¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, janeiro 13, 2013
 
PAUTAS PARA O
CORRESPONDENTE
XIITA EM TEERÃ



Em setembro passado, escrevi um artigo na Folha de São Paulo, intitulado “A morte da Europa que amo” (http://migre.me/cN8sA), no qual afirmava na linha fina:

Desde Rushdie, o islã crê que o mundo está sob sua jurisdição. Na Europa, imigrantes trocam a lei local pela sharia. Não viverei para ver a 'Eurábia', ainda bem

E concluía:

- Como boi que ruma ao matadouro, a Europa está se rendendo às aiatolices de fanáticos que ainda vivem na Idade Média. Já se fala em uma "Eurábia" daqui a 50 anos. Ainda bem que não estarei lá para testemunhar a morte de uma cultura que tanto amo. No dia seguinte, recebi via Facebook, este lapidar comentário de Samy Adghirni, o correspondente muçulmano da Folha em Teerã:

- Islamofobia, ou o racismo moderno socialmente aceito.

Não é a primeira vez que sou acusado de racista. Islamofobia é o mais recente insulto criado pelas esquerdas para substituir os antigos palavrões ideológicos, hoje um tanto fora de época. Já fui reacionário, imperialista, direitista, hoje sou islamófobo. Há também quem me acuse de eurocêntrico. O que dá mais ou menos no mesmo.

A Folha mandou para Teerã um jornalista de origem árabe, muçulmano e xiita, que em razão de sua crença transcreve press releases de Ahmadnejad e louva os encantos turísticos do Irã, sem jamais enfrentar de cara os horrores de uma ditadura teocrática. Adghirni jamais escreverá esta singela expressão: o ditador Ahmadnejad.

Para Samy, o ditador Ahmadnejad é “o presidente Ahmadnejad”. Ou, à la limite, “Mahmoud Ahmadnejad”. Jamais ditador. Ditador é o Bashar al Assad, da Síria. Ou Kadafi. Para Samy, "não há força capaz de tomar conta da Líbia caso o ditador Muammar Gaddafi deixe o poder". Ahmadnejad continua sendo presidente. Em resposta ao correspondente xiita, escrevi neste blog:

- Entendo as dificuldades de um correspondente internacional, sediado em um país cuja língua desconhece, com dificuldades de acesso à Internet e escrevendo sob a censura de uma ditadura. É inclusive o caso de se perguntar: se desconhece a língua do país que cobre e se não tem liberdade de escrever o que bem entende, que está fazendo o correspondente lá? Enfim, as ditaduras são pródigas em press releases, e algo sempre se pode escrever.

E sugeri ao correspondente algumas pautas:

- Seus leitores esperam mais que a reprodução de press releases, Samy. Há instituições interessantes na cultura do país onde você vive, praticamente desconhecidas entre nós. Poucos sabem, cá no Brasil, que uma mulher não pode andar na rua acompanhada de um homem que não seja seu parente. Se anda com um namorado, não faltará policial para pedir documentos aos dois. Poucos sabem que no Irã uma mulher não pode olhar um homem nos olhos. Você, jornalista que se criou em sociedade onde qualquer um anda com quem bem entende e olha nos olhos de quem quiser, você não nos contou nada disso, Samy.

- Nem todos os leitores sabem que, no Irã, os homossexuais são condenados à morte. Jamais o vi condenar esse atentado ao direito de cada um exercer a sexualidade que bem entender. Em nosso atrasado continente, salvo alguma ilhota da América Central, homossexualismo há muito deixou de ser crime. Neste ano da graça, a punição com morte só ocorre no Irã e quatro países árabes. No país dos aiatolás, com uma curiosa peculiaridade. Se homossexualismo é proibido e punido com morte, trocar de sexo é inclusive incentivado pelo Estado. A medida foi avalizada pelo revolucionário aiatolá Khomeini.

- Não ouse, no Irã contemporâneo, travestir-se. Macho é macho e fêmea é fêmea. Homem não pode usar chador, nem mulher pode usar vestes masculinas. Mas os sábios aiatolás lhes permitem trocar de sexo. Feita a cirurgia, o homem passa a usar chador. (Nada de vestir-se despudoradamente à ocidental, é claro). Mas atenção: não volte a usar vestes masculinas. Trate de renovar o guarda-roupa. Usar suas antigas roupas agora é crime. Em verdade, a mudança de sexo não é exatamente uma permissão. E sim uma imposição. Se você, homem, gosta de homem, trate logo de cortar o que o identifica como homem e transforme-se em mulher. Só então poderá ter relações com homens.

- Ou vice-versa. Se você é mulher e gosta de mulher, trate de fechar essa fenda obscena e construa um pênis, ainda que discreto. Antes da cirurgia, não ouse desfilar pelas ruas sua futura condição. A menos que porte consigo um documento provando que a cirurgia foi permitida. No entanto, Samy, como correspondente, você nos subtraiu esta curiosa característica da atual cultura persa.

Escrevi isto em 27 de setembro do ano passado. Hoje, três meses e meio depois, o correspondente xiita houve por bem assumir minha pauta. E publica na Folha reportagem intitulada “Por um Irã sem gays”, a qual tem como linha fina:

Com a bênção dos aiatolás, governo do Irã incentiva e subsidia cirurgias de mudança de sexo em nome de manter o país 'livre do homossexualismo'

Antes tarde do que nunca. Estas cirurgias existem desde 1984, quando o aiatolá Ruhollah Khomeini emitiu um decreto tornando o procedimento lícito. E persistiram após sua morte, em 1989, como observa o jornalista. Que só agora, em 2013, comenta o assunto, após pelo menos dois anos como correspondente em Teerã.

Comenta mais não muito. Samy esqueceu de dizer – ou propositadamente omitiu – que triste é a sina dos transexuais iranianos. Rejeitados pela família e pelo mercado de trabalho, têm de buscar na prostituição o seu sustento. Os aiatolás estão fornecendo carne para o mercado de carne humana. Isto o correspondente xiita não conta.

Falta ainda falar de outras instituições peculiares do islamismo iraniano, meu caro Samy. Você nunca nos falou da fórmula genial que os aiatolás encontraram para resolver esse problema jamais resolvido pelo Ocidente, a prostituição.

Da mesma forma que não há homossexualismo no Irã, como disse “o presidente Ahmadnejad”, também não há prostituição no país. Se o Ocidente ainda debate a questão do sexo pago, coube ao islâmico Irã desatar o nó, apelando também à castidade. Há mais de dez anos, o jornal Afarinesh noticiava que duas agências do governo haviam encontrado a fórmula para resolver o problema. Seriam criadas as chamadas "casas de castidade", onde o cidadão poderia exercitar sua luxúria em ambiente seguro e saudável. De acordo com o artigo, o plano envolvia o uso de forças de segurança, líderes religiosos e do judiciário para administrar as casas.

De acordo com os números oficiais da época, cerca de 300 mil profissionais trabalhavam nas ruas da capital, que tinha então 12 milhões de habitantes. Para o aiatolá Muhammad Moussavi Bojnourdi, as casas de castidade se justificam "pela urgência da situação em nossa sociedade. Se quisermos ser realistas e limparmos a cidade dessas mulheres, precisamos usar o caminho que o Islã nos oferece".

Este caminho é o sigheh, o matrimônio temporário permitido pelo ramo xiita do Islã, que pode durar alguns minutos ou 99 anos, especialmente recomendado para viúvas que precisam de suporte financeiro. Reza a tradição que o próprio Maomé o teria aconselhado para seus companheiros e soldados. O casamento é feito mediante a recitação de um versículo do Alcorão. O contrato oral não precisa ser registrado, e o versículo pode ser lido por qualquer um. As mulheres são pagas pelo contrato.

Esta prática foi aprovada após a "revolução" liderada pelo aiatolá Khomeiny, que derrubou o regime ocidentalizante do xá Reza Palhevi, como forma de canalizar o desejo dos jovens sob a segregação sexual estrita da república islâmica. Num passe de mágica, a prostituição deixa de existir. O que há são relações normais entre duas pessoas casadas. Não há mais bordéis. Mas casas de castidade. A cidade está limpa.

Já que você assumiu minha primeira pauta, Samy, poderia pensar em mais duas, as casas de castidade e o sigheh. Somos todos ouvidos.