¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, outubro 29, 2011
 
SOB AS SAIAS DO VATICANO


Florianópolis — Quando comecei a escrever estas linhas, Ceaucescu estava cai não cai. Na segunda lauda, já havia caído e tive de reformular a crônica. E antes que me ocorresse qualquer reflexão sobre as novas notícias, já fora fuzilado. A libertação da Polônia exigiu dez anos de luta. A libertação da Alemanha Oriental, Hungria, Tchecoeslováquia e Bulgária, coisa de cem dias. A da Romênia, dez horas.

Na América Central, Noriega não dirige mais sua base de narcotráfico e Castro que se cuide. Decano dos ditadores contemporâneos, tem seus dias contados e sabe disso. Basta Gorbachov cortar-lhe os dólares e boa-noite! Claro que qualquer desejo de liberdade custará aos cubanos um alto preço em sangue, como está custando aos romenos. Caindo Castro, a Nicarágua perde seu apoio logístico. Caindo Ortega, os meninos mimados — e irados — da classe média brasileira não terão mais onde treinar guerrilha na América Latina. Resta um pós-grad na Líbia, é claro. Mas no deserto impera o islamismo e Alá não gosta de cerveja.

O ano que passou foi de muitas lágrimas, muitas de dor e muitas mais de alegria. Choraram alemães de contentamento e chineses de perplexidade. Romênia à parte, libertação sem sangue no Leste europeu e retrocesso sangrento na China Comunista. Neste macabro balanço, ousaria afirmar que o saldo foi positivo. Resta agora a Albânia como última vergonha dos Balcãs e Cuba e Nicarágua como últimas vergonhas da América Central. Restam outras vergonhas mundo afora, é verdade, mas voltemos à Romênia.

Foi um dos raros países onde antes de entrar já senti medo. Em Paris, embarquei em um Tupolev caindo aos pedaços, tipo aquele nos quais o Tio Patinhas envia o sobrinho Donald para alguma missão longínqua. Coincidiu que o espaldar de meu assento não se mantinha na vertical, caindo sobre os joelhos do passageiro de trás. Em suma, decolei sem o cinto de segurança, pois tive de utilizá-lo para firmar o assento. Durante cinco horas de vôo, escuridão absoluta no avião e reiterados avisos de não usar máquinas fotográficas. Como se, nesta época em que satélites conseguem fotografar uma página de jornal, a maquineta de um turista voando em meio à escuridão pudesse revelar algum segredo militar às potências inimigas.

Mais caquéticas que o avião, só mesmo minhas companheiras de viagem, uma excursão de múmias com esperanças de recauchutar-se nas clínicas de Ana Aslan. A média de idade de meus parceiros de vôo estaria em torno dos 80 anos e isso que eu — e apenas eu — tinha menos de quarenta na época. No que não vai nenhuma derrisão.

Aterrissamos em Bucareste, no meio da noite. Dezenas de soldados, metralhadoras em punho e baionetas caladas, formavam um corredor polonês para recepcionar os perigosos estrangeiros que, diga-se de passagem, mal podiam manter-se em pé por si sós. Isto aconteceu há dez anos, quando, aparentemente, tudo era paz no país. Digo aparentemente porque outros indícios me fizeram intuir que a paz romena trazia em si um ódio embutido.

Em Mangália, cidade turística às margens do Mar Negro, passei duas semanas em “hotel de luxo”, e não é por acaso que o ponho entre aspas. No “hotel de luxo” da cidade turística, vivi quase no limiar da fome, e isso que pagava em dólares. Tentei então imaginar como viveria e comeria um romeno. Não necessitei de muito esforço. Em um supermercado de prateleiras vazias chegou um pedaço de carne. Os nativos disputavam a tapas um naco, e isso que disputavam aqueles que tinham condições de pagá-lo.

Nas ruas, mal um romeno me abordava, logo surgia atrás dele um anjo da guarda equipado com aquelas sinistras metralhadoras com baioneta calada, e ainda apoiado por um cão policial. O transeunte anônimo que ousara falar com o estrangeiro tinha de identificar-se e se expunha a conseqüências que desconheço. Diz-se que o turista tem sempre uma visão superficial da própria viagem. É verdade. Mas quando chegamos em um país com baionetas nos espetando a barriga em tempos de paz, e a polícia identificando qualquer nacional que ouse abordar um estrangeiro, não precisamos de maiores intuições para saber em que tipo de regime estamos. Quando o turista, com dólares e de passagem, tem tratamento de suspeito, já podemos ter uma idéia do que sofre o cidadão comum.

Na Romênia, vi miséria, corrupção, opressão, medo. Principalmente medo. Pessoas com medo de falar e, se falavam, falavam baixinho. Este clima de medo chegou a contaminar-me. Escrevera alguns postais para a França e Brasil, contando o que havia visto por lá. Na hora de postá-los, hesitei. Com tamanha vigilância, sei lá o que poderia acontecer. Preferi deixá-los para o dia do embarque. Quando a Securitate — a polícia política de Ceaucescu — os tivesse traduzido, eu já estaria voando.

Contei estas e outras coisas ao voltar, em palestras e artigos, para incredulidade de quem me lia ou ouvia. “Não pode ser, estiveste apenas duas semanas no país, lá existe comida e educação para todos”, etc. e tal, em suma, a costumeira apologética empunhada contra os que ousam denunciar a ignomínia dos sagrados regimes socialistas. Dez anos depois, aí estão as manchetes. A ditadura familiar dos Ceaucescu gerou tanto ódio que os romenos sequer conseguiram esperar o julgamento merecido. Sabemos agora que tanto Ceaucescu, “o gênio dos Cárpatos”, quanto Honecker, o “presidente” da Alemanha Oriental, mantinham gordas contas em bancos suíços. E viva o socialismo!

FUZILADO DITADOR ROMENO, alardeiam as manchetes dos jornais. O que muito me surpreende, pois Ceaucescu era ditador há vinte e quatro anos e, ao que tudo indica, jornalista algum havia percebido o fato. Leitor inveterado de jornais, não lembro ter lido, neste último quarto de século, referência alguma na imprensa brasileira ao ditador romeno. Após o fuzilamento, Ceaucescu vira uma espécie de Drácula.

“Ele também era” — escreve tardiamente Luís Fernando Veríssimo — “uma representação quase mítica nos seus extremos, da nova aristocracia da região, a dos pequenos tiranos criados pela ortodoxia comunista nos países satélites, além de ser o exemplar mais antigo da espécie”. E aqui se equivoca o cronista. O conducatur foi ditador por apenas duas décadas e meia. O mais antigo exemplar da espécie dos pequenos tiranos criados pela ortodoxia comunista nos países satélites está no poder há mais de três décadas. Chama-se Fidel Castro e gere sua ilha particular onde recebe as esquerdas do mundo todo, seja para treinar guerrilha e exportar seus métodos ditatoriais, seja para difundir a idéia de que seu gulag é um paraíso.

Enquanto isso, Noriega se esconde sob as saias do Vaticano, último regime ditatorial da Europa de cá. O maior traficante internacional de drogas — não é o cristianismo uma droga poderosa? -, do alto de sua curul no Vaticano, alberga e protege o traficante menor do Caribe. Excitação nas esquerdas latinas, protestos contra a intervenção ianque. Mas o que está em jogo não é a doutrina Monroe, sempre invocada quando Castro é ameaçado, sempre esquecida quando o solitário deão dos ditadores latinos invade Angola. O que mais preocupa as esquerdas é o acesso aos arquivos de Noriega e a constatação de que o comunismo, na América Latina, depende do narcotráfico.

Com a mesma aisance com a qual homiziou um cardeal ligado à Máfia e perseguido pela justiça italiana, o Vaticano subtrai aos tribunais americanos um criminoso comum. Cuba lhe oferece albergue. Tudo fecha.

Porto Alegre, RS, 13.01.90