¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, fevereiro 28, 2011
 
20 ANOS ESTA NOITE: DO
FÓSFORO VERDE AO IPAD



O primeiro computador a gente nunca esquece. O meu, comprei-o em 90, quando vivia em Curitiba. Era época em que os PCs eram caríssimos no Brasil. Telefonei para Asunción e pedi um. Qual você quer? Não sabia. Eu nem sabia muito bem para servia um computador. Intua que era algo útil para escrever. Quero o mais avançado, mais potente, respondi. Do outro lado da linha, apenas pediram meu endereço e disseram que eu receberia a máquina em dois dias.

No ano anterior, havia caído Alfredo Stroessner. Mas o Paraguai em nada mudara e continuava sendo uma solução para muitos brasileiros. Eu já descobrira, vários anos atrás, as conveniências do país vizinho. Quando comecei a viajar, nos anos 70, a Varig tinha o monopólio das linhas aéreas no Brasil e impunha preços leoninos. A solução eram as Líneas Aéreas Paraguayas, a LAP. Para felicidade geral dos brasileiros, a Varig acabou morrendo, morte que antecipei em 2004, na crônica “Morte à Varig”.

Desde os 70, eu viajava para o exterior, praticamente quase todos os anos, e sempre evitei a empresinha infame. Minhas primeiras viagens foram por mar, é verdade. Mas quando a falta de tempo me obrigou a voar, meu primeiro vôo foi pela LAP. Não lembro de tarifas nem da moeda da época - suponho que cruzeiros - mas o preço da passagem era um terço do preço praticado pela Varig. Havia um porém. A LAP não podia pegar passageiros no Brasil e levá-los diretamente à Europa. Tinha de voltar a Asunción e de lá repartir para a Europa.

Brasileiro pode ser besta, mas há uma considerável parcela que não o é. Esta parcela era mais que suficiente para lotar qualquer vôo da LAP. A empresa tinha de partir de território paraguaio, mas nada exigia que o avião aterrissasse em território paraguaio. Ora, aterrissar e decolar são operações que consomem não poucos dólares. Como não havia um só assento vazio no avião, este apenas sobrevoava Asunción e embicava rumo ao Norte. Várias vezes, sem querer, sobrevoei a capital paraguaia, sem jamais pôr os pés por lá. Voar pela Varig era rasgar dólares.

Na época, comprar computador no Brasil também. Meu PC do Paraguai custou-me quatro mil dólares, muito mais barato do que aqui. Chegou pontualmente dois dias após meu telefonema. Para comprar um, no Brasil, era necessário preencher um longo cadastro, com RG, CPF, endereço e sei lá mais o quê. Meu agente de operações internacionais não me pediu nada. Pegou os dólares – não aceitava moeda nacional – disse tchau e se foi.

O monitor era de fósforo verde. Mais ainda: era a época do DOS. Comprei livros para decifrar o sistema operacional e afixei na parede uma longa lista de comandos. As novas gerações certamente não conheceram isso. Disco rígido, 40 Mb. Atenção, eu disse megabytes. Outro dia, esteve aqui em casa um técnico e eu lhe falei de meu primeiro pendrive, 42 megabytes. Ele não acreditou. “Isso não existe”. Tive de furungar meus baús para provar-lhe que um dia havia existido. Maior que o HD de meu primeiro computador. Ano passado, comprei em Rivera um pendrive de 16 gigas, e não comprei maior porque não preciso. Por cerca de 200 reais. Uma memória 16 mil vezes maior que a de meu primeiro HD, por um preço, ao câmbio de hoje, 33 vezes menor.

Isto num espaço de vinte anos. É reconfortante. De lá para cá, tenho renovado meu PC a cada cinco anos, mais ou menos. Mas a indústria informática está exagerando. Ano passado, comprei um netbook Vaio, diminuto e extremamente portátil, a rigor cabia no bolso de minha parka. Eu tinha um notebook Itautec, que me servia mais como back up, recurso para eventuais panes no PC e talvez para viagens. Monitor 17 polegadas, o que se revelou incomodo e pesado na hora de viajar. Optei então pelo Vaiozinho. Que acabou sendo desconfortável na hora de digitar. Ao viajar, tenho preferido cybercafés. O Vaio ficou meio esquecido aqui em casa, em meio às tralhas eletrônicas que a gente junta.

Eis senão quando leio no New York Times: “Lembra-se da Última Grande Novidade na informática? Você estará perdoado se tiver esquecido que foi o netbook, um laptop pequeno nas dimensões e no preço, cerca de US$ 300. Hoje, a febre são os tablets como o iPad, da Apple, e seus concorrentes de marcas como Dell e Hewlett-Packard. Mas, em 2009, os netbooks eram vistos como a força que poderia alterar a economia do setor e abalar líderes como Intel e Microsoft”.

Em menos de um ano, obsolesci. O NYT continua: “As vendas de netbooks foram meteóricas em 2009, octuplicando nos EUA e chegando a 7,5 milhões, e triplicando no mundo para atingir 34 milhões. Os netbooks continuam bem em mercados mais preocupados com o preço, como os da China e América Latina, e nas vendas para escolas. Mas o crescimento estancou em 2010”.

Justo no ano em que comprei meu Vaio. Isso é o que dá viver em Terceiro Mundo. Acabamos comprando o que já se tornou obsoleto no Primeiro. Eu o comprei pensando em portatibilidade. Foi compra equivocada. Pode ser portatibilíssimo. Mas é uma tortura na hora de digitar. O top agora é o iPad. Mas já estou curtido. Em Londres, em dezembro passado, andei brincando com um iPad. Me pareceu uma bobagem, brinquedinho para exibir em bares. De digitação desconfortável, não é bom companheiro de viagem. Mas, pelo que leio, já está virando peça de museu.

Em abril, chega o iPad 2. Essa gente está exagerando. Um produto já não dura mais que um ano. Em verdade, exploram a excitação dos jovens ante as novidades. Juventude é imaturidade. Pessoa sensata não fica comprando tralhas só porque são novas. Talvez um dia eu chegue lá.

Mas vou esperar pelo iPad 10.

domingo, fevereiro 27, 2011
 
RELIGIÕES E CHOCOLATES


Ateu, sou um estudioso de religiões. Penso que jamais entenderemos o mundo se não entendermos as religiões. Os homens morrem e têm medo da morte. Apelam então a ilusões para combater a intempérie metafísica. Karen Armstrong é minha historiadora das religiões predileta. Conhece os textos religiosos como poucos. Muito aprendi com ela, tanto em Uma História de Deus como em A Bíblia. Comecei há pouco a leitura de Em Defesa de Deus. (Voltarei ao livro, quando chegar ao ponto final).

Já na introdução, a autora escreve: "não praticamos e, por isso, perdemos a aptidão para a religião". Como a natação, religião exigiria um aprendizado e uma prática. Ora, não vejo a coisa por esse lado. Assumir uma religião implica crer em um deus. Existe ou não existe? Se não existe, de nada adianta nadar. A proximidade da morte mexe com os mortais. É espantoso ver como pessoas inteligentes apelam a acrobacias intelectuais para partir numa boa. Minha concepção de religião coincide com a de Fernando Pessoa, em "A Tabacaria":

Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.


Sou um estudioso de chocolates, portanto. Penso que o estudo desta peculiar chocolataria - ou chocolatria, como quisermos - deve interessar a todo homem culto. Leio na Folha de São Paulo que 98 mil colégios no Brasil, públicos ou privados, oferecem esta disciplina, segundo censo da educação básica do MEC. "O que são as histórias da Bíblia? Fábulas, contos de fadas?", pergunta uma professora do 3º ano do ensino fundamental. "Não", respondem os alunos. "São reais!"

Aqui começa a enganação. Só crianças, em sua insciência, conseguem engolir potocas, tipo o mito da criação do universo em sete dias, do pecado, Eva e a maçã, dilúvio universal, Moisés dividindo as águas do mar, Josué parando o sol, sem que a terra desse sequer um solavanco. Segundo Armstrong, na maioria das culturas pré-modernas havia duas formas de pensar, falar e adquirir conhecimento. Os gregos as chamavam de mythos e logos. Ambas eram essenciais e não se considerava uma superior à outra; elas não conflitavam, mas se complementavam.

Segundo a teóloga, o mito nunca pretendia ser o relato preciso de um acontecimento histórico. Era algo que, de algum modo, aconteceu. Mas acontece o tempo todo. “No entanto, para o mito ser eficaz, não bastava que se acreditasse nele. O mito era, essencialmente, um plano de ação. Podia colocar o indivíduo na postura espiritual ou psicológica correta, porém cabia a ele dar o passo seguinte e fazer da ‘verdade’ do mito uma realidade em sua vida”.

Armstrong, ex-freira, recidivou. Considera o mythos tão importante quanto o logos. Ora, mythos é a mentira institucionalizada. Aqui começa o problema do ensino de religiões nas escolas. Segundo a Folha, o fundamento deste ensino está na Constituição, que determina que a disciplina deve ser oferecida no horário normal da rede pública, embora seja opcional aos estudantes. Escolas particulares não precisam oferecê-la, mas, se assim decidirem, podem obrigar os alunos a assistirem às aulas. No entanto, a lei proíbe que seja feita propaganda religiosa e as queixas devem ser feitas aos conselhos de educação.

Sempre defendi o ensino de história das religiões na escola. Mas atenção: de história das religiões e não de religião. Quem impedirá, no entanto, um papista de ensinar o mythos e não o logos? Para ensinar religião, geralmente são chamados os padres católicos e estes, é claro, puxam brasa para seus assados. O professor mais adequado para falar de religiões seria, a meu ver, um ateu. Que expusesse com isenção as diferentes doutrinas e deixasse aos alunos o direito de optar por uma delas. Ou por nenhuma.

Um rabino diria: Deus é um só e fim de papo. Já o papista ajuntaria: Deus são três em um só, Cristo é o filho mas também o pai, isso sem falar no Espírito Santo. Ao impor a Igreja de Roma o dogma da Trindade, Constantino criou um problema póstumo para a Maria. Mãe de deus ou mãe de Jesus? Mãe de Jesus, disseram alguns. Mas Jesus é Deus. Então mãe de Deus. Mas Deus, o velho Jeová, precede Maria. Como pode ser a filha mãe do pai? É o velho problema da Teotokos – mãe de Deus – que tanto perturbou os teólogos do medievo.

Mas divago. Falava do ensino religioso. Leio na Folha que em 1997, meses antes da visita do papa João Paulo II ao Brasil, o governo federal retirou da lei dispositivo que proibia o Estado de gastar dinheiro público com o ensino religioso. Em 2008, nova polêmica surgiu quando o Brasil assinou com o Vaticano acordo que previa que "o ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental".

A controvérsia teria sido a menção explícita ao catolicismo, vista por alguns como privilégio a uma única religião. Em verdade, quem domina o ensino religioso no Brasil é a Igreja de Roma. Que não vai admitir de bom grado que se ensine nas escolas outros mitos que não os seus. Sem falar que, fosse esta idéia aceita, o cerebrinho dos adolescentes viraria geléia. Imagine um aluno tendo de ouvir pregações de católicos, evangélicos, protestantes, espíritas ou umbandistas.

Ou talvez não. A existência de tantos deuses é a prova cabal de que nenhum existe.

sábado, fevereiro 26, 2011
 
NEM UMA MÃO AO
AMIGO E IRMÃO?



Sob as ruínas do tirano – este é o título da reportagem de capa da Veja, que saiu hoje nas bancas. A revista assim abre a reportagem:

“Irmão Líder, Guia da Revolução, Rei da Cultura, Imã de todos os Imãs, Profeta dos Profetas, Pai da África e Reitor dos Governantes Árabes são alguns dos títulos que Muamar Kadafi se atribuiu. Para a história, ele passará simplesmente como um criminoso internacional da pior estirpe. Entre as inúmeras malfeitorias do ditador líbio está o financiamento de atentados no exterior e a ajuda a golpes de estado em outros países africanos”.

A revista retoma o assassinato de atletas israelenses nas Olímpiada de Munique em 1972, a explosão de uma discoteca em Berlim freqüentada por soldados americanos em 1986 e o atentado ao avião da Pan Am sobre Lockerbie, na Escócia, em 1988, no qual morreram 285 pessoas. Mais os golpes liderados por Charles Taylor na Libéria e por Idi Amin Dada, em Uganda. Mais o pagamento de milícias para participar do genocídio na região de Darfur, no Sudão, que matou 400 mil pessoas.

As voltas que o jornalismo dá! Quando Lula se encontrou com Kadafi em Tripoli, em dezembro de 2003, não lembro de ter lido, em jornal algum, qualquer manchete tipo

LULA VISITA TIRANO ÁRABE

Ou talvez:

LULA ENCONTRA DITADOR LÍBIO

Ou ainda:

LULA ENCONTRA CRIMINOSO INTERNACIONAL DA PIOR ESTIRPE

Lula encontrou o hoje tirano mais três vezes. Na Nigéria, em 2006 e mais duas vezes em 2009. Uma em Sirte, na Líbia, quando chamou Kadafi de "amigo e irmão", e mais uma outra em Isla Margarita, na Venezuela, quando o hoje ditador chegou a propor uma aliança militar entre países da América Latina e da África, nos moldes da Otan. Ora, as ações terroristas de Kadafi eram então amplamente conhecidas.

E admitidas pelo próprio terrorista. Tanto que a Fundação Internacional Kadafi pagou 35 milhões de dólares às vítimas do atentado cometido contra a discoteca La Belle, em Berlim. Em 2003, mesmo ano em que Lula foi ao encontro de seu amigo e irmão, a Líbia assumiu a responsabilidade pela bomba de Lockerbie. Alguns anos mais tarde, não só indenizou com 2,7 bilhões de dólares os familiares das vítimas do atentado de Lockerbie como também tratou da reparação do atentado contra um avião francês com 170 passageiros a bordo, derrubado em 1989, sobre Níger.

Quantos jornalistas no mundo todo Kadafi terá comprado para ser absolvido pelo Ocidente? Não sabemos. De suas compras só testemunhei uma. Aconteceu em Porto Alegre, final dos anos 70, após o assassinato dos atletas israelenses em Munique, quando um grupo de jornalistas gaúchos, comunistas e venais, foi à Líbia a convite do Imã de todos os Imãs. Na volta produziram uma gorda revista laudatórias à ditadura de Kadafi, edição de luxo, em papel couché. Que não deve ter vendido sequer um exemplar. Mas demonstrava a gratidão dos jornalistas ao Irmão Líder da Grande Jamahiriya Árabe Líbia Popular e Socialista.

O Ocidente recebeu de braços abertos o Profeta dos Profetas. As armas com as quais Kadafi hoje mata seus compatriotas foram fornecidas por Estados Unidos, Reino Unido, França, Itália, Espanha e mesmo pelo Brasil. Os dirigentes ocidentais começam a pôr as barbas de molho e pedem a cabeça do Pai da África.

Sic transit gloria mundi! Quanta ingratidão, meu Deus! Será que nem mesmo Lula, conhecido por sua generosidade para com os seus, não vai estender uma mão ao amigo e irmão, neste difícil transe de sua existência?

 
MENSAGEM DO CORONEL CASTELO BRANCO


Prezado Sr Janer Cristaldo,

Ajudado por amigos, em descobrir seu endereço eletrônico, tomo a liberdade de cumprimentá-lo pela excelência do artigo abaixo*. E, se o faço, é por ter conhecido e exercitado a cultura islâmica, durante mais de dois anos, como residente em Teeran-Iran, representando as Forças Armadas do nosso Brasil, de 1990 a 1993. Dos intelectuais e estudiosos o Sr impressionou-me pelo conhecimento da realidade e eu como sobrevivente dessa mesma realidade.

Paulo Cesar Romero Castelo Branco, Cel Inf/EB, ex ADIFA/IRAN.



Grato, coronel. Partindo de quem parte, pessoa que viveu no mundo islâmico, sua mensagem muito me honra. Embora tenha visitado alguns países árabes, meu conhecimento do Islã decorre mais de leituras que de vivências. Grande abraço.


* O coronel se refere ao artigo "Revolução? Onde?", postado no dia 14 deste mês.

sexta-feira, fevereiro 25, 2011
 
PREMIÊ PODE?


A ministra de Relações Exteriores da França, Michèle Alliot-Marie, teve na terça-feira passada um encontro fantasma com Dilma Roussef, discretamente mencionado pela imprensa. Veio tratar da venda ao Brasil dos Rafale, tão defendidos pelo governo Lula e agora jogado para as calendas de março. Não de março próximo, bem entendido, mas talvez para algum março do século que vem. Ora, não é todos os dias que uma chanceler francesa visita o Brasil. A impressão que fica é que a imprensa, já tendo aderido à dona Dilma, quis evitar um desgaste da presidente. Pois Michèle está pela bola sete.

Já falei da ministra. É aquela senhora que, junto com seu amante, Patrick Ollier – ministro de Relações com o Parlamento – visitou a Tunísia, no réveillon passado, em um avião particular, de propriedade de um empresário pertencente ao círculo íntimo do ditador da Tunísia. O problema é que a história é mulher loureira, como dizia um escritor menor carioca. Derrubado Ben Ali e fichado como ditador, madame Alliot-Marie se viu em palpos de aranha. Pior que a viagem – que não foi uma, mas duas – foram as mentiras deslavadas da ministra para justificar seu périplo.

Vai daí que François Fillon, o primeiro-ministro francês, tomou a defesa da ministra. “Eu gostaria de expressar a Michèle todo meu apoio. Ela tem o apoio do presidente da República e do Primeiro-Ministro”. Sarkozy, na ocasião, não se manifestou. Fillon tinha sérias razões para tanto. Também tem o rabo preso. Se Alliot-Marie recebeu mordomias do ditador da Tunísia, Fillon também as recebeu de Osni Mubarak, o ditador egípcio. De 26 de dezembro ao 02 de janeiro, o premiê viajou de Assuã a Abu Simbel, “convidado pelas autoridades egícias”. Sua estada e a de sua família, em uma mansão privada situada na ilha Elefantina, administrada pelo hotel Movenpick, também esteve a cargo das autoridades do país. Como também uma excursão pelo Nilo. Mais ainda: foi o próprio ditador quem ofereceu a Fillon o jato privado.

Leio hoje no Nouvel Observateur que, no próximo domingo, no máximo na segunda-feira, antes da rentrée parlamentar, Michèle Alliot-Marie não será mais ministra. Sua demissão acontecerá após sua volta do Kuait, onde ela faz uma visita de dois dias.

“Se ela parte, eu também parto”, disse Patrick Ollier, ministro encarregado de Relações com o Parlamento, amante e companheiro de viagem – no sentido literal da expressão – da chanceler à Tunísia. Solidariedade é lindo. Vamos ver se o ministro parte mesmo.

Interrogada para saber se ela havia proposto sua demissão, a ministra deu uma resposta de quem sente o sopro da guilhotina. “Minha divisa é bem fazer e deixar dizer. Nas últimas semanas houve polêmicas, rumores, ataques, e isto é muito desagradável quando sua família é visada. Mas eu me expliquei”.

Quem dá explicação já perdeu a discussão, costumo afirmar. Não é que tenha havido polêmicas, rumores ou ataques. Houve denúncias, todas elas comprovadas e inclusive admitidas pela ministra. Seus pais tinham vultosos negócios imobiliários com Aziz Miled, o empresário ligado ao ditador tunisiano que lhe deu carona em seu jato particular.

Michèle Alliot-Marie ainda acredita que, na próxima segunda-feira, se encontrará em Genebra, no Conselho de Direitos Humanos da ONU, com sua homóloga americana, Hillary Clinton. O Quai d’Orsay não aposta um centime nesta hipótese.

É confortador constatar que a França corta a cabeça de ministras que se roçam com ditadores. Mas resta uma perguntinha: como fica o primeiro-ministro, François Fillon, que recebeu gordas mordomias do ditador Mubarak?

quinta-feira, fevereiro 24, 2011
 
TEÓLOGO BOM É
O TEÓLOGO ATEU



Karen Armstrong, escritora britânica, especializou-se no estudo de religiões. Escreveu mais de quinze livros, nos quais se sente em casa discorrendo sobre cristianismo, judaísmo, islamismo ou budismo. Ex-freira, Karin abandonou o convento, aos 25 anos, e passou por uma crise de fé. Seus ensaios são de uma erudição tal que não há memória que os guarde.

Há uns dois anos, comprei na Espanha Los Orígenes del Fundamentalismo, que li com muita atenção. Comentei, na época, como era bom estar em país onde se publicavam livros que não eram publicados no Brasil. Um leitor alertou-me que este livro havia sido publicado aqui no ano 2000, pela Companhia das Letras, com o título de Em Nome de Deus.

Fui pesquisar em minha biblioteca. O livro estava lá, e todo sublinhado por mim mesmo. Eu já nem lembrava dele. O problema destas obras de extrema erudição é que o autor joga tantos dados em uma só página que, mal acabamos de lê-la, não conseguimos memorizá-la. O remédio é sublinhar. Mas sublinhar tem seus limites. Quando o livro está quase todo sublinhado, é como se não estivesse. Se houve época em que tínhamos escassez de dados, hoje vivemos época inversa: os dados são tantos que nao conseguimos mais lembrá-los.

Está sendo publicado no Brasil o último livro da teóloga, Em Defesa de Deus, que ainda não li mas vou ler. Em rápida resenha que encontrei no Estadão, sou informado de que a moça se concentra no cristianismo "porque é a tradição mais diretamente afetada pelo advento da modernidade científica e a mais castigada pelo novo ataque ateísta". E só pode ser assim mesmo, afinal o Ocidente não é islâmico ou hinduísta. Armstrong desfere ataques aos neo-ateus Christopher Hitchens e Richard Dawkins que seguiriam, segundo a autora, "um naturalismo científico linha-dura, que reflete o fundamentalismo no qual baseiam sua crítica". O ateísmo, define a acadêmica, "sempre é a rejeição de uma forma específica de teísmo e depende dela como um parasita".

Bom, sem deus não existiriam ateus. Não somos parasitas, mas uma decorrência lógica da crença em algum deus. É muito difícil falar numa doutrina do ateísmo, já que o ateu nada afirma, apenas nega. Sem falar que mesmo os crentes são ateus. Se eu sou ateu em relação a Jeová ou ao Cristo, os cristãos são ateus em relação a Jupiter, Héstia, Demeter, Hera, Hades ou Poseidon. Ou Krishna, Shiva, Vishnu ou Brahma. Somos todos ateus, cara Karen.

Hitchens, o ateu, está com câncer. A religião, defende Karen, é uma "disciplina prática" que depende de exercícios espirituais e uma vida de dedicação. A racionalidade científica pode até explicar o câncer de Hitchens, mas não pode aplacar seu pavor, observa a teóloga.

Mas tampouco aplaca o pavor de um crente, observo eu. Na hora do câncer, os cristãos oram ao seu deus. Mas vão buscar cura na medicina de ponta. Quando a medicina os cura, eles agradecem não aos médicos, mas a deus. O que me parece ser uma ofensa à medicina.

Minha primeira suspeita sobre a existência de deus, lá em meus verdes anos, decorreu da constatação de que existia um deus para cada geografia. Ora, eram tantos que não podiam ser tantos, como diria Pessoa. Para mim ficou claro que deuses eram criações dos homens.

Assim sendo, me espanta que teóloga tão erudita, que passeou por tantas crenças, ainda consiga crer em algumas delas. Pior ainda, depois de velha e detentora da sabedoria que só a velhice confere, Armstrong elogia as religiões primitivas, caracterizadas por rituais, danças, sacrifícios e cantos. Ou seja, fascinou-se pelas mais toscas formas de crença.

Ao visitar as cavernas de Lascaux, a teóloga verificou que religião e arte já surgem inseparáveis. A experiência da iniciação do homem ancestral prova, segundo ela, que não existe no pensamento arcaico o conceito do sobrenatural, ou seja, "nenhum abismo entre o humano e o divino". Não existia o ser supremo, mas apenas um ser.

Ora, que religião e arte são inseparáveis, disto sabemos. Tanto religião como arte são ficções. Daí a deduzir a existência de um ser supremo – ou de apenas um ser, como prefere a autora – vai uma longa distância.

Para a ex-freira, religião virou auto-ajuda: “religião é como música. Não se pode explicar, mas se ouve com prazer e, de quebra, ela ainda opera milagres como acalmar bebês, fazer crescer as flores e curar algumas doenças”. Como quiser. Mas desconheço músicas que ordenem a lapidação de mulheres, a morte de homossexuais ou o extermínio dos não-crentes. Não consigo entender como as fogueiras da Inquisição possam tem acalmado bebês ou feito crescer flores. Mas certamente curaram algumas doenças. A morte cura tudo.

Teologia? Vá lá. Como a matemática, é um sistema axiomático. Decido que deus existe e daí parto a tirar conclusões. Se um mais um é dois, e se dois mais é quatro, então quatro mais quatro é oito. Se deus existe, vem toda uma tralha atrás: demônio, anjos, deuses, santos.

Nada a ver com a realidade. Ou, como disse Borges, teologia é a primeira manifestação da literatura fantástica. Teólogo bom é o teólogo ateu. Que conhece a ficção, mas sabe que é ficção.

quarta-feira, fevereiro 23, 2011
 
NOTÍCIAS DO MUNDO CIVILIZADO


Dos Estados Unidos, Ana me escreve:

Janer,

eu moro proximo a Seattle, a cidade mais bonita e uma das mais culturalmente ricas dos Estados Unidos. A cidade de 700 mil habitantes e' servida por uma das melhores companhias de Opera do pais, a Seattle Opera. Somente a titulo de curiosidade e comparacao, vou passar o link para voce ver o que ela oferece: http://www.seattleopera.org/tickets/2011-2012.aspx

Por exemplo, o ingresso mais caro para assistir a temporada de A Flauta Magica, que começa em maio, custa US$208, e agora em fevereiro so restam alguns poucos lugares disponiveis. A sua Carmen este ano sera' interpretada pela georgiana Anita Rachvelishvili. Gostas dela? :) Nunca a assisti, mas ja li coisas nao exatamente elogiosas sobre ela, por isso pergunto tua opiniao.

A producao de O Anel dos Nibelungos, que so sera' exibida em Agosto de 2013, ja foi anunciada e a venda dos ingressos comecara' agora em meados de 2011. A companhia foi inicialmente fundada para divulgar a obra de Richard Wagner, e so depois abriu para operas de outros compositores - dai o esmero com que eles preparam e exibem as obras wagnerianas.

De acordo com informacoes da propria companhia, eles operam com orcamento anual de US$30 milhoes, sem deficit algum nos ultimos 16 anos. Resumindo: Excelente organizacao e administracao, excelentes espetaculos, publico garantido e apaixonado, e retorno a altura do investimento. Acho que essa cadeia de coisas e' o que falta no Brasil.

Abracos pugetsoundicos! :)


Feliz de você, Ana, que vive perto da civilização. Não, não conheço a Rachvelishvili. Mas acabo de me munir, em Paris, de duas outras Carmens, uma encenada pelo Metropolitan Opera Orchestra e interpretada pela Elina Garanča. A outra, das Orchestra of the Royal Opera House, com a Anna Caterina Antonacci. Continuo ainda prestando meu culto à Julia Migenes.

De Levi Marcos Pereira, recebo:

Caro Janer,

Sobre óperas, impossível não mencionar o Metropolitan Opera House, em NY. Assisti recentemente a uma produção da Tosca, com uma americana - Sondra Radvanovsky - no papel título, um excelente Cavaradossi, Marcelo Álvarez, argentino e um genovês, Marco Armiliato, na regência, além de um Scarpia muito bom, Falk Struckmann.

Ingressos pela internet, o que inviabiliza a presença dos cambistas na calçada e a preços civilizados, espetáculo numa segunda-feira de inverno, sendo que durante a mesma semana dois outros títulos em cartaz se revezam com Tosca, Traviata entre elas. Organização impecável e os lugares marcados são obedecidos à risca. Como disse, comprei meus ingressos pela internet. Bastou-me chegar à bilheteria, mencionar meu nome, apresentar um documento que me identificasse e lá estam os cinco bilhetes, com o meu nome impresso. Igualzinho aqui.

Se a situação em São Paulo se apresenta como você diz no texto, nem queira saber como as coisas funcionam no Rio. Minha ex-mulher é soprano do coro do Teatro Municipal e não entrarei nos detalhes que ela me conta, mas é de estarrecer, o que fazem com a cultura neste Pindorama.

De fato, as referências culturais brasileiras são Xuxa, Big Brother e por aí vai.
Abraços de um leitor assíduo.

Levi - Petrópolis – RJ


Pois, meu caro Levi, uma das coisas que adorei no Metropolitan, foi poder comprar ingressos no dia. Ainda não vivíamos os tempos internéticos. E outra foi poder entrar de tênis e jeans, sem sentir-me constrangido. Foi um dos bons momentos de Nova York. Aqui, para assistir um bom espetáculo - quando ocorre - é preciso pistolão.

Do Rodrigo Figueiredo, recebo:

Caro Janer,

já que você voltou ao tema, talvez queira comentar com seus leitores sobre o ciclo de projeções ao vivo em alta definição da Metropolitan Opera de Nova York. Creio que há salas de cinema em São Paulo participando das exibições e, quanto mais público houver, mais provavelmente os cinemas se interessarão em continuar transmitindo. Não sei se passa ao vivo no Brasil, isto é, na data em que está sendo transmitido, normalmente sábado à tarde, ou com retardo de uma semana. A se verificar. No website do MET tem a descrição completa: http://www.metoperafamily.org/metopera/broadcast/hd_events_next.aspx . As projeções têm legendas, não sei se em português.

De modo geral, têm sido boas produções. Observe-se em particular que o MET está produzindo um novo Anel dos Nibelungos de Wagner nesta e na próxima temporada, com ciclos completos das quatro óperas na primavera (do hemisfério norte) de 2013 provavelmente, ano comemorativo dos 200 anos do nascimento do compositor.

Nesta temporada foi apresentado O Ouro do Reno e ainda agora na primavera farão A Valquíria. Elencos, para o padrão que se espera do MET, deixam um pouco a desejar, mas, quem não tem cão... Não vivem mais Kirsten Flagstad, Birgit Nillson, Hans Hotter ou Lauritz Melchior que fizeram as glórias da casa no passado, mas James Levine, apesar dos males que o afligem, continua brilhando com a orquestra impecável.

No que vem pela frente, na próxima semana Susan Graham canta com Placido Domingo em Iphigenie en Tauride, de Gluck. Promete ser bom. O Conde Ory, uma comédia de Rossini, terá Juan Diego Florez no papel principal e Diana Damrau, uma das mais expressivas coloraturas dos nossos dias, em produção nova. O elenco de Il Trovatore é bem atrativo com Marcelo Alvarez fazendo Manrico e Sondra Radvanovsky, uma soprano verdiana em ascensão no momento, fazendo Leonora. Dolora Zajick como Azucena e Dmitri Hvorostovsky como Conde di Luna dispensam comentários.

Para quem nunca escutou uma Lucia di Lammemoor de Donizetti, talvez valha a pena ir escutar Natalie Dessay fazer o papel, desde que não se espere algo similar ao que Joan Sutherland fazia, mas ainda assim bastante bom. Por fim René Fleming fazendo a Condessa em Capriccio, de Richard Strauss, sua última ópera, é a cereja do bolo. René não tem mais o frescor dos anos iniciais, mas, talvez compense em expressividade com o passar dos anos. Para mim que sou aficionado pelas óperas de Strauss e Wagner, a cena final, quando a Condessa medita sozinha sobre a impossibilidade de separar as palavras da música, que é essencialmente o tema da ópera, é uma das passagens mais exuberantes e refinadas do repertório.

Na próxima temporada haverá um Don Giovanni (outubro desse ano). Aparentemente Gerald Finley faz o papel principal.

[]s


Grato pelas dicas, Rodrigo. As repasso aos amantes do bel canto. Wagner - que a bem da verdade pouco conheço - não está entre meus diletos. Muito pesado. Mas gosto não se discute. Profitez-en!

terça-feira, fevereiro 22, 2011
 
PRESIDENTE FRANCÊS APELA A
RECURSOS DA ERA DE STALIN



Pois... isso de chefes de Estado do Ocidente ficarem se roçando junto a dirigentes árabes acaba caindo mal. Agora que Kadafi mandou bombardear os manifestantes em cidades líbias e promete publicamente matar quem lhe faça oposição, como ficam na fotografia os líderes ocidentais? Tony Blair recebeu afavelmente o ditador e o qualificou como parceiro na guerra contra o terror. Logo Kadafi, que deu apoio aos terroristas que explodiram um avião sobre Lockerbie, matando 270 pessoas. Silvio Berlusconi encontrou em Kadafi uma alma gêmea. Condoleeza Rice foi homenageada pelo assassino com jantar de gala. Obama apertou alegremente sua mão em um encontro na ONU.

Kadafi acaba de declarar que não irá deixar a Líbia, que é "a nação de seus ancestrais", e irá morrer no "honrado solo de seu país". Traduzindo: vai matar mais gente, até que não possa matar mais ninguém. Ditador nenhum gosta de morrer no honrado solo de seu país. Ditador sempre prefere morrer em exílio dourado.

Lula o considerava “amigo e irmão”. Ao longo de seus oito anos de mandato, teve quatro encontros com o ditador. Em um deles posa com Kadafi, ornado com um de seus berrantes parangolés, de um amarelo de doer os olhos. Justifica:

- Quando o primeiro-ministro britânico se reúne com o Kadafi, todo mundo acha o máximo, mas quando eu me reúno com ele, todos criticam - rebateu Lula à época do segundo encontro.

Ou seja: se o premiê britânico abraça um tirano, eu também posso abraçar. Curiosa lógica. Mas o melhor está acontecendo na França. Em 2007, o coronel Muamar Kadafi visitou um de seus congêneres, o presidente Nikolas Sarkozy. Em tais encontros, a praxe é que o evento seja registrado com uma fotografia oficial. Nesta foto, um Sarkozy sorridente, em gesto afável, aperta a mão do ditador, que por sua vez ergue o braço esquerdo em sinal de plena adesão.

Segundo leio no Nouvel Obs, a França aderiu à prática soviética de eliminar da história companhias inconvenientes. Stalin era mestre nisto. É célebre a foto de um discurso de Lênin, em 1920, na qual a foto de Trotsky foi apagada. E isso quase um século antes do photoshop.

Pois bem. No atual site da Presidência da República, que faz a cobertura completa do governo Sarkozy, com mais de dez mil fotografias, a foto do ditador líbio apertando a mão de Sarkozy sumiu. Nem precisa mais retoques, nem fhotoshop. Basta detonar a foto.

Espantoso ver, em 2011, um presidente francês usando recursos stalinistas dos anos 20 do século passado.

segunda-feira, fevereiro 21, 2011
 
QUANDO OS RATOS
FOGEM DO NAVIO



Cronistas metidos a cosmopolitas, aqui no Brasil, estão evocando seus turismos ao Cairo, suas visitas às pirâmides e suas fotos junto a camelos como currículo para deitar cátedra sobre o que está acontecendo no Egito. É um certo narcisismo intelectual, tipo “olha como eu sou viajado e entendo de Oriente Médio”. Pensei em sequer citar o nome destes pavões, para não poluir minha bitácora. Para não fazer mistério, vou citar.

São os dois mais conhecidos medíocres que empestam o jornalismo nacional. O imortal bolsa-ditadura Carlos Heitor Cony e aquele outro cronista extremamente coerente, o Arnaldo Jabor. E por que extremamente coerente? Porque seja quem estiver no poder, ele está sempre com o poder. Já puxou o saco de Fernando Henrique. Quando o Analfabeto subiu ao poder, largou o do Fernando Henrique e passou a alisar o do Analfabeto. Afastou-se de Lula no segundo mandato e agora passou a acarinhar o da presidenta. Jamais vi no jornalismo, ser tão mais vil. Ou tão servil.

Para analisar a situação no Oriente Médio, os argutos analistas começam sempre evocando sua visita às pirâmides. É a decadência do jornalismo tupiniquim.

Também estive no Egito, subi o Nilo de Cairo a Assuã, vi as pirâmides, a Esfinge, Luxor, o Vale dos Mortos. Vi também miséria, imundície, falta de higiene. Vi água saindo da pia de um trem com cor de petróleo. Vi meninos nadando junto às felucas para pedir esmolas aos turistas. Estive em um hotel cinco estrelas, em cuja banheira Cleópatra deve ter-se banhado e, em homenagem à bela, nunca mais foi lavada.

Estive também em outros países árabes. Sempre como turista. Sem conhecer a língua e me comunicando um pouco em inglês, outro tanto em francês e no mais das vezes por gestos. Nada disto me autoriza a uma análise mais profunda do que ocorre por lá. Um jornalista me pergunta: “cara, quem é que está coordenando os levantes nos países árabes? Se é que alguém está coordenando. Tem ideologia? Ou uma coisa é uma coisa e outra é outra bem diferente? Tens idéia do que está acontecendo?”

Idéia nenhuma. E, pelo que leio, ninguém sabe bem do que se trata. Aparentemente, é um contágio midiático. Não conheço suficientemente o mundo árabe para tentar qualquer interpretação. Visitei só três países árabes – Egito, Argélia e Tunísia – e na condição de turista. Conheço mais do Magreb e Oriente Médio a partir do que li na França.

Mas, mesmo olhando de longe, algo se pode afirmar. A maioria dos analistas está equivocada. Não há – nem haverá – nenhuma revolução. O que pode haver é troca de síndico. Há quem compare as atuais convulsões árabes a 1989 e à queda do muro. A comparação não é pertinente. Em 1989, os países socialistas tinham um objetivo definido: pertencer ao Ocidente, partilhar seus valores. Não é o caso das multidões que hoje se rebelam nos países árabes.

Mais importante que contestar um ditador, seria contestar o Islã. Os jornalistas, entusiasmados, falam em revolução democrática. Ora, não há revolução democrática em teocracias. O Egito, por exemplo: que revolução é essa que permite um exílio dourado ao ditador deposto? Isso sem falar que o Exército é tão ou mais corrupto que o Mubarak. Domina desde resorts a condomínios de luxo, produz desde geladeiras, máquinas de lavar roupa, carros e televisões. Os generais utilizam a mão de obra, praticamente gratuita, da soldadesca. Alguém imagina que os generais egípcios vão renunciar a estes privilégios? Ora, contem outra.

Alguém pensa que um muçulmano renunciará às quatro mulheres às quais o Profeta (louvado seja seu nome) lhe concede direito? Algum macho árabe renunciará à sua condição de amo e senhor? Estar por cima é muito confortável e nenhum Mohamed admitirá um dia que sua mulher saia de baixo. Para sair às ruas e bradar por revolução, mulher até que serve. Depois, que volte pra cozinha fazer cuscuz. Os jornalistas que hoje louvam a “revolução democrática” nos países árabes não passam de ingênuos que do Oriente Médio só conhecem camelos e pirâmides. Que, aliás, nem são camelos. Mas dromedários.

Em Paris, conheci egípcios, argelinos e palestinos. Posso afirmar que, tanto no Egito como na Argélia ou Palestina, há muita revolta entre os mais jovens, que não vêem futuro algum pela frente. Não sei como será nos demais países. Enfim, no Iêmen e Sudão, miséria total.

Durante meus dias de Sorbonne Nouvelle, tive um bom convívio com Slimane Zeghidour, autor de La Vie quotidienne à la Mecque - de Mahomet à nos jours. Na época, Giscard d'Estaing estava oferecendo dez mil francos mais passagem de volta a todo imigrante que quisesse retornar a seu país. "Podem me dar a França inteira - me dizia Slimane - Não volto. Não posso levar a França no bolso".

Fala-se muito nos efeitos da Internet e Facebook. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Rádio e televisão também são fatores importantes. Foi mais ou menos o que afundou a União Soviética. O pessoal recebe imagens do Ocidente, seu fausto, suas facilidades, carros, mulheres, sexo e se pergunta: mas e por que eu não tenho isso?

Claro que a Internet tem um efeito multiplicador. Mas já tem gente querendo demais, se perguntando quando ocorrerão as revoltas na Rússia ou China. Devagar nas pedras, companheiros! Otimismo tem seus limites.

Tunísia e Egito derrubaram seus ditadores. Todos bajulados pelo Ocidente. Não só Lula, mas boa parte dos dirigentes europeus, se esfregaram em Ben Ali, Kadafi, Mubarak e tutti quanti! Inclusive Barack Obama. Derrubaram seus ditadores mas e daí? Não vejo como algo possa mudar em países atrelados ao Islã.

Só quero ver no que vai dar a Líbia. Kadafi não tem dificuldade alguma em lidar com banhos de sangue. Não consigo vê-lo largando o osso. Em todo caso, há sinais alentadores. Um ministro e vários embaixadores já pediram demissão do cargo, após anos de cumplicidade com a ditadura. Quando os ratos começam a abandonar o navio, o naufrágio parece ser iminente.

Será? Por enquanto, nada se pode afirmar.

 
NÃO ENTENDI


Ditadores depostos deveriam estar na cadeia, não é verdade? Um dos fatos da “revolução” no Egito que vai além de minha compreensão – e que até agora não foi questionado pela imprensa – é ver Hosni Mubarak, o ditador deposto, gozando de asilo em seu próprio país. Mais ainda, em Sharm-el-Sheik, reduto privilegiado das elites egípcias. Longe da miséria e imundície do Cairo.

Entrevistado por El País, Amr Musa, ministro de Relações Exteriores entre 1991 e 200 de Hosni Mubarak, e secretário geral da Liga Árabe desde 2004, diz não ver razão alguma para levar o deposto ditador do Egito ante os tribunais.

- Por quê? Se há algo contra ele, veremos. Mas agora está afastado e deve ser tratado como ex-presidente, com todo o respeito.

Não entendi a revolução. Se ainda não se sabe se havia algo contra o homem, por que foi deposto?

domingo, fevereiro 20, 2011
 
ESTADÃO ACEITA CENSURA
DE CHANCELER CORRUPTA



Comentei, no início do mês, as viagens da ministra francesa de Relações Exteriores, Michèle Alliot-Marie, junto com seu amante, Patrick Ollier – ministro de Relações com o Parlamento – no ano passado, em um avião particular de propriedade de um empresário pertencente ao círculo íntimo do ditador da Tunísia, Zine El Abidine Ben Ali, recentemente derrubado. Não bastassem estas relações no mínimo suspeitas com a ditadura tunisiana, reveladas pelo Canard Enchainé, o jornal malvado saindo às quarta-feiras descobriu ainda que os pais da chanceler compraram imóveis pertencentes a Aziz Miled, o empresário que lhe deu carona em seu jato particular.

Fosse só isto, seria pouco. Tentando defender-se, a ministra empunhou uma série de mentiras, todas elas desmascaradas não só pela imprensa francesa, como por seu próprio gabinete. Entre outras, assegurou jamais ter tido “algum contato privilegiado” com o ditador Ben Ali. Ora, seus próprios assessores afirmam que Michèle teve um breve colóquio por telefone com Ben Ali, durante sua estada na Tunísia.

Madame Alliot-Marie, cuja cabeça vem sendo pedida pela oposição e jornais franceses – junto com a de seu amante, o ministro de Relações com o Parlamento – deve chegar amanhã toda pimpona ao Brasil, para tentar reverter a decisão de Dona Dilma sobre a compra dos caças Mirage. Pelo menos é o que leio no Estadão. Em tempo: segundo recente sondagem, 54% dos franceses esperam que se demita. Entre os simpatizantes de esquerda, são 82% que esperam sua renúncia. Enquanto isso, indiferente ao temporal, a ministra visita o Terceiro Mundo, como se nada estivesse acontecendo em torno a si.

O Estadão de hoje repete, pela enésima vez, que está sob censura:

''Estado'' está sob censura há 569 dias

Desde 29 de janeiro de 2010, o Estado aguarda definição judicial sobre o processo que o impede de divulgar informações sobre a Operação Boi Barrica, pela qual a Polícia Federal investigou a atuação do empresário Fernando Sarney.

A pedido do empresário, que é filho do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), o jornal foi proibido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DF), em julho de 2009, de noticiar fatos relativos à operação da PF.


Em verdade, está sob censura por que quer. Em dezembro de 2009, Fernando Sarney entrou com pedido de desistência da ação contra o jornal, que não o aceitou. O Estadão prefere o prosseguimento da ação, a fim de que ela tenha seu mérito julgado. É uma opção.

Na mesma edição de hoje, o jornal dos Mesquita publica uma entrevista, feita por e-mail, com a ministra amiga dos amigos do ditador tunisiano. A chanceler impôs uma condição: é proibido falar sobre "viagens pessoais". Roberto Simon, o entrevistador, na introdução à matéria, não deixa de narrar as peripécias da madame. Fala do escândalo por causa de seus laços com o clã do ex-ditador. Fala da viagem no jatinho do empresário ligado ao ditador. Fala também das negociatas de seus pais e do diálogo telefônico com Ben Ali. Mas na hora da entrevista, o repórter acata docilmente a censura imposta pela chanceler. Nenhuma palavrinha sobre viagens.

O Estadão chia todos os dias contra a censura imposta por um rebento do clã Sarney, prolatada por um juiz amigo da quadrilha. Aceita, sem tugir nem mugir, a censura imposta por uma chanceler corrupta em visita ao Brasil. Corrupta e com a reputação em pandarecos.

sábado, fevereiro 19, 2011
 
VOLTANDO ÀS ÓPERAS


Gustavo Rodarte de Queiroz aventa um argumento um pouco insólito para justificar seu gosto pelas óperas:

Caro Janer:

obrigado pela resposta e pelo tópico no blog. Gostei também da polêmica gerada. Pelo menos nesta polêmica apareceram algumas informações e indicações interessantes. (...)

Para finalizar direi algo que talvez não o agrade. O meu interesse por óperas está sendo despertado mais pela atitude de seus apreciadores do que pela ópera em si. Toda forma de arte onde a platéia tem que ficar calada e sem se manifestar me desperta interesse. Essa imobilidade do público demonstra que há algo para ser apreciado e não apenas macaqueado. Uma audiência atenta e comportada demonstra que o que está sendo exibido exige atenção e imersão para ser compreendido e desfrutado. Claro que há exceções, mas as óperas já estão por aí faz algum tempo. Devem ser a regra. Um abraço.


Bom, Gustavo, confesso ser a primeira vez que ouço tal argumentação. Me parece muito pertinente, embora me conste que, nos primórdios do gênero, era bastante comum a platéia vaiar regente e cantores e mesmo atirar-lhes ovos ou tomates. Era quando a ópera era de fato popular. Mais tarde elitizou-se e o público se tornou mais cordato.

Totalmente de acordo com suas razões. Quando vejo multidões cruzando os braços acima da cabeça em shows de música, não consigo deixar de lembrar as turbas que saudavam Hitler com o braço erguido. O fenômeno de massificação é o mesmo.

De minha parte, não suporto espetáculo algum que atraia multidões. A ópera caiu um pouco em meu conceito quando os ditos três tenores começaram a cantar em estádios. Não só em meu conceito, como no de todos aqueles que cultivam o gênero. Ópera não é para estádios. Estádio é para futebol, para a satisfação dos baixos instintos do povão. Ópera é camerística, exige ambiente e acústica especiais. O público de ópera aplaude com a efusão que os intérpretes merecem. Mas ninguém repete os gestos simiescos de um público de rock ou coisa que o valha.

Rodrigo Figueiredo me escreve sobre as peripécias da ópera no Brasil:

Prezado Janer,

como você é um apreciador do gênero, talvez queira investigar e comentar a verdadeira vergonha que se tornou produção de ópera no Brasil nos dias de hoje. Ópera é uma forma artística que traduz diretamente, pela sua complexidade produtiva, o grau de refinamento cultural, assim como a preocupação com qualidade artística, de uma sociedade. Todas grandes cidades do mundo desenvolvido têm casas e temporadas de ópera ativas. Quanto mais sofisticada e rica a cidade, melhor é a ópera que se produz nela. Berlim tem três casas de óperas com produções quase que diárias durante a temporada. Tóquio tem produções fantásticas, mesmo o Japão não sendo um grande produtor de cantores. Ora, estamos no final do verão no Brasil e, a essa altura, não há absolutamente nenhuma programação nos websites dos dois supostos teatros de ópera das duas maiores cidades do país. Em cidades como Nova Iorque, Londres ou Berlim, a temporada já teria sido publicada no inverno anterior e as assinaturas mais favoráveis em preço já estariam praticamente esgotadas.

Não é preciso se estender tanto na comparação. Basta olhar o Colón de Buenos Aires e a ópera em Santiago. Pequenas temporadas, já que o Colón não tem mais os recursos que tinha, mas perfeitamente decentes, com óperas siginificativas do repertório e sobretudo, elencos de boa qualidade. Não os mais caros, mas hoje em dia tem inúmeros jovens de grande talento começando carreira com cachês não tão altos ainda. Não é possível que em São Paulo, a maior e mais rica cidade da América Latina, não se produza ópera de razoavelmente boa qualidade. Por que não fazer parcerias com o Colón e Santiago, aproveitando a ida de cantores do hemisfério norte? Certamente haverá cantores no Brasil que também podem desempenhar bem. O argumento de que não há público é completamente falso. Em SP se pagou no ano passado $300 por 2 horinhas de Yo-Yo Ma e ambos os recitais estavam esgotados meses antes. Não há público então para ópera a $100-$200? É claro que há, desde que hajam produções interessantes com elencos razoáveis.


Público há, Rodrigo, particularmente nas grandes cidades. Mas não sei se sustentaria um movimento operístico intenso. A ópera nasceu na Europa e faz parte da cultura européia. No Brasil, é produto de importação.

Há dois anos, fui ver a Cavalleria Rusticana, no Theatro São Pedro, aqui em São Paulo. No terceiro dia de apresentações, a sala ainda estava lotada. Mas há um certo descaso oficial em relação à ópera. Isso sem falar nos melindres das divas. O Neschling, por exemplo, ao sentir-se desempregado, criou a Companhia Brasileira de Ópera para, após um ano, jogá-la ao relento. Foi para a Europa. Segundo suas declarações, com passagem só de ida.

Ou seja, é dinheiro e trabalho jogados ao lixo. Tenho uma amiga harpista que desistiu de tocar na Osesp porque a condição era que emprestasse sua harpa à orquestra. Ora, ninguém empresta uma harpa a uma orquestra. Enquanto isso, havia duas harpas encalhadas por questões burocráticas na Alfândega. E por aí vai.

Quem quiser fazer carreira aqui deve buscar a Europa, Canadá, Estados Unidos. À propósito, tive a honra de almoçar com a Laura de Souza, soprano que fez a Santuzza, na Cavalleria. (Eu imaginava que uma soprano falasse sempre em trinados, como a Rainha da Noite. Para meu espanto, falava como a gente). Eu a conheci quando menina, em Santa Maria, Rio Grande do Sul. Ela fez carreira, mas teve de sair. Estudou em Hamburgo, Paris e Munique. Integrou o elenco estável do Staatstheater Kassel e do Deutsches Nationaltheater Weimar. Apresentou-se em diversas salas, na Dinamarca, Alemanha, Bielorússia, Estados Unidos. Uma carreira assim ela não faria estando no Brasil.

Isso sem falar que até ópera envolve corrupção no Brasil. Há uns bons dez anos ou talvez mais, o Teatro Municipal cá de São Paulo apresentou uma Traviata. Minha mulher era a primeiríssima da fila, no dia em que começaram a vender os ingressos. Só conseguiu o lugar do ceguinho, aquele lá em cima, nos poleiros, de onde não se vê nada. Metade dos ingressos havia sido distribuídos pela prefeitura àquelas gentes que só vão a óperas para exibir vestidos e fingir que gostam de ópera. A outra metade, aos cambistas. Quando cheguei ao teatro, cambistas me ofereciam na rua, pelo dobro ou triplo do preço, o lugar que minha mulher fora honestamente buscar na bilheteria.

Desisti da ópera. Queixar-me a quem? A polícia estava frente ao teatro. Para proteger os cambistas. Não há refinamento cultural no Brasil, esta é nossa circunstância. Pindorama está mais para Big Brother, Xuxa, Gugu Liberato, Lula, Sílvio Santos. Ópera mesmo, só em casa. Ou na Europa.

sexta-feira, fevereiro 18, 2011
 
QUANTOS CADÁVERES SÃO NECESSÁRIOS
PARA A FOLHA DEFINIR UMA DITADURA?



A Folha on line de hoje traz uma arte curiosa:

ENTENDA A ONDA DE REVOLTAS
Após Tunísia, protestos se alastram e ameaçam autocracias da região


A notícia lista uma série de países, que vão do Senegal ao Iêmen, passando pelo Magreb e Oriente Médio. Ou seja, as ditaduras já começam a ser chamadas de autocracias.

O valente Clóvis Rossi também aderiu ao eufemismo:

Mas Le Sueuer prefere ver nos eventos que se desdobram no mundo árabe/muçulmano o fim do que ele chama de "síndrome da desordem da era pós-colonial". Significa que os autocratas do mundo árabe aderiam a uma filosofia de governo fora de moda, "de acordo com a qual o autoritarismo é a única cura para desafios políticos internos ou externos".

Quantos cadáveres serão necessários para que as ditaduras árabes passem a ser chamadas de ditaduras?

 
UMA MODESTA PROPOSTA
PARA LEVAR A CLASSE
PROLETÁRIA AO PARAÍSO



A Câmara precisou de mais de doze horas para aumentar em 35 reais o salário mínimo. De 510 reais, foi para 545. O aumento foi de 6,86%. Para aumentar em 10.211 reais os salários de senadores e deputados, em dezembro passado, foram necessários apenas cinco minutos. Não houve dissidência alguma, nem foi preciso comprar partidos com sinecuras. De 16.512 reais, nossos impolutos parlamentares passaram a ganhar 26.723 reais. O aumento foi de 61,8%. Mais de dez vezes o aumento do mínimo. É bom lembrar que estes senhores não recebem doze ou treze salários por ano, como o comum dos mortais. Mas quinze.

Isso sem falar nos subsídios para contratação de assessores (60 mil por mês) mais auxílios de moradia, telefonia, passagens aéreas e escritórios nos Estados, que elevam os custos de um parlamentar para mais de cem mil reais. Por mês.

Alguém ainda lembra do mensalão, aquela compra descarada de deputados pelo PT, que agora o PT nega que tenha existido? Pois bem: para evitar que fossem concedidas mais quinze merrecas (560 reais) aos que ganham salário mínimo, o governo comprou partidos inteiros com promessas de prebendas nos ministérios, Banco do Brasil, Funasa, Furnas e Eletronorte. Em que difere esta compra de parlamentares venais da compra dos parlamentares venais do mensalão? Deveria talvez chamar-se anualão, com perdão pelo neologismo? Ou quem sabe quinqüenão?

Como se quinze reais por mês – 50 centavos por dia – fizessem diferença para quem ganha uma miséria. Em Cuba, onde o salário de um médico é de 30 reais, obviamente faria. Mas, apesar dos pesares, não estamos em Cuba.

Estranho povinho este nosso. É capaz de comover-se até as lágrimas quando um jogador balofo abandona o futebol. Não experimenta indignação alguma quando um governador por dez dias recebe uma gorda pensão perpétua. Quando deputados que ganham cem mil reais por mês discutem se darão mais 50 centavos por dia a um operário. Mais ainda: em troca de sinecuras, negam até mesmo esta mísera esmola, que não paga sequer um cafezinho.

Em um gesto de subserviência, para evitar desgastes sazonais do governo, a Câmara aprovou projeto que transfere para a Presidência da República até 2015 a prerrogativa de definir, por decreto, o salário mínimo. A meu ver, para evitar esses dissabores de cada ano, os senhores deputados poderiam muito bem aprovar projeto que vinculasse o percentual de aumento do salário mínimo ao percentual de aumento de seus próprios proventos.

A classe proletária finalmente iria ao paraíso.

quinta-feira, fevereiro 17, 2011
 
In memoriam:
OS CAUSO DAS ESCRITURA



Sérgio Jockymann *


Pois não sei se já les contei os causo das Escritura Sagrada. Se não les contei, les conto agora. A história essa é meio comprida, mas vale a pena contá por causa dos revertério. De Adão e Eva acho que não é perciso contá os causo, porque todo mundo sabe que os dois foram corrido do Paraíso por tomá banho pelado numa sanga.

Naqueles tempo, esse mundaréu todo era um pasto só sem dono, onde não tinha nem dele nem meu. O primeiro índio a botá cerca de arame foi um tal de Abel. Mas nem chegou a estendê o primeiro fio porque levou um pontaço no peito do irmão dele, um tal de Caim, que tava meio desconforme com a divisão. O Caim, entonces, ameaçado de processo feio, se bandeou pro Uruguay. Deixou o filho dele, um tal de Noé, tomando conta da estância.

A estância essa ficava nas barranca de uma corredera e o Noé, uns ano despois, pegou uma enchente muito feia pela frente. Cosa munto séria. Caiu uma barbaridade de água. Caiu tanta água que tinha até índio pescando jundiá em cima de cerro. O Noé entonces botou as criação em cima de uma balsa e se largou nas correnteza, o índio velho. A enchente era tão braba que quando o Noé se deu conta a balsa tava atolado num banhado chamado Dilúlvio.

Foi aí que um tal de Moisés varou aquela água toda com vinte junta de boi e tirou a balsa do atoleiro. Bueno, aí com aquele desporpósito, as família ficaram amiga. A filha mais velha do Noé se casou-se com o filho mais novo do Moisés e os dois foram morá numa estância muito linda, chamada estância da Babilônica. Bueno, tavam as família ali, tomando mate no galpão, quando se chegou um correntino chamado Golias, com mais uns trinta castelhano do lado dele. Abriram a cordeona e quiseram obrigá as prenda a dançá uma milonga.

Foi quando os velho, que eram de muito respeito, se queimaram e deu-se o entrevero. Peleia braba, seu. O correntino Golias, na voz de vamos, já se foi e degolou de um talho só o Noé e o velho Moisés. E já tava largando planchaço em cima do mulherio quando um piazito carretero, de seus dez ano e pico, chamado Davi, largou um bodocaço no meio da testa do infeliz que não teve nem graça. Foi me acudam e tou morto. Aí a indiada toda se animou e degolaram os castelhano. Dois que tinham desrespeitado as prenda foram degolado com o lado cego do facão. Foi uma sanguera danada. Tanto que até hoje aquele capão se chama capão do Mar Vermelho.

Mas entonces foi nomeado delegado um tal de major Salomão. Homem de cabelo nas venta, o major Salomão. Nem les conto! Um dia o índio tava sesteando quando duas velha se bateram em cima dum guri de seus seis ano que tava vendendo pastel. O major Salomão, muito chegado ao piazito, passou a mão no facão e de um talho só cortou as velha em dois. Esse é o muito falado causo do Perjuízo de Salomão que contam por aí.

Mas, por essas estimativas, o major Salomão, o que tinha de brabo tinha de mulherengo.

Eta índio bueno, seu. Onde boleava a perna, já deixava filho feito. E como vivia boleando a perna, teve filho que Deus nos livre. E tudo com a cara dele, que era pra não havê discordância. Só que quando Deus nosso Senhor quer, até égua véia nega estribo. Logo a filha das predileção do major Salomão, a tal de Maria Madalena, fugiu da estância e foi sê china de bolicho. Uma vergonhera pra família. Mas ela puxou à mãe, que era uma paraguaia meio gaudéria que nunca tomo jeito na vida. O pobre do major Salomão se matou-se de sentimento, com uma pistola Eclesiaste de dois cano.

Mas, vejam como é a vida. Pois essa mesma Maria Madalena se casou-se três ano despois com um tal de coronel Ponciano Pilatos. Foi ele que tirou ela da vida. Eu conheço uns três caso do mesmo feitio e nem um deles deu certo. Como dizia muito bem o finado meu pai, mulher quando toma mate em muita bomba, nunca mais se acostuma com uma só. Mas nesses contraproducente, até que houve uma contrapartida. O coronel Ponciano Pilatos e a Maria Madalena tiveram doze filho, os tal de aposto, que são muito conhecido pelas caridade que fizeram. Foi até na casa deles que Jesus Cristo churrasqueou com a cunhada de Maria Madalena, que despois foi santa muito afamada. A tal de Santa Ceia.

Pois era uns tempo muito mal definido. Andava uma seca braba pelos campo. São José e a Virge Maria tinham perdido todo o gado e só tavam com uma mula branca no potrero, chamada Samaritana. Um rico animal, criado em casa, que só faltava falá. Pois tiveram que se desfazê do pobre. E como as desgraça quando vem, já vem de braço dado, foi bem aí que estouraram as revolução.

Os maragato, chefiado por uma tal de coronel Jordão, acamparam na entrada da Vila. Só não entraram porque tava lá um destacamento comandado pelo tenente Lazo aquele mesmo que por duas vez foi dado por morto. Mas aí um cabo dos provisório, um tal de cabo Judas, se passou-se pros maragato e já se veio uns tal de Romano, que tavam numas várzeas, e ocuparam a Vila.

Nosso Senhor foi preso pra ser degolado por um preto muito forte e muito feio chamado Calvário. Pois vejam como é a vida. Esse mesmo preto Calvário, degolador muito mal afamado, era filho da velha Palestina, que tinha sido cozinheira da Virge Maria. Degolador é como cobra, desde pequeno já nasce ingrato. Mas entonces botaram Nosso Senhor na cadeia, junto com dois abigeatário, um tal de João Batista e o primo dele, Heródio dos Reis. Os dois tinham peleado por causo de uma baiana chamada Salomé e no entrevero balearam dois padre, monsenhor Caifás e o cônego Atanásio.

Mas aí veio uma força da Brigada, comandada pelo coronel Jesus Além, que era meio parente do homem por parte de mãe e com ele veio mais três corpo de provisório e se pegaram com os maragatos. Foi a peleia mais feia que se tem conhecimento. Foi quarenta dia e quarenta noite de bala e bala.

Morreu três santo na luta: São Lucas, São João e São Marco. São Mateus ficou três mês morre não morre, mas teve umas atenuante a favor e salvou-se o índio. Nosso Senhor pegou três balaço, um em cada mão e um que varou os pé de lado a lado. Ainda levou mais um pontaço do mais velho dos Romano, o César Romano, na altura das costela. Ferimento muito feio que Nosso Senhor curou tomando vinagre na sexta-feira da paixão. Mas aí, Nosso Senhor se desiludiu-se dos home, subiu na Cruz, disse adeus pros amigo e se mandou-se de volta pro céu. Mas deixou os dez mandamentos, que são cinco e que se pode muito bem acolherá em dois: não se mata home pelas costa, nem se cobiça mulher dos outros pela frente.

* Sérgio Jockymann, escritor, jornalista e dramaturgo gaúcho, morreu ontem em Campinas (SP), aos 80 anos, de insuficiência renal. Escreveu para Zero Hora, Folha da Tarde e Correio do Povo, de Porto Alegre. Foi também autor de telenovelas, seriados de TV e peças de teatro. O conto supra foi publicado pela primeira vez na antologia Assim Escrevem os Gaúchos, organizada por este que vos escreve, em 1976.

quarta-feira, fevereiro 16, 2011
 
FEMINISTAS PEDEM CABEÇA
DE BERLUSCONI NA ITÁLIA
DA DEPUTADA CICCIOLINA



Volto à affaire Berlusconi. Leitores mais chegados ao cinema já devem ter visto o belíssimo Mediterrâneo, filme de Gabrielle Salvatores. A história se passa na década de 40, quando um grupo de soldados italianos é mandado para uma ilha da Grécia, para proteger o lugar. Os anos passam e eles são esquecidos lá.

Belíssimo, disse. Mas mentiroso. Ilha grega é uma maravilha para se fazer turismo. Morar numa delas é outro papo. Certo, existem as grandes ilhas como Creta, Lesbos, Mikonos e mesmo Santorini, onde o turismo dá um ar de cosmopolitismo às cidades. Mas pequena ilha grega é um desastre. Enfim, Salvatores faz de sua ilhota um pedaço de paraíso, onde os soldados italianos fogem da civilização e do agito das metrópoles. Já no início do filme, o diretor alerta seus espectadores: dedica sua obra aos que buscam evasão.

Um dos belos momentos do filme é quando Vassilissa – interpretada por Vana Barba, miss Grécia 1984 – se apresenta aos soldados:
- Io sono la puttana.

Uma escala é feita para que Vassilissa atenda os italianos. O problema surge quando um oficial se apaixona pela moça e repele à bala os demais clientes. A puttana é promovida à esposa. (Esposa é palavra que normalmente não uso, soa à mulher de corretor de imóveis ou membro do Rotary Club. Mas no caso cabe).

O filme é mentiroso, dizia. Salvatores constrói um paraíso artificial, onde tudo é paz e amor. Se é para definir uma ilha grega, prefiro Zorba, o Grego, de Michael Cacoyannis, baseado no romance de Nikos Kazantzakis. Seja como for, Mediterrâneo fascina, como toda mentira contada com arte. Vassilissa é uma menina meiga, toda pureza e virtudes.

Desde tempos imemoriais, a prostituta é personagem constitutiva de todas as sociedades. Foi louvada tanto por Tomás de Aquino como por Sade. Diz o aquinata:

“Eliminai as mulheres públicas do seio da sociedade e a devassidão a perturbará com desordens de toda a espécie. São as prostitutas, numa cidade, a mesma coisa que a cloaca num palácio; suprimi a cloaca e o palácio tornar-se-á um lugar sujo e infecto”.

O divino marquês é mais efusivo:

“Chamam-se assim, minha muito querida, essas vítimas públicas do deboche dos homens, sempre prontos a entregar-se ao seu temperamento ou ao seu interesse; felizes e respeitáveis criaturas que a opinião pública infama e a volúpia coroa, e que muito mais necessárias à sociedade do que as recatadas, têm a coragem de sacrificar, para servi-la, a consideração que essa sociedade ousa negar-lhes injustamente”.

Putas. Putae, puteus. Poço, cisterna. Se hoje elas são marginalizadas, escondidas sob o eufemismo de massagistas, já foram hetairas, aulétrides e hieródulas, e legaaram à posteridade nomes imortais: Lâmia, Aspásia, Frinéia, Thaís, Laís. Sólon foi o primeiro legislador a reconhecer suas nobres funções, merecendo de Filémon justa homenagem em sua oração fúnebre:

“Por isto te tornaste um benfeitor de teus cidadãos, reconheceste nessa instituição só o bem e a tranqüilidade do povo. Ela se tornava absolutamente necessária numa cidade em que a juventude turbulenta já não se podia conter, nem obedecer à mais imperiosa lei da natureza. Instalando mulheres em certas casas, preveniste desgraças e desordens de outra forma inaceitáveis”.

Nos dias em que vivi na Suécia, as profissionais eram vistas como beneméritas, assistentes sociais que supriam as carências dos desvalidos do ponto de vista sexual ou emocional. Hoje, no reino dos Sveas, prostituição é crime. Isto é, crime para o cliente. A prostituição continua sendo permitida. Toda mulher pode vender seu corpo. O que não se pode é comprá-lo.

Berlusconi será julgado, em abril próximo, por ter pago pelos favores de uma profissional de alto bordo. Seu pecado foi ter usado os serviços da menina quando ela tinha 17 anos. Como se 17 ou 18 anos fizessem diferença no ofício. Em meus dias de Paris, final dos anos 70, a polícia francesa prendeu uma certa Madame Claude, famosa por enviar menininhas para os xeiques árabes. Mas menininhas de 12, 13 e 14 anos. Um policial perguntou por que ela não mandava meninas de 18, assim estaria livre de complicações legais. Respondeu a Madame: mais Monsieur, à cet âge-là elles sont déjà à la retraite.

Traduzindo: nessa idade elas já estão aposentadas. Concluindo: as feministas italianas, que pedem a cabeça do Cavaliere, estão sendo hipócritas. Quem detém o poder, desde John Kennedy a François Mitterrand, tende a ser mulherengo. Pode ser que não pague em moeda sonante, mas sempre acaba pagando em mordomias. Ninguém jamais pediu a cabeça destes ilustres senhores, que usaram o poder que detinham para bem folgar.

Seja como for, é incongruência pedir a prisão de um primeiro-ministro que gosta do bom esporte em um país que elegeu como deputada uma atriz pornô, a húngara Ilona Staller, mais conhecida como Cicciolina.

terça-feira, fevereiro 15, 2011
 
FELLINI & BERLUSCONI


Nas postrimerias do século passado, comentei este estranho poder da arte, que absolve todas as transgressões. Falava de Lolita. Meio século depois de publicado, o romance conserva seu potencial subversivo. Este vigor não decorre da obra em si. Mas da oposição a uma época que, de repente, parece ter optado pela hipocrisia e conservadorismo. Com seu romance, Nabokov imortalizou a personagem da adolescente sensual, que desde há muito tem perturbado homens maduros.

Para começar, foram as prediletas de Lewis Carrol, não por acaso um escritor que cultivou o gênero infanto-juvenil. Thomas Mann, por sua vez, criou uma versão masculina da adolescência erótica, com Tadzio, em Morte em Veneza, novela levada ao cinema por Visconti. Tadzio tem quatorze anos e espicaça o desejo do senil Aschenbach. Lolita tem doze. Wilhelm von Gloenden, em Taormina, fotografa adolescentes nus com um realismo que Visconti jamais ousaria. Segundo as más línguas, a fama dos meninos de Von Gloenden teriam feito até mesmo Nietzsche tomar o rumo da Sicília.

Tanto os livros de Mann e Nabokov, como os filmes a partir deles gerados, marcaram a sensibilidade de gerações. Mas vá um comum mortal assumir as preferências de Aschenbach ou Humbert Humbert. Será execrado como monstro pela mesma sociedade que aplaudiu os livros e os filmes. Com restrições, é verdade. Se Mann não teve maiores problemas com a censura, Nabokov teve não poucas dificuldades para editar seu livro. Mas, apesar do moralismo contemporâneo, a obra aí está. Em 2003, com uma tiragem de um milhão e cem mil exemplares, Lolita foi distribuída pela Folha de São Paulo aos compradores e assinantes do jornal. De graça.

As prostitutas sempre foram cantadas, tanto na literatura como na pintura ou na música. Boule de Suif, de Maupassant, até hoje nos encanta, foi inclusive glosada por Chico Buarque em Geni e o zepelim. Quem não se fascina pelas prostitutas de Iama, de Kuprin? Ou pela Sonia Siemionova, de Crime e Castigo? Ou pela Alejandra Vidal Olmos, de Ernesto Sábato? Quem não se enternece com a personagem interpretada por Shirley MacLaine, em Irma, la douce, de Billy Wilder? Quem não lembra de Adriana, em La Romana, de Alberto Moravia, novela levada ao cinema por Luigi Zampa? Só quem não leu o livro ou não viu o filme.

Sem ir mais longe, uma das glórias literárias da Itália, Pietro Aretino, "figlio di cortigiana con anima di re", autor de O Diálogo das Prostitutas, era admirado por personalidades como o papa Leão X, que lhe garantia uma vida de rei, como ele mesmo gostava de dizer.

Falar em cinema italiano, Federico Fellini foi um dos grandes cantores das prostitutas. Temos a Saraghina de 8 1/2, a Volpina e a Gradisca de Amarcord, a Maddalena de La Dolce Vita. Isso sem falar na personagem de As Noites de Cabíria, na interpretação comovente de Giulleta Masina. Para Fellini, “a prostituta é o contraponto essencial da mãe italiana. Não se pode conceber uma sem a outra. Da mesma forma que nossa mãe nos alimentou e vestiu, a puta nos iniciou na vida sexual”.

Em Casanova, Fellini canta o reverso da medalha. Muito já escrevi sobre Giacomo Casanova di Seingalt (1725 - 1798), que passou sua vida correndo atrás de saias, de Veneza a Paris, de Lisboa a Moscou, naqueles dias em que o meio de transporte mais confortável era uma carruagem puxada a cavalos. O outro era apenas o cavalo. Ao longo de sua vida, teria recebido as homenagens de cerca de duas mil mulheres. Quem for procurar o verbete na Internet, vai encontrar referência a 122 ou 123 mulheres. Isso é bobagem, cifra de qualquer moleque contemporâneo.

Aos sessenta anos, Casanova começa a escritura de suas memórias. “Agora que não posso mais viver, sento e escrevo sobre o que vivi”. Sem jamais ter pretendido fazer literatura, Casanova entra na História da Literatura, em função de sua vida aventureira. Freqüentou cortes e bordéis, prisão e caserna, clero e políticos, conventos e salões literários. Quem quiser se debruçar sobre o século XVIII - seja historiador, seja sociólogo, seja mero curioso - terá em Casanova um excelente guia. Em momento algum faz penitência de seu passado. “Cultivar o prazer dos sentidos foi sempre minha principal preocupação; nunca encontrei outra coisa mais importante. Sentindo-me nascido para o belo sexo, sempre o amei e por ele me fiz amar quanto pude. Apreciei também os bons manjares com transporte, e sempre me apaixonaram todos os objetos capazes de me excitar a curiosidade”.

O conquistador da Sereníssima República de Veneza não fica exatamente bem retratado no filme de Fellini, é visto como uma espécie de autômato na hora da cama, o que nada tem a ver com o homem que foi em vida. Don Giovanni, ente de imaginação, suscitava o ódio de suas conquistas, pois lhes oferecia amor e as humilhava. Casanova oferecia apenas prazer e não machucava ninguém. Seja como for, Fellini não ignorou estes dois personagens que ocorrem em todas as sociedades, as mulheres que vendem seu corpo e os homens que os compram. Não que Casanova fosse especializado em profissionais do sexo. Mas se fosse preciso pagar, pagava.

Tudo isto para comentar o insólito protesto das feministas que – logo na Itália de Aretino, Casanova, Moravia, Visconti e Fellini – pedem a demissão de Silvio Berlusconi, acusado de denegrir a imagem feminina ao se envolver em escândalo sexual com adolescentes. Leio na Folha de São Paulo:

Centenas de milhares de mulheres italianas e apoiadores saíram às ruas em várias cidades do país e do mundo ontem para protestar contra o premiê Silvio Berlusconi, demonstrando indignação pelo escândalo sexual protagonizado pelo premiê com uma adolescente.

Segundo os organizadores da mobilização, os protestos tinham a intenção de falar contra a imagem "lesiva" que Berlusconi produz para a população feminina. O movimento foi chamado de "Se não agora, quando?" e surgiu espontaneamente na internet com o apoio de grupos feministas.

Paralelamente à concentração em Roma, foram realizadas outras com o mesmo tema, em Milão, Turim, Palermo, Nápoles, Trieste, Bolonha, entre outras 250 cidades italianas, que deram destaque para a mulher, que falaram alto e claro contra o primeiro-ministro. Anteontem, manifestações em 30 cidades italianas já tinham pedido a renúncia do premiê.


Cá entre nós, quem não gosta de adolescentes? Tanto Aschenbach como Humbert Humbert os adoravam, e não os condenamos por isso. Quando acontece na vida real, anátema seja! José também gostava. Maria tinha treze anos quando concebeu o Cristo. Imagino que as feministas nada tenham contra José. Nem contra o Paráclito, suponho.

Que se queira afastar o premiê do poder por suas falcatruas políticas, financeiras ou fiscais, entendo. Só o que faltava pedir sua demissão por suas festas, no país cujos vates cantaram em prosa e verso as profissionais do sexo.

segunda-feira, fevereiro 14, 2011
 
REVOLUÇÃO? ONDE?


Deus morto, escreve Albert Camus, é preciso transformar e organizar o mundo com as forças do homem. A partir deste dado, começa suas reflexões sobre a revolta histórica. Urge fazer uma distinção entre a revolução e o movimento de revolta. Spartacus não é um revolucionário, ele não quer mudar os princípios da sociedade romana. Ele se bate para que o escravo tenha direitos iguais aos do senhor, recusa a servidão e quer a igualdade com seu amo. Esta vontade de igualdade o conduzirá ao desejo de tomar o lugar do amo.

A revolução, por sua vez, é a mudança total. A partir da concepção astronômica de revolução – movimento que fecha um ciclo, que passa de um regime a outro após uma translação completa – Camus precisa sua definição. A revolução implica uma mudança do regime de governo. Para que uma mudança econômica seja uma revolução econômica é preciso que ela seja ao mesmo tempo política. Sejam seus meios sangrentos ou pacíficos, é a mudança política, a mudança de governo, que distinguirá a revolução da revolta. Esta dicotomia fundamental é posta em relevo pela frase célebre, citada por Camus: "Não, Sir, não se trata de uma revolta, mas de uma revolução".

Um wishful thinking perpassa a imprensa do Ocidente, nestes dias em que Tunísia e Egito derrubaram suas ditaduras e este movimento tende a espalhar-se por outros países árabes e africanos. As manchetes todas falam em revoluções democráticas. Cabem duas perguntas. Primeiro, como saber se são revoluções e não meras revoltas? Isto só o tempo dirá. O que temos, por enquanto, tanto na Tunísia como no Egito, é a deposição de dois ditadores. Que, diga-se de passagem, durante décadas a imprensa e os governos ocidentais trataram como presidentes. Só agora, em 2011, descobriram que eram ditadores.

O mesmo ocorreu com Cuba. Durante pelo menos três décadas de óbvia ditadura, Fidel mereceu o título de presidente. Em meus dias de Folha de São Paulo, nos anos 90, após trinta anos de férrea ditadura, Castro ainda era presidente. Meu editor fazia malabarismos para justificar esta condição. Em Cuba há eleições, dizia, e se Fidel foi eleito, é presidente. O que ele escamoteava era a natureza das eleições, nas quais não podiam se apresentar opositores. Ditadores adoram eleições. É a chance de se elegerem com 90% ou mais de votos.

Com o passar dos anos, com a queda do muro, com o esfacelamento da União Soviética e o desmoronamento do comunismo, Fidel virou mala sem alça. Mas foram necessárias pelo menos décadas para que a imprensa tupiniquim descobrisse que a ditadura cubana era uma ditadura. Longa é a viagem das esquerdas até o entendimento.

Timidamente, alguns jornais já começam a chamar Abdelaziz Bouteflika de ditador. Quer dizer que não era ditador? Quantos cadáveres de algerianos serão necessários para que Bouteflika deixe se ser presidente?

Segunda pergunta: que história é essa de revoluções democráticas? Democracia não é apenas direito ao voto. Mas também igualdade de direitos para todos os cidadãos, livre imprensa e livre expressão do pensamento. Como falar de democracia em países onde mulheres são castradas já na infância, onde o macho tem legalmente o direito a quatro fêmeas e a mulher pode ser lapidada se ousar trocar de cama? Onde homossexuais podem ser condenados à morte? Onde qualquer opinião desairosa sobre a religião vigente constitui crime? Onde a imprensa não pode contestar o governo? Onde as leis não são as normas elaboradas por um Parlamento, mas emanações de livros religiosos?

Não se pode falar de democracia em teocracias. Não se passa de uma teocracia para uma democracia da noite para o dia. Democracia exige longa educação através das décadas. Nunca houve, em países árabes, o que se possa chamar de democracia. Ora, um bruto não se transforma, em um passe de mágica, em cidadão culto e liberal. Os países árabes só conhecerão democracia no dia em que se libertarem do Islã.

Isto não será para amanhã. A meu ver, nem para depois de amanhã. O Ocidente precisou de séculos para libertar-se da opressão da Igreja Católica. A Hégira está quatrocentos anos atrasada em relação à era cristã. No ritmo em que marcha a História, quem sabe lá pelos 2.400, 2.500... E olhe lá!

Volto ao Egito. Hosni Mubarak foi deposto como ditador, corrupto e ladrão. Sua fortuna, segundo os jornais, estaria avaliada em 70 bilhões de dólares, o que faria dele o homem mais rico do mundo. Sempre há o que sugar de um país pobre. Onde está Mubarak? A meu ver, após a “revolução” vitoriosa, deveria estar na cadeia. Está no entanto – pelo que sabemos até hoje – em seu próprio país, livre como um passarinho. Mais precisamente, em Sharm el-Sheikh, balneário das elites egípcias e do jetset internacional. Longe da imundície e da miséria do Cairo.

O Exército assumiu o poder vacante no Egito. Querem os militares mudar os princípios da sociedade egípcia? Claro que não querem. O que houve foi uma troca de síndico. Que revolução é essa que abriga o ditador deposto em um balneário de luxo? Ora, contem outra. Essa não convence.

domingo, fevereiro 13, 2011
 
AINDA AS ÓPERAS


Do Rodrigo Figueiredo, recebo:

Prezado Janer,

leio sua coluna e percebo o tom diminutivo sobre o assunto em questão. Parece-me que nesse caso você se engana. A coleção é perfeitamente balanceada e procedente. Várias gravações com elencos e maestros importantes que podem dar uma boa idéia do que é boa ópera ao público brasileiro, em geral ignorante sobre isso. O argumento CD x DVD é pouco relevante, ainda mais se considerando o preço tão favorável que os volumes estão sendo oferecidos. O fato de constar uma ou outra ópera desconhecida, como Manlio de Vvaldi, não tira o mérito do conjunto.

Eu até esperava pior, mas é um trabalho bastante útil e honesto. São gravações não tão recentes, provavelmente com direitos autorais menos custosos, mas nem por isso irrelevantes. Não creio que mereça a crítica que você faz. Mozart está perfeitamente representado com Nozze e Zauberfloete, dois aspectos diferentes do estilo dele. Don Giovanni é importante, mas, não absolutamente imprescindível em uma mera amostra de 25 itens. Wagner está corretamente representado. Muito poucos no Brasil saberão talvez qual a importância de Moedl como soprano wagneriano.

As óperas que você cita como imprescindíveis não o são necessariamente na produção dos respectivos compositores. Não que não sejam belas óperas e eu também gosto de todas elas, mas, certamente Nabuco não é mais importante do que Don Carlo, Simon, Otelo, Macbeth ou Falstaff. Isso sim se poderia dizer, não há nada do período final de Verdi, mas, não é um impactante tão sério.

Você se engana também quanto a Fidelio. De fato Beethoven nunca se interessou muito pelo gênero, nem Fidelio é o que ele fez de melhor. Pode não lhe agradar, nem me agrada também, mas não é pouco conhecida. Tem sido regularmente apresentada e a grande maioria dos tenores dramáticos, ou mesmo wagnerianos, tem o papel no seu repertório, dada sua importância no período.


Não, meu caro Rodrigo, não me desagrada a proposta da Folha. Posso até ter alguma restrição à seleção, isso depende de gosto. Entendo o argumento dos custos de direito de autor. Mas é óbvio que DVD seria melhor. Se a época nos permite ter uma ópera encenada dentro de casa, não vejo porque apenas ouvi-la.

Certo, há interpretações que não estão em DVD e que farão falta a um melômano exigente. Mas a coleção da Folha, a meu ver, é dirigida ao grande público, tanto que é distribuída nas bancas. Não vejo o preço de um DVD como empecilho para quem curte o gênero. Uma das Carmens que comprei recentemente em Paris, da Royal Opera House, custou uma bagatela, 15 euros. 33 reais. A belíssima versão do Francesco Rosi, 20 euros. 45 reais. Argent de poche para os cultores do bel canto.

Nestes dias de rock, tal iniciativa só merece louvores. Mesmo assim, sou mais DVD. E bato pé: Don Giovanni não pode faltar em nenhuma antologia.

Last but not least, mais uma dica do Rodrigo:

Se você quiser desfrutar disso e indicar para seus leitores, existe uma infinidade de radios transmitindo hoje na internet. Todas as rádios européias e americanas especializadas em música clássica transmitem com qualidade bastante razoável (havendo interesse, passo uma lista). Particularmente no que diz respeito a ópera, existe uma rádio em São Francisco que transmite 24 horas produções integrais.

http://www.1.fm/Station/opera/Default.aspx

Além disso uma outra fonte útil é http://www.operacast.com, que compila para a semana o que está sendo transmitido de ópera mundo afora diariamente.



Naturalmente que as vezes não se tem bom som no computador, mas um fone de ouvido resolve e hoje os de razoável qualidade não custam tanto. Ou então existem pequenos aparelhos, chamados de radios Internet, que se acoplam ao stereo e se comunicam com o computador ou mesmo diretamente com o roteador da conexão com a Internet.

sábado, fevereiro 12, 2011
 
SOBRE ÓPERAS E SANDUÍCHES


Minha opção pelos DVDs ocorreu neste século. Até que foi rápida, a nova tecnologia recém tinha chegado ao Brasil. Foi mais ou menos por acaso. Meu leitor de CDs pifou, o concerto custava quase o preço de um aparelho novo. Decidi então comprar logo um leitor de DVDs. Foi quando descobri que um DVD editado na zona 1 não pode ser lido por um leitor de DVD da zona 2. OK! Comprei um leitor multi-zona.

Tecnologia puxa tecnologia. Eu tinha um televisor antigo, coisa de mais de década de idade. Não lia DVDs. Vamos lá, troquei de televisor. Vai daí que o novo televisor só lia em preto e branco. Tive de adaptá-lo aos novos tempos acoplando um outro aparelhinho. Não se passou uma década e já estamos nos dias do Blu-ray. Ainda não cheguei lá. Não me queixo. O DVD satisfaz minha necessidade de óperas.

Ainda ontem, uma amiga lembrava minha recusa de vestir terno para ir a uma ópera. Não que eu me recuse a vestir terno. Me recuso, isto sim, a carregá-los. Minha maletinha, para uma viagem de 30 dias, pesa seis, no máximo, sete quilos. Não vou carregar mais uns dois quilos só para assistir a um ou dois espetáculos. Certa vez fui na Staatsoper, em Viena. Na chapelaria, seqüestraram meu parka. Fiquei em manga de camisa. Me senti despido entre os pingüins. A última vez que usei terno foi em 81, em Paris, para defender minha tese. Não me passa pela cabeça a idéia de pôr um terno em minha maleta, só para assistir uma ópera. Já em Nova York, me senti chez moi. Tanto no Metropolitan como no City Opera, é normal o pessoal ir de jeans.

Melhor trazer as óperas aqui para casa. Sem falar que no DVD vejo até a expressão facial dos cantores, o que nem sempre se consegue ver num palco. E curto o espetáculo quando e quantas vezes quiser. Já assisti a mais encenações de Mozart do que o próprio Mozart. Coitado d’el, como diria o Pessoa. Nem tinha como.

Por outro lado, há óperas que só podem ser vistas em filme. É o caso de minha Carmen predileta, a do Francesco Rosi. Foi filmada em Sevilha, Ronda e nas montanhas da Espanha. E a Julia Migenes está soberba. A dança de sedução do Don José é algo nunca visto no mundo operístico. Como cada encenação é um espetáculo novo, tenho diversas versões de cada uma. Devo ter umas sete ou oito Carmens. Na última viagem, comprei mais duas. Uma com a orquestra da Royal Opera House, regida por Antonio Pappano, com Anna Caterina Antonacci e Jonas Kaufmann. E outra do Metropolitain Opera, regida por Yannick Nézet-Séguin, com Elina Garanča e Roberto Alagna. Nenhuma, devo confessar, que lembre, nem mesmo de longe, a sensualidade da Migenes.

Isto para responder à pergunta de um leitor, o Gustavo Rodarte: “Caro Janer, gostaria de sua opinião sobre a Coleção "Grandes Óperas" da Folha de São Paulo. Vale a pena adquirir para quem não tem nada e não sabe nada sobre o assunto e gostaria de ter um primeiro contato com este tipo de arte?”

Valer, vale. Nestes dias poluídos pelo rock, toda ópera é bem-vinda. Mas... mas... mas... sempre tem um mas. A oferta da Folha, aparentemente nobre, digna e justa, no fundo é mesquinha. Nestes dias de DVD, ópera em CD já não tem muito sentido. Sim, há milhares de óperas encenadas em época anterior ao DVD. Mas estas gravações perderam seu encanto. Já são peças de museu. Tenho muitas delas, em geral da Deutsche Grammophon. Estão aposentadas.

Dei uma olhadela rápida na relação das 25 óperas da Folha. Não encontrei Don Giovanni. Certo, de Mozart lá está A Flauta Mágica. O critério do jornal foi, a meu ver, não repetir nenhum compositor. Mas toda antologia operística estará incompleta sem Don Giovanni. Ainda mais quando oferece a pouco conhecida Fidelio, de Beethoven. Ou João e Maria, de Humperdinck. Ou Rinaldo, de Handel. Ou Tito Manlio, de Vivaldi. Tudo bem, é sempre bom trazer a público algo pouco conhecido. Mas faltou Nabuco, Rigoletto, Così fan tutte, L'Italiana in Algeri, Il Turco in Italia, Les pêcheurs de perles e por aí vai.

Cheguei à ópera um pouco tarde, já contei. Lá pelos 30 anos. É que havia em Porto Alegre uma cantora obesa, a Eny Camargo. Quando interpretava uma Carmen ou uma Violetta era um desastre. Como conceber a cigana sensual em um corpo sem meneios, ou uma tísica em um perfil de baleia? Estou sendo cruel, é verdade. A Camargo não faria feio em uma ópera cantada. Mas no palco, não convencia ninguém. Faltava le physique du rôle. Foi só em Paris, assistindo a uma Carmen com a Berganza, que me reconciliei com o gênero.

Sim, acho que a coleção da Folha vale a pena. Mas não é generosa. A Folha permaneceu no século passado. Propôs a seus leitores um sanduíche. Quando poderia ter oferecido uma lauta refeição.

sexta-feira, fevereiro 11, 2011
 
Sutilezas teológicas:
TOMÁS DE AQUINO E
O VASO ILEGÍTIMO



Um de meus prazeres diletos é ler livros de teologia. Me divertem. Particularmente quando tratam de sexualidade. Os teólogos da Idade Média foram os precursores da pornografia contemporânea. Reproduzo aqui um trecho dos Livres Secrets des Confesseurs.

Da sodomia

Este crime horrível é definido por Santo Tomás: a relação do homem com o homem, ou da mulher com a mulher.

De onde se deve concluir que o macho se relacionando com a fêmea, em um vaso ou recipiente não legítimo, não comete sodomia, porque o sexo é legítimo. Ao contrário, uma mulher que se relaciona com uma mulher no vaso natural comete sodomia, porque o sexo é ilegítimo. De onde se deve concluir com Santo Tomás que toda malícia da sodomia vem da relação com o mesmo sexo, e não da relação ilegítima de dois sexos diferentes, do sexo ilegítimo e não do vaso ilegítimo de um sexo legítimo. Este último crime, segundo o santo doutor, não é sodomia, mas somente um modo ilegítimo de relação.

Mas como para a maior parte dos teólogos prevaleceu o uso de olhar como uma sodomia imperfeita esta relação ilegítima (no ânus) entre dois sexos diferentes, nós aceitaremos o uso.

Assim sendo, a relação do homem com a mulher no vaso que não é legítimo é uma sodomia imperfeita, distinta da sodomia perfeita, que é a relação do homem com o homem, da mulher com a mulher. Assim, o que os libertinos chamam de 69 (nota do cronista: a terminologia vem de longe) é bem menos culposo entre homem e mulher que entre dois indivíduos do mesmo sexo.

Não importa em qual vaso ou em qual parte do corpo homens ou mulheres se relacionam, pois a malícia da sodomia consiste na busca de um sexo ilegítimo, e que ela é completa ou perfeita em seu gênero, seja qual for o vaso ou a parte do corpo na relação; mas, se não há senão a aplicação da mão, do pé, etc., nos órgãos sexuais de outra pessoa, isto não será considerado sodomia, porque não será uma verdadeira relação, nem física nem material, nem moral ou efetiva.

Para a sodomia imperfeita, basta que o homem e a mulher se relacionem de alguma outra forma que não os instrumentos naturais ou os órgãos legítimos, com intervenção das partes (fazendo por trás o que deve ser feito pela frente), e buscando um mau final de relação.

É preciso declarar na confissão de que natureza foi a sodomia, se ela foi cometida com uma pessoa casada, consagrada a Deus ou consangüínea. Porque então, à malícia do adultério, se junta a do sacrilégio ou do incesto.

quinta-feira, fevereiro 10, 2011
 
APPLE QUER ROUBAR UM DOS
ÚLTIMOS PRAZERES DO CLERO



Vários leitores – creio que à espera de um comentário – me enviaram links sobre um novo aplicativo que permite aos pecadores se confessarem direto no iPhone e iPad. Os gadgets da Apple se tornaram um confessionário com o Confession: A Roman Catholic App (Confissão: Um Aplicativo Católico Romano), que teria sido aprovado pela Igreja Católica.

Segundo as primeiras notícias, seguindo um pedido do próprio Papa Bento XVI, que orientou os fieis quanto ao uso das novas mídias, o programa orienta pecadores ao caminho da confissão, com um exame individual da consciência de cada usuário. "Se usada corretamente, pode contribuir para satisfazer o desejo de significado, verdade e unidade que continua sendo a mais profunda aspiração de cada ser humano", disse o Papa no Dia Mundial da Comunicação.

Me permito duvidar. Embora os católicos, de modo geral, há muito não se confessem, duvido que a Igreja renuncie a esse formidável instrumento de humilhação do ser humano. No confessionário, todo católico – este animal em perigo de extinção – se ajoelha ante o padre e admite espontaneamente pecados que nem acredita que sejam pecados, a um tirano que exerce com prazer sua tirania. Desconheço sacerdote que renuncie ao poder do qual se imbui.

Entre as raridades de minha biblioteca, tenho uma antologia, Les Livres Secrets des Confesseurs. É um manual de como pecar. Sob pretexto de desvendar pecados, os confessores informam ao penitente sobre pecados que eles sequer imaginavam. Durante séculos – e até há bem pouco tempo – a confissão esteve intimamente ligada à vida sexual dos crentes. O confessor queria saber detalhes do comportamento na cama – e fora dela - até mesmo de pessoas legitimamente casadas. A Igreja invadia o leito conjugal e determinava como marido e mulher nele deviam comportar-se.

Havia um deleite especial do confessor em perguntar: “quantas vezes, meu filho?”. Se referia, é claro, aos ditos prazeres da carne. É de supor-se que, nestes dias onde os santos padres se atribuem o direito às primícias de adolescentes, o foco tenha mudado. Mas duvido que um sacerdote pergunte a algum empresário ou político catolicão – e eles existem ou pelo menos fingem que são católicos – quantas vezes ele visitou uma offshore.

Me permito duvidar, dizia. Ontem mesmo, o Vaticano advertiu que os católicos não poderão se confessar pelo iPhone e pelo iPad. Segundo o porta-voz Frederico Lombardi, a presença física no confessionário é imprescindível, quando se admitem os pecados a um padre. "Não se pode confessar de forma alguma pelo iPhone", disse Lombardi, acrescentando que a confissão requer a presença do penitente e do padre. "Isso não pode ser substituído por nenhum aplicativo de TI", afirmou.

Só o que faltava! Nestes dias em que curtir jovens efebos virou infâmia, retirar dos padres um de seus últimos prazeres, o sexo oral. Não falo de felação, mas de sexo por telefone. Só que, para os padres, era sem telefone. Olho no olho. Mais íntimo e mais prazeroso.

Sem falar que a idéia desta confissão a aparelhos não é nova. Em maio de 2007, quando Bento XVI veio a São Paulo canonizar aquele vigarista que prescrevia a ingestão de orações impressas em rolinhos de papel, o tal de frei Galvão, já se falava em confissão pela Internet. Embora não reconhecida pela Igreja, já era adotada por grupos religiosos nos Estados Unidos. O que era então contestado pelos teólogos tupiniquins.

“A confissão é algo muito particular, muito íntimo, e deve ter o menor número de interferências possível. A tecnologia cria uma distância entre as pessoas e, por isso, não funciona nesses casos”, dizia então Jorge Claudio Ribeiro, professor titular do departamento de teologia e ciências da religião da PUC/SP. Sua colega Regina Maria Lopes, professora de introdução à teologia desse mesmo departamento, ajuntou: “na confissão, os gestos e tom de voz são muito importantes. Se ela for feita pela internet, não há como a pessoa que ouve interpretar esses sinais”.

A tecnologia ameaça roubar os últimos prazeres permissíveis do clero. Abaixo a tecnologia, reage o Vaticano.

 
FROM MONTENEGRO


Da jovem República de Montenegro (Црна Гора), Ljiljana Djurovic e Milanka Vukovic corrigem crônica que escrevi sobre o belíssimo Lepota Poroka (La Beauté du Peché). A colônia de nudismo onde o filme foi rodado fica em Montenegro e não na Croácia, como escrevi. Por um lado, perplexo por ser lido nos Balcãs. Por outro, gratíssimo, dears, pela correção. Panta rei. Um dia ainda me banharei nas águas que banharam Mira Furlan.

Para ver Ada Bojana: http://www.ada-bojana.net/location.html


Dear Mr Cristaldo,

First, i would like to thank you for mentioning our beloved film director Zivko Nikolic. You are absolutely right, his movies are so much better and inspirative than newly filmed blockbusters like Avatar, Harry Potter etc. I just wont you to know that Zivko Nikolic was from Montenegro, former republic of Yugoslavia, and his movie Ljepota poroka was filmed in Montenegro, in the nudist camp Ada Bojana that still exists near Ulcinj at the Adriatic coast.

Best regards

Ljiljana Djurovic
Kotor, Montenegro


Dear Mr. Cristaldo,

Today I read a newspaper article about you and your opinion the film La Beauté du Peché by Zivko Nikolic.
This article intrigued me because it was interesting to hear that someone from Brazil is interested in our cult film.
It is a cult movie for us because it tells a lot, in a very humorous way, about our mentality.
I felt an obligation to write you a mail because you mention that a girl from the Yugoslav mountains come to work in a nudist resort on the shores of Croatia. It is not the coast of Croatia, but Montenegro.
I do not want to think that someone from our country, for nationalistic reasons is offended because of this mistacke.
Precisely because you talked with so much enthusiasm about this movie I thought you should know where this movie is shot.
This is a nudist place Ada Bojana, which today, if not in a state where it was when the film is shot, is for many people from Europe and the world a place where they returning to the nature.
If you ever want to see a fixed place where the film shoot come to Montenegro.

Lots of nice greetings from Montenegro

Milanka Vukovic