¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, março 24, 2012
 
PIB & FIB *


Estudiosos dessa inefável ventura, a felicidade, estão preocupados em saber onde ela reside. Nas últimas semanas, fomos bombardeados por pelo menos três pesquisas. Para o economista britânico Richard Layard, em Happiness: Lessons From a New Science, a felicidade residiria no reino budista do Butão.

O Butão é um país isolado no Himalaia, cujo rei, Sua Majestade Jigme Singye Wangchuck – o primeiro marajá da dinastia dos Wangchuk a auto-intitular-se rei – decidiu abandonar os obsoletos índices de Produto Interno Bruto e substitui-lo por um índice de Felicidade Interna Bruta. Abaixo o PIB, viva a FIB. Sua jogada de marketing parece ter agradado às eternas e azedas esquerdas, que acham que PIB não quer dizer nada. Não que acreditem nisso, mas como o PIB das nações capitalistas sempre foi superior ao das socialistas, então o PIB “é do mal”.

Mais dia, menos dia, o mal acabou entrando no paraíso. Não através da serpente, mas de algo muito mais insidioso, a televisão. Segundo Layard, "os butaneses puderam então ver a mistura comum de futebol, violência, traição sexual, propaganda, lutas e afins. Eles adoraram, mas o impacto em sua sociedade fornece um experimento notável sobre como a mudança tecnológica pode afetar atitude e comportamento. Logo se observou um aumento profundo em rompimentos familiares, crimes e consumo de drogas."

Ou seja, a realidade circundante invadiu o país. O bode a ser banido para o deserto é a televisão. “Nos últimos anos, o governo butanês vem tentando banir do país a televisão, ou ao menos os programas mais odiosos.” Confesso que jamais vi justificativa tão linda e nobre da censura. Oremos para que o Supremo Apedeuta não a ouça nem se converta ao budismo. Poderia ser tentado a acabar com a violência, os crimes e o consumo de droga mediante uma medida singela, a proibição da televisão.

Segundo pesquisa feita por Layard nos EUA, quanto mais uma pessoa assiste televisão, menos feliz ela é. A solução então é simples: retire a televisão da sala e suas chances de ser feliz aumentarão. Sua Majestade Jigme Singye Wangchuck parece ter conseguido vender ao Ocidente a idéia de que, para a felicidade geral das nações, é melhor renunciar ao presente e encerrar-se nas trevas do passado. Sob o repúdio à televisão, o livro do economista britânico esconde uma tese safada: informação é infelicidade. Do fundo de seu sarcófago, Stalin deve ter esboçado um sorriso: “finalmente fui entendido”.

De qualquer forma, não se entusiasme. Não é fácil visitar o país onde a felicidade mora. Só é permitida a entrada de pessoas autorizadas por Sua Majestade ou pelo ministério de Turismo. Essas pessoas devem efetuar o depósito de cerca de US$ 200 por dia a favor do governo. Qualquer semelhança com a velha União Soviética e a Intourist não é mera coincidência. Sua Majestade, a título de curiosidade, é casado com quatro mulheres, todas irmãs. Sua FIB deve ser muito alta.

Por outro lado, a New Economics Foundation e a ONG Friends of Earth criaram o Happy Planet Index, segundo o qual a felicidade teria estabelecido sua morada no arquipélago de Vanuatu – 83 ilhas no Pacífico, com 209 mil habitantes, na maioria pescadores e agricultores que vivem numa economia pouco além do nível da subsistência. Os vanuatuenses tiveram a melhor média de três indicadores básicos: esperança de vida ao nascer, bem-estar humano e nível dos danos ambientais causados ao país. Nesse índice, o Brasil ficou em 65º lugar, atrás da Colômbia, da Argentina, do Chile e do Paraguai – até de Bangladesh. Os Estados Unidos ficaram com o 150º lugar, um dos últimos entre 178 países. O Happy Planet Index quer evidenciar que "não é necessário esgotar os recursos naturais da Terra para se ter uma vida relativamente longa e feliz". Seus critérios são, no fundo, um panfleto contra tudo o que de bom o Ocidente oferece.

Se os vanuatenses se sentem felizes numa economia que vai pouco além da subsistência, estão confundindo ignorância do mundo contemporâneo com felicidade. “Se estamos em um quarto escuro e dizemos que não há luz é porque alguma vez vimos a luz. Algo parecido acontece com a felicidade”, escreveu Swami Tilak. A pesquisa cheira à estratégia dos ecochatos que, uma vez morto o socialismo, querem empunhar novas bandeiras contra o capitalismo triunfante. Ora, uma comunidade de 200 mil pessoas isoladas num mar oceano, que vivem numa agricultura de mão pra boca, jamais reunirá aqueles elementos que tornam a vida prazerosa.

A universidade britânica de Leicester, por sua vez, elaborou o que seria o primeiro mapa mundial da felicidade, em estudo que reúne 177 países. Segundo este, os dinamarqueses e os suíços são os mais felizes. Depois destes, vêm os cidadãos da Áustria, Islândia, Bahamas, Finlândia e Suécia. Zimbabuanos e burundineses estão nos postos mais baixos e os brasileiros em 81º lugar. Dentro de meu conceito, já não digo de felicidade, que é muito relativo, mas de bem-estar, parece-me um mapa sensato. Que a vida é agradável na Dinamarca e Suíça, disto estou ciente. Que deve ser dura no Zimbábue e Burundi, disto também estou ciente, mesmo sem jamais ter postos os pés naquelas plagas.

Ao que tudo indica, as ideologias invadiram a geografia da felicidade e a disputam palmo a palmo. Como se felicidade tivesse geografia. Sentimento personalíssimo e subjetivo, não vejo muito bem como possa ser mensurada. Para populações que desconhecem uma gastronomia elaborada, qualquer gororoba que mate a fome deve dar uma sensação de paraíso. A gastronomia, a meu ver, é algo altamente espiritualizado. O gastrônomo não come para satisfazer a vil premência física, mas a uma necessidade do espírito. Para civilizações que desconhecem bons vinhos, suco de laranja deve saber a néctar dos deuses. Faltou a prova dos nove nas três pesquisas: investigar se os vanuatenses ou os butaneses continuariam sendo felizes em suas economias precárias após degustar os requintes do Ocidente.

Não vejo grandes FIBs sem altos PIBs. Os rosseaunianos adoradores da vida frugal que me desculpem. Altos PIBs significam mais opções de lazer, mais conforto no dia-a-dia, mais acesso à cultura e à saúde, medicina de ponta na hora da doença. E essa grande aventura do espírito – as viagens – ao dispor de qualquer veneta. Quanto à felicidade, é uma questão de ambições. Já vi mendigos rindo sozinhos em uma noite gelada, felizes com uma garrafinha de cachaça. E conheço não poucas pessoas, de muitas posses e com altos saldos bancários, mergulhadas na depressão e próximas ao suicídio. Conheço inclusive pessoa que comprou carro blindado para proteger sua vida e hoje teme olhar para o revólver, por medo de não resistir a matá-la.

Certa vez, no aeroporto de Cumbica, puxei conversa com uma moça que servia cafezinho. O trabalho é duro, oito horas em pé, circulando dentro de um brete. “Eu estou feliz da vida” – me dizia a moça – “Não fosse este trabalho, eu estaria na roça, no cabo da enxada”.

Conheci o cabo da enxada e já fui feliz com uma bicicleta. Cresci, me eduquei, zanzei pelo mundo e hoje, meu conceito de paraíso mudou, mas não deixa de ser singelo: uma manhã de inverno ensolarada, na terrasse de um café em Paris – pode ser também em Copenhague ou Zurique. Ou Madri ou Roma – temperatura de uns dez graus, jornais de dois ou três países, dois ou três livros para dar as primeiras folheadas e uma Leffe radieuse. Detesto a idéia de eternidade. Mas se for assim, topo. Buñuel tinha um desejo parecido. Gostaria de, depois de morto, sair de vez em quando da tumba, esgueirar-se lívido pelos muros, ir até uma banca de jornais e voltar com alguns debaixo do braço.

Claro que PIB não significa automaticamente felicidade. Prova disto são os altos índices de suicídio dos países desenvolvidos. Mas sem altos PIBs, a tal de FIB não passa de mais uma utopia das esquerdas. Há gentes de todo azimute tentando vender a idéia de que há virtudes na pobreza. São em geral pessoas ricas, que jamais viram a miséria de perto. Ou que só a viram como turistas.

* 31/07/2006