¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, dezembro 25, 2011
 
MACHADO DE ASSIS E
BRUNA SURFISTINHA



Uma das mais antigas editoras do país, a Francisco Alves, fundada em 1854, hoje se resume a uma marca. Faz um ano e meio que lançou seu último livro - Palavras - Origens e Curiosidades, espécie de almanaque de etimologia. Sinal dos tempos, o atual dono da Francisco Alves, Carlos Leal, fundou outra empresa, a Barléu, de livros de arte, todos patrocinados por meio da Lei Rouanet, e deve a ela sua sobrevida como editor. É o que leio na Folha de São Paulo.

Ou seja, uma editora – empresa privada – só consegue sobreviver com auxílio estatal. Então que feche as portas, ora bolas. Nas quebradas do século passado, tive notícias de um livreiro de Porto Alegre que, ante a perspectiva de falência, salvou-se graças à Lei Rouanet. Que história é essa? Se empresa privada só consegue sobreviver com auxílio estatal, então não é empresa privada, mas empresa estatal.

Trocando os queijos de bolso, lembro que em 2007 o governo federal autorizou a organização da Oktoberfest, festa do chope no Rio Grande do Sul, a captar R$ 1,182 milhão, via Lei Rouanet. Justificativa: o projeto "mantém e potencializa a cultura local, essencialmente germânica, contemplando a música instrumental".

Pergunta ao contribuinte que gosta de chope: se já financiou a festa, por que terá pagar de novo pelo chope? A Lei Rouanet, promulgada certamente com as melhores intenções, está se revelando um excelente instrumento de corrupção. Melhor ainda: corrupção perfeitamente legal.

Cinema e teatro há muito vivem do dinheiro do contribuinte. Esta farra com o bolso alheio teve seu ápice quando Le Cirque du Soleil, companhia circense do Canadá, apresentou-se em São Paulo subsidiado pela famigerada lei. E deu-se ainda ao luxo de cobrar ingressos caríssimos dos contribuintes que financiavam seu espetáculo. De minha parte, não vou a espetáculo algum que seja patrocinado pela lei Rouanet. Mesmo que o espetáculo me interesse, se já paguei não vou pagar de novo. Se vierem me buscar de limusine em casa, chi lo sa...

Editoras e livrarias estão afundando e afundarão com mais celeridade nos próximos anos. Problemas de má gestão a parte, o futuro do livro é eletrônico. O ebook dispensa papel, gráficas, distribuição, livrarias, depósitos, transporte. Por mais que leitores sintam saudades do cheirinho do papel, ninguém impede o amanhecer. Sou ainda devoto do livro em papel, mas tenho de reconhecer que o ebook é mais prático. E necessariamente mais barato. Sem falar naquele recurso do search. Se procuro um hapax – ou qualquer outra palavra – em um livro em papel, tenho de relê-lo até achar o que busco. No ebook, com três ou quatro toques de tecla, encontro logo a palavrinha.

Digamos que você vive em uma dessas milhares de cidadezinhas brasileiras onde não há livrarias nem bibliotecas e às vezes nem chegam jornais de porte. (Quando falo disto, sempre me ocorre citar Santa Maria, cidade universitária gaúcha com trezentos mil habitantes. Só tem uma livraria. E só recebe um único exemplar da Folha de São Paulo, que fica à disposição dos leitores em uma biblioteca da universidade). De repente, você ouviu falar de Platão e foi acometido de uma súbita vontade de ler o Fédon. Apesar de seu vilarejo ser desprovido de livrarias ou biblioteca, Platão está à distância de um clique de sua vontade de ler. E de graça. Em segundos, você tem o Fédon em seu monitor.

Isso sem falar nas Amazons da vida. Muitas vezes, ao buscar aqui em São Paulo um livro editado no Rio, ouvi do livreiro que posso recebê-lo em quinze dias. Suponho que seja trazido a pé. Pela Amazon, recebo o livro em oito dias no máximo.

Criou-se no Brasil, desde há muito, a cultura do livro estatal. Autores que há muito estariam mortos são ressuscitados com o empenho de instituições que as empurram aos jovens goela abaixo. O número de livros distribuídos gratuitamente aumenta cada vez mais. São editados via Lei Rouanet e não há quem os compre. Quinta-feira passada, a Folha de São Paulo noticiava:

“Já virou tradição de Natal: no fim de ano, grandes bancos presenteiam seus clientes com sofisticados livros de arte, viabilizados por meio da Lei Rouanet - que permite abatimentos no imposto de renda dos patrocinadores que invistam em cultura”.

O repórter pergunta-se, retoricamente: isso significaria, então, que os brindes de Natal desses bancos estariam sendo pagos pelo contribuinte? E responde, falaciosamente: sim, mas somente em parte. Mais exatamente, de acordo com a lei, o patrocinador recebe 10% da tiragem do livro, para seu uso - e, no caso, essa é a parcela destinada aos clientes.

Pode ser. Mas os outros 90% da tiragem também foram financiados pelo contribuinte. A Lei Rouanet – isto é, você - está financiando livros que ninguém compra, que são doados ao azar para quem não lê.

Em meio a isso, leio que passageiros dos terminais de ônibus da Lapa, na zona oeste, e do Mercadão, na região central de São Paulo, serão convidados a partir de hoje a seguir viagem na companhia do escritor Machado de Assis. Agentes da Secretaria Municipal da Cultura estarão nesses lugares das 10 horas às 20 horas distribuindo o livro Missa do Galo, uma coletânea com dez contos do autor que será emprestada. Depois de lidas, as obras deverão ser devolvidas nos mesmos terminais de onde foram retiradas, para que possam ser dadas a outras pessoas. O empréstimo é gratuito e os passageiros não precisam fazer cadastros ou preencher fichas de retirada.

Se ninguém mais lê Machado, empurre-se Machado nas linhas de ônibus. Para a impressão dos primeiros 20 mil exemplares foram gastos R$ 200 mil. Claro que quem financia sua publicação não é Gilberto Kassab. No fundo, quem a financia, é o contribuinte paulistano. É por isto que Machado ainda existe. Graças ao ufanismo tupiniquim e aos impostos pagos por quem paga imposto. Não fosse isto, há muito estaria morto.

Não gosto de caju. Nem de goiaba. Muito menos de Coca-Cola. Pepsi, ni pensar. Pensando bem, não gosto de refrigerante nenhum. Vinho rosé, muito menos. Até hoje, pelo menos, nunca ninguém me acusou de preconceito em relação a caju, goiaba, Pepsi ou vinho rosé. Mas basta dizer que não gosto de Machado de Assis, lá vem a acusação: preconceito.

Ora, preconceito seria se eu jamais tivesse lido o carioquinha e afirmasse não gostar de sua leitura. Não é o caso. Li os principais romances de Machado e muitas de suas crônicas. Não vou afirmar que seja um escritor medíocre. Mas não consigo gostar.

Trata-se de um pós-conceito: digo que não gosto após tê-lo lido. É curioso observar que quando elegemos um vinho, damos preferência a vinhos estrangeiros. Uísque, idem. Carro, também. Por que raios, na hora da literatura, tenho de preferir a nacional? Por que eu, brasileiro, tenho de ler literatura brasileira? E se eu fosse ugandês, teria de ler literatura ugandesa? Em que tábuas sagradas está escrito isso?

Machado é empurrado nas escolas, nos vestibulares, nos cursos de Letras. É que nem purgante, ninguém toma purgante por gostar. Por que não brindar o público com obras realmente importantes da literatura universal, com autores como Cervantes, Swift, Orwell?

Don Quijote, sem ir mais longe, é bastante desconhecido no Brasil. Há alguns anos, recebi uma sobrinha muito querida em Madri, pessoa inteligente, empreendedora e bem sucedida em São Paulo. Na Plaza España, apresentei-a àquela estátua do Quijote e Sancho Panza. Ela não tinha idéia alguma de quem fossem. Ora, desconhecer estes dois me parece ser grave lacuna na educação de qualquer pessoa. A escola e a universidade, em algum momento, falharam. Mas Machado ela sabia muito bem quem era.

Ou Swift. Ainda hoje há quem pense que As Viagens de Gulliver é literatura infantil. Leitores às vezes se espantam quando recomendo o livro. Ora, esta obra é talvez a mais contundente denúncia que um escritor um dia fez da humana estupidez. Recentemente, passou no Brasil um filme idiota sobre as Viagens, dirigido a adolescentes. Não há porque endereçar Swift a adolescentes. Até pode ser, mas Swift é autor que não pode faltar a nenhum adulto que se pretenda culto.

Ou Orwell. Se os adolescentes de hoje tivessem lido 1984, saberiam que Big Brother não é exatamente uma câmera que vigia o dia-a-dia de pobres de espírito. O personagem de Orwell é muito mais. É a Stasi, é a KGB, é o Estado totalitário, é o mais perfeito retrato das tiranias comunistas do século passado, mas isto os senhores formadores de opinião preferem calar, pois remete a uma história recente, dolorosa e ainda não remida.

Não acredito nisso de distribuir livros de graça, ao azar. Até pode ser que algum encontre o leitor que dele precisa, mas esta hipótese é das mais aleatórias. Os passageiros de ônibus de São Paulo provavelmente se sentiriam mais gratificados com as memórias de Bruna Surfistinha. Que, diga-se de passagem, teve uma renúncia fiscal de dois milhões de reais aprovada pelo Ministério da Cultura para a produção da peça de teatro Doce Veneno, inspirada em sua vida exemplar de prostituta.

E nisto estamos. Enquanto os brasileiros desconhecem as obras primas da literatura universal, o Estado nos empurra Machado de Assis e Bruna Surfistinha.