à meia-noite, tínhamos sempre a pré-estréia de algum filme de um cineasta importante. Os sábados eram dominados pela discussão da obra, que percorria a semana toda. Eram filmes que mereciam um debate.

Verdade que também eram os tempos de Godard e Antonioni, cineastas que levaram gerações a ver seus monótonos abacaxis nas salas de cinema. Chatos, mas pelo menos não ridículos como essa safra de blockbusters ianques. Do Godard, fui testemunha de uma gafe genial.

Ocorreu no cine Rex, anos 70, na pré-estréia de Alphaville, de Jean-Luc Godard. O suíço tinha suas idiossincrasias e o público não o entendia muito bem. Em meio ao filme, o detetive Lemmy Caution, interpretado por Eddie Constantin, fuzila alguém com dois tiros na testa. Mais adiante, o fuzilado reaparece, vivo e em plena forma. A platéia estava confusa. Jefferson Barros, crítico então marxista (mais tarde viraria muçulmano. Acontece) , brilhou com sua interpretação. Que não podíamos pensar o cinema godardiano a partir de nossa concepção cronológica de tempo. Que o tempo, para o cineasta, era interior, psicológico, acronológico. Era o tempo de Bergson em a Évolution Créatrice, explorado por Proust em A la Recherche du Temps Perdu e retomado por Joyce, em Ulisses.

A tese durou o que duram as rosas. Quando o filme entrou em cartaz, desvendou-se o mistério: na pré-estréia, o operador havia trocado os rolos. A tese do crítico pode ter tido vida breve. Mas era brilhante, sem dúvida alguma. Longe de mim pretender que alguém pense como penso, ou gostar do que gosto. Cada um com seu cada qual. O que não se admite é qualificar como arte embustes que a indústria de Hollywood produz para conquistar platéias. De apaixonado pelo cinema, virei desiludido com o cinema.

Se um dia atravessei países para ver bons filmes, hoje há anos que não vou em uma sala. Tenho me refugiado no cinema antigo. Revi, nestes dias, Uma arma para Johnny, do Dalton Trumbo, e Freaks, la monstrueuse parade, do Tod Browning. Recomendo aos jovens que curtem blockbusters. É um outro cinema.