¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, abril 21, 2013
 
In memoriam Aníbal Damasceno Ferreira:
UM VIAJANTE A XAVIER DE MAISTRE *



Quem é Aníbal Damasceno Ferreira, o homem que salvou Qorpo Santo do pó das bibliotecas e o trouxe para nosso século? Seu nome, não vamos encontrá-lo nas bibliografias da literatura gaúcha, et pour cause: Aníbal não tem livro algum publicado. Em Quem é quem nas Letras Rio-grandenses, de Faraco & Hickmann, 2ª edição, no lacônico verbete que lhe é conferido falta o essencial: sua contribuição à cultura brasileira e universal, a prospecção e a trazida à luz da obra qorpo­santiana.

Infelizmente — como dizem Faraco & Hickmann — ainda não reu­niu seus trabalhos em livro. Sua atividade literária pública e, vamos dizer assim, diurna, se resume a publicações esparsas, artigos e contos. Autodidata, tem como influências Sterne, Thackeray, Sthendal, Swift, Montaigne, Camões e, cá entre nós, Machado de Assis, Guimarães Rosa e Nelson Rodrigues, o das crônicas, sobretudo. Ou seja, estamos diante de um homem que cultiva o humour, em sua mais nobre acepção. Fora isto, este anônimo pesquisador tem sido o responsável por prospecções bem mais contemporâneas. Não poucos jovens devem sua iniciação literária a seu paciente trabalho de sapa junto aos meios de divulgação gaúchos. Que o levou a procurar Qorpo Santo?

— A singularidade, nada mais que isso!

— Tudo cabe dizer de Qorpo-Santo. Dêem-no como genial ou louco, deve-se, no entanto, ressaltar primeiro a sua essencial qualidade, a qual tem muito maior importância do que quer que se lhe aponte: singula­ridade. Só depois, conforme pode vir a pedir o caso, pronunciem-se teatrólogos e psiquiatrias. Nunca antes. Porque o singular, sob pena de o não ser, é, por excelência, o inconceituável — uma categoria a parte, que resvala às mais argutas especulações.

Constata-se, já pela miúda e direta observação do cotidiano, já por via de eruditas metafísicas colocações, que o singular comove bem. Nada mais se sabe. O resto é silêncio ou hipóteses. Querem uns que seja o singular um efeito poético. Outros, uma forma de humour e uns terceiros, extravagância ou loucura. Falsíssimas conjeturas. Para ser poesia é o singular demasiado gaio — falta-lhe a leveza, o jeito etéreo, o “oomph” e todas aquelas graças honestas haventes na obra de arte. Humour, também não. Humorismo pede sentimento e, mínimo que seja, traz sempre, bem lá no fundo, um nadinha de reflexão. Loucura? De jeito nenhum. Esta constrange, desaponta, choca. Vê-se, portanto, que qualquer definição seria nula rem. Demais, o sentido da singulari­dade está em si mesmo, acima das razões e das sem-razões. Tentar captá-lo é querer vau a pé enxuto no rio de Heráclito. Melhor alvitre, pois, é ir-se a gente nas águas de Bergson.

Aníbal Damasceno pretende pois captar Qorpo Santo sem outros instrumentos que não a intuição. Assim sendo, sem preocupações de ordem conceitual, que seria então a singularidade?

— Ainda que mero artifício de estilo, só para fins de digressão, vamos aceitar que a singularidade ou o singular seja, forçando urna linguagem de feição roseana, “o espantante agradável”, Machado de Assis por certo não estava longe de pensar assim, quando definiu o singularíssimo Arthur de Oliveira como “um saco de espantos”. Do mesmo modo tampouco o está Athos Damasceno Ferreira, que em um de seus livros colocou esse mesmo Arthur ao lado de Qorpo Santo. Agora o que vai espantar, mas não de modo agradável, é o fato de se poder colocar lado a lado, porque singulares, homens e mulheres dís­pares, de todos os tamanhos que, por sua obra, condição e exercício, nada tenham de comum entre si.

- De verdade, em termos de singula­ridade, não seria impertinente meter dentro da mesma caixa tipos como Salvador Dali, Idi Amin Dada, Nelson Rodrigues, Guimarães Rosa, Chacrinha, Jayme Ovale, Neusinha Brizola, Qorpo Santo, Genet, Te­nório Cavalcanti, Ítala Nandi ou Madame de Stäel. Todos esses, inde­pendentemente da míngua ou do proveito com que hajam obrado, dentro ou fora de seu mister, primam antes de tudo por espantarem de um jeito assaz curioso. Constróem a canoa a seu modo, com o número de paus que lhes dá na cabeça, na mais peculiar e nunca vista maneira.

— Parágrafo único: Joaquim Manoel de Macedo, Sílvio Santos, Magalhães Pinto. Agnaldo Rayol, José de Alencar, Margareth Thatcher e o presidente Médici são parceiros de outra caixa.

Damasceno imagina o horror de um acadêmico vendo Guimarães Rosa ao lado de Chacrinha, Madame de Stäel ao lado de Idi Amin Dada. Tenta então mostrar-nos alguns gestos singulares.

— Olhem bem Jayme Ovale, certa madrugada: telefonou a Getúlio Vargas para agradecer-lhe o que, segundo entendia, era um grande benefício — a vida: “Viver é um grande benefício, como não tenho a quem agradecer, agradeço a você”. Ou Lima Barreto, o cineasta. Pon­dere-se esta sua declaração a uma revista da época, quando se refes­telava com a vitória de Cannes: “Sempre odiei a humanidade. Fui feio e pobre, não tive namoradas e não andei de bicicleta, mas me vinguei, porque os caras que tiveram tudo isso não fizeram o Cangaceiro... E eu fiz”. Já Niemeyer vai mais longe e beira a molecagem, mas ainda assim e antes de tudo singular. Contam que depois de terminar a cons­trução de Brasília subiu ao terraço de um edifício e de lá atirou, para baixo, dentro de uma caixa de papelão, uma certa coisa...

- Não menos singular, mas até um pouco trágica, visto o sentimento de frustração ante o irremediável, é a atitude do cidadão inglês, em extremo pontual, todo dado a formalidades e festas de aniversário, que aos amigos sempre se queixava: “Ah! se meus pais tivessem consultado o relógio naquela precisa hora!” Muitas são as piadas que fazem rir. Algumas podem até marcar pela inventividade da forma ou pela sutileza da idéia, mas raras terão a singularidade desta carta que Millôr Fernandes atribuiu a Van Gogh: “Meu querido irmão: como você vive dizendo que eu não lhe dou ouvidos, estou lhe enviando junto a esta...”

— Também do mesmo sagaz Millôr, valendo igual citação nestes pro­pósitos, é aquele estranho lamuriar-se do conhecido Corcunda de Notre Dame: “Está bem, está bem... Eu sei... Mas se não me querem mais, por que não vendem o meu passe para Westminster?”

- Bem ali, pertinho, do outro lado do Canal da Mancha, por muitos séculos hão de viger dois casos. Um, o do impertinente polido rapaz que figurou de terrorista durante o real desfile, alvejando sua Majestade Britânica com balas de festim; e o outro, o do general que à sombra da mesma excelsa Coroa fez-se proclamar Lord Protetor da República. (Dar-se-á que Geografia e singularidade....)

Onde, então, esta singularidade em Qorpo Santo?

- Em tudo. Nos versos de marcada feição surrealista com que assus­tou a família e os intelectuais da época “Dei um tiro de pólvora e cobri os anjos de letras”; no retrato que tirou diante do mapa-mundi, com um globo terrestre na mão; na estranhíssima idéia de fazer um exército composto só de mulheres grávidas; no anúncio luminoso que bolou para enfeitar o frontispício de sua loja, colocando velas acesas dentro de uma caixa de vidro; na mania de entrar e sair de casa pela janela; nas reformas que pretendia fazer, do código civil, da constituição e da gramática portuguesa; no estrambótico do nome e — talvez a sua maior insolência — nestes versos em que, para perplexidade da Província, advertiu uma baronesa da sociedade local:

“Tenho um umbigo
Bem retovado
De couro rapado
De ponta aguda
Que põe muda
Qualquer mulher
Que mete a colher
Não sei aonde”

Paradoxalmente, todas essas extravagâncias que indispuseram Qorpo Santo com a intelectualidade gaúcha por mais de um século — e que mais tarde levariam Guilhermino César a nem sequer mencionar-lhe o nome na sua História da Literatura do Rio Grande do Sul — é que fizeram Damasceno se apaixonar pelo dramaturgo de Triunfo, mesmo sem conhecer seus livros. Quando encontrou estes, depois de andar seca e meca, a paixão foi ainda maior, pois já no primeiro contato com os textos logo percebeu que tinha diante de si uma individualidade absolutamente singular, que em nada se parecia com os beletristas contemporâneos.

— Essa veia de bizarro que outra coisa não é senão um prestigioso sinal de singularidade, anima por vezes a obra e a vida dos grandes. Xavier de Maistre viajou ao redor do quarto. Swift, pelo jornal, ensinava a fritar crianças na banha. Nelson Rodngues era fascinado pelas dores físicas e adorava escarradeiras. Já bem de vida, com o bolso cheio, para compensar os tempos de pobreza, em vez de gastar em coisas suntuá­rias, esbanjava andando de táxi. Quando vinha de jantar no Nino’s, ia para a cozinha comer pão com ovo.

— E quem não se lembra do aborto de Virgília, cujo embrião pereceu naquele ponto em que a cara de La Place não se distinguia d uma tartaruga? O leitor de Borges, por sua vez, sempre terá presente aquele sinistro Funes, vítima da boa memória, que levou exatamente vinte e quatro horas recordando o dia anterior. Mas será em Guimarães Rosa — o mais singular de todos — que estes exemplos abundarão. Abra-se, ao acaso, um exemplar de Tutaméia: “Tsing-Lao prosperou, teve e fez sua chácara pessoal (...) Morava, porém, era onde, em si, no cujo caber de caramujo, ensinado a ser, sua pólvora bem inventada”. Ou ainda: em defendida distância dali morava vi uma moça, Lindalice no fino chamar-se”. Ou mesmo: “O trágico não vem a conta-gotas”.

Mas o descobridor de Jozé Joaquim de Campos Leão não se recusa a ver outro lado da questão, aquele pelo qual o teatrólogo é valorizado.

— Deixado de parte esse aspecto da excentricidade, que é o que mais me fascina em Q.S., há também o lado “rigorosamente teatral e literário”, que tanto preocupa os profissionais da crítica. É claro, analisada formalmente, com rigor, a partir de uma teoria da literatura, a fortuna qorpo-santense, toma uma dimensão e um significado que transcendem isso que eu, caprichosamente, chamo de singularidade... ainda assim prefiro o diletantismo da crítica impressionista.

— O bem grave é que a percepção do singular requer também singularidade e este dom, infelizmente, nem sempre orna o espírito das pessoas comuns, lúcidas-sensatas, cuja mente se compraz naquela coerência bonita que rege e concerta as coisas conchavadas e certinhas. A tais pessoas, sabe-lhes mal o não habitual, o inusitado, o insólito. É de ver-se o horror com que torcem o nariz quando lhes surge diante dos olhos algo não previsto, dentro dos limites do normal ululante. Não é de estranhar, portanto, que os singulares com elas vivam em eterna birra e turra. Swift, para muitos, foi apenas um grosseiro ogre. Laurence Sterne, um palhaço charlatão. Nelson Rodrigues, um tarado. Salvador Dali, um mesquinho mago de feira. O estilo barroco, por exemplo, que marca um período de ouro na História das Artes, foi visto pela maioria dos coevos como algo pretensioso e estapafúrdio, tanto que o nome “barroco”, ao designar os adeptos da novidade, valia por uma achincalhação.

Até na Inglaterra, onde os nobres súditos são dados ao culto da excentricidade e da extravagância, notam-se às vezes restrições à singularidade. Pois não foi um escândalo quando alguns ímpares pares, no Parlamento, em discursos inflamados, ameaçaram devolver suas medalhas só porque Sua Majestade resolvera condecorar os singularíssimos Beatles? Em tempos que já lá vão foi ainda pior. A reserva que hoje, por amenas e polidas maneiras se faz aos introdutores de novidades, tinha antes um caráter de execração. Era dar sérios indícios de má índole ousar alguém a reforma do que quer que fosse. Leia-se este lugar de Guimarães Rosa: “Originariamente, insolência designaria apenas: sin­gularidade, coisa ou atitude desacostumada, insólita; mas como a no­vidade sempre agride, daí a evolução semântica para: arrogância, atre­vimento, atitude desaforada, petulância, grosseria”.

— Calcule-se então o que não deve ter passado o pobre Qorpo Santo, nesta mui leal e valerosa cidade de Porto Alegre, capital da Pro­víncia de São Pedro do Rio Grande do Sul, há cem anos! O infeliz só podia ter o fim que teve: no hospício.

Como vê Aníbal Damasceno a influência de Qorpo Santo sobre sua época e sobre o teatro contemporâneo?

— Acho que Qorpo Santo, pelo fato de ter vivido à margem, sem­pre segregado, naquelas condições que sabemos, com fama de louco, hostilizado por todo mundo, inclusive, talvez, pela família e pelos ami­gos, dificilmente poderia ter exercido qualquer influência sobre a socie­dade de seu tempo. Não há informação de que suas peças tenham sido encenadas e se foram, é quase certo que não agradaram. Que vá influir no teatro que se faz atualmente também é improvável. A dramaturgia evoluiu muito. As propostas que ele trouxe, embora revolucionárias na época, hoje não constituem mais nenhuma novidade e já têm outras for­mulações. Mas isso, em absoluto não diminui a grandeza de seu legado, onde vejo dois fatos transcendentes que sempre se impõem à meditação: uma obra de arte que vingou e glória póstuma.

Esta incompreensão pelos contemporâneos, este desprezo pelo talen­to — ou, enfim, pela singularidade — é o que mais comove Aníbal Damasceno no caso Qorpo Santo.

— O inditoso mestre-escola arrastou penosa existência por estes pagos sem jamais encontrar quem lhe apresentasse protestos de elevada estima e distinta consideração. Intelectuais de boa ou má cepa, plebe, crianças, todo mundo sempre o teve por rematado louco de se atar. Sobre o que ele fez, disse ou escreveu, nunca uma palavra que não fosse de ironia ou reproche. E assim veio sendo até há alguns anos, quando a imprensa nacional, passou a anunciá-lo como a maior descoberta da dramaturgia brasileira. E que de galantes apelidos não o cobriram? O Jarry brasileiro, o Ionesco gaúcho, o Genial, o Sensacional, o Profeta, etc., etc.

Que Qorpo Santo seja louco ou não, Damasceno crê que isso nada subtrai ou acrescenta à sua obra. O que importa a sanidade mental de um artista — pergunta-se — se a sua obra, de um jeito ou de outro, sempre diz alguma coisa?

— Nada. O teatro de Qorpo Santo tem, pois, de ser visto apenas como hoje o podemos ter, no palco ou no texto, absolutamente a parte das circunstâncias que cercaram a vida e a pessoa de seu autor. E mesmo o que daí se viesse a dizer, pelo menos para mim, deve ficar para depois, pois nesse extraordinário dramaturgo, tudo — seus defeitos e vir­tudes — hão de ser sempre meros aspectos de sua singularidade.

* Entrevista publicada em dezembro de 1983, na revista Travessia, do Curso de Letras da Universidade Federal de Santa Catarina. A foto é de Marcos Nagelstein, da Agência RBS