¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, março 29, 2013
 
MINHAS FONTES DE RENDA


Soube por um leitor que o Astrólogo – que não sabemos de que vive nos Estados Unidos – quer saber do que vivemos, eu e o Rodrigo Constantino. Quanto ao Rodrigo, pouco ou nada sei de sua vida, senão que é economista, alimenta um blog e publicou um livro – ou mais, talvez. Quanto a mim, minhas fontes de renda são mais que conhecidas. Há controvérsias, mas em todas um fundo de verdade. Como um pouco de mistério não faz mal a ninguém, prefiro não as dirimir.

Na universidade, anos 60, para custear meus estudos, segundo boa parte de meus colegas – em sua maioria comunistas e trotskistas – eu prestava serviços ao DOPS gaúcho. O que me fez perder não poucas mulheres. Lembro que, na época, um episódio fez folclore em Porto Alegre. Estava com uma árdega jornalista debaixo de um chuveiro (vínhamos da praia), ambos nus, quando ela me repeliu suavemente com os braços: "Estou com vontade, mas me desculpa. Não combinamos política e ideologicamente". Se quéis, quéis, se não quéis, diz – como dizem os catarinas. Não insisti. Assim eram aqueles anos e fiquei a ver navios.

Finda a universidade, fui para Estocolmo. Minha camuflagem era a de jovem imigrante em busca de trabalho. Mas jantava à luz de velas nas caves centenárias do Fem Små Hus. Na época, a Suécia constituía um dos locais de asilo preferidos pelos comunistas brasileiros, que comunista que se preze não é maluco a ponto de pedir asilo em Cuba ou Moscou. Em 71, assistindo uma palestra de um guerilheiro urbano, nos salões da ABF, ouvi gritos de vitória como "A revolução é amanhã", "O povo está nas ruas", "O país está pronto para explodir". Da platéia, à guisa de provocação, enviei um bilhetinho ao palestrante. Que, de fato, o povo estava nas ruas... comemorando a vitória do Brasil na Copa do Mundo. Perguntava se ele não se pejava de estar viajando pela Suécia, hospedado em hotéis cinco estrelas, paparicado como herói pelas louras nórdicas, enquanto seus companheiros de luta sofriam tortura e prisão no Brasil.

Eu escrevera em sueco. (Meus superiores financiaram um curso intensivo da língua). Meu bilhete passava de mão em mão, como brasa quente, e nenhum dos participantes da mesa ousava traduzi-lo. Como me pareceu que não iam lê-lo, acabei abandonando a palestra. Em boa hora. Meu bilhete acabou sendo lido e, se eu lá estivesse, talvez não fosse linchado pelos bravos suecos, mas certamente passaria por maus momentos. De agente do DOPS, fui imediatamente promovido a agente do SNI, pago pela ditadura militar para vigiar os revolucionários no exílio.

Em 77, após ter percorrido toda a Europa, fiquei quatro anos em Paris. Nova e imediata promoção. Agora trabalhava para a CIA. Como era regiamente pago, me entreguei à libidinagem e à bona-xira. Belas mulheres, cuisine du terroir e muito vinho no Tour d'Argent, Maxim's, Bofinger, Brasserie Lipp, Le Grand Véfour, Select Latin, Julien, Train Bleu, Au Pied de Cochon. Minhas funções haviam se multiplicado, passei a monitorar a diáspora latino-americana. Expandi meu campo de ação e passei a vigiar adoráveis russas, polacas e iugoslavas.Permaneci nesta função até o final dos 80, tendo sido designado para Madri em 86, graças a meu domínio do espanhol. Comme d’habitude, la haute cuisine: Lhardy, Sobrino de Botín, El Oriente, Gijón, El Espejo.

Com a queda do Muro, não vi muito futuro na CIA. Como sói acontecer nesse universo, informação é bem paga de qualquer lado. Segui o caminho de Kim Philby. Entrei em contato com agentes do Komitet Gosudarstvennoi Bezopasnosti – mais popularmente conhecido como KGB – e repassei dossiês do Ocidente aos camaradas soviéticos. Nunca imaginei que meus estudos de russo na PUC de Porto Alegre, no final dos 60, com o saudoso professor Sergei Zhukov, me seriam de tanta valia. Com a dissolução da URSS e o fim da KGB em 91, continuei trabalhando normalmente no FBS.

A profissão é arriscada e tensa, mas tem suas compensações. Foram dias de muitas viagens. Toda missão, todo contato, precisa ser camuflado. Uns adotam o disfarce de homens de negócios, outros de ornitólogos ou missionários. Adotei o mais confortável, o de turista. Melhor ainda, de turista milionário. Uma viagem à Rússia significava um magnífico roteiro pelos fjordes noruegueses, Estocolmo, cruzeiros pelo Báltico, Helsinqui e, finalmente, um discreto pulo a São Petersburgo. Freqüentei bons restaurantes, como o Literaturnaia Café e o Nicolai. Apesar de suntuosos, em termos de Europa não podem ser considerados caros, por 20 dólares por cabeça se comia e se bebia a gosto. Mas lá não havia um único russo como cliente, apenas turistas. Um almoço e lá se vai o salário mensal do coitado. A menos que seja, é claro, um alto capo das máfias russas, meus alvos de interesse.

Da mesma forma, em outras missões, fiz insuspeitas visitas às ilhas gregas e canárias. Para infiltrar-me nos círculos de Miguel Arraes, na Argélia, percorri por quinze dias as montanhas de El Hogar, para só depois chegar a Zeralda. Em minhas missões no Leste Europeu, percorri primeiro Alemanha e Dinamarca, só então visitei meus alvos, Praga e Budapest. Em Copenhague, freqüentava o Moma. Não que tais resturantes de nouveaux riches sejam meus diletos. Camouflage oblige. Em Pest, meu aparelho era o soberbo Boscolo, que abriga o Café New York.

De Praga, para dar mais verossimilhança a meu papel de turista, fiz uma estação de águas em Karlovy Vary, hospedado no suntuoso Grandhotel Pupp. Quem acha que os requintados ambientes dos filmes de James Bond são ficção desconhece nossos ambientes de trabalho. É assim mesmo.

Mas tudo que é bom dura pouco, dizem as gentes. Com o fim da Guerra Fria, a dolce vita acabou de vez. Como comunismo e droga estão sempre interligados, em meus dias de Paris tive fartos dados sobre Cuba e Bolívia. Marxismo é breve, a droga é eterna. Neste meu merencório climatério, forneço informações para um cartel de Medellín.

Voilà la source de mes revenus. Saudades dos travosos vinhos do Leste, da slivovica e do becherovka.