¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, outubro 31, 2011
 
GORBACHOV MAS NÃO MOLHA


Maxim Gorki, o luxuoso transatlântico soviético, chocou-se com um iceberg a 300 quilômetros a oeste do arquipélago norueguês de Spitzbergen, no mar de Barents, é o que informam, para meu desconforto, as agências internacionais. Para meu desconforto porque há pouco escrevi crônica sobre a penúria endêmica — Nomenklatura à parte — do regime soviético. As manchetes da imprensa internacional constituíam um cabal desmentido às minhas calúnias imperialistas, particularmente nesta era gorbachoviana. Mergulhei com avidez na notícia, vai ver que só os membros da Nomenklatura faziam turismo pelo Ártico, com o que minha reputação estaria salva.

Acontece que na insensata nau não navegavam nem mesmo as elites soviéticas. Noves fora a tripulação, no Maxim Gorki viajavam nada menos que 551 alemães, em sua maioria idosos, e 16 passageiros de outras nacionalidades. Alemães ocidentais, bem entendido, já que os orientais, se a este luxo quisessem dar-se, teriam primeiro de vencer um muro protegido por cães, soldados com metralhadoras, arame farpado e terrenos minados. Sem falar, é claro, que o orgulho da marinha soviética jamais levaria a bordo cidadãos munidos de marcos da RDA, tão ou mais desmoralizados que nosso cruzado-louvado-seja-Machado.
Falar nisso, outro dia uma pesquisa feita em Porto Alegre escandalizava literatos, pois jovens diziam achar Machado um chato.

Escândalo que constitui um duplo equívoco. Em primeiro lugar, Machado não é leitura para adolescentes. Em segundo, é um chato mesmo e a única coisa que me alegra em nossa inflação galopante é que, dentro em breve, sua efígie de medalhão deixará definitivamente de passar por minhas mãos. Mas falava do muro. Ou melhor, do Maxim Gorki, orgulho da frota soviética. Depois volto a Berlim.

Coisas da perestroika. Gorbachov mas não molha. Em uma ditadura socialista que proíbe seus cidadãos de dela sair, seus dirigentes põem a menina dos olhos de sua marinha a serviço de macróbios capitalistas. Marx deve estar se revirando na cova. Mas o que mais me surpreendeu no fato, é que Fernão de Magalhães, cinco séculos atrás, sem radar algum e com um grumete sonolento medindo a velocidade com uma ampulheta, havia atravessado o perigoso estreito que hoje leva seu nome, sem trombar com icebergs. Titanic, vá lá! Mas em pleno século XX, atropelar um iceberg distraído, é dose. A tripulação deve estar bêbada, pensei com minhas pedrinhas de gelo. Dia seguinte, nos jornais, não deu outra: 70 por cento da tripulação estava mais para lá do que pra cá. Enquanto esta moderna versão proletária do bateau ivre rimbaudiano continua encalhada nas neves do Ártico, volto com meus macróbios a Berlim.

Nasci em Santana do Livramento e não é por acaso que, em Ponche Verde, tenho um personagem santanense que perambula pelas ruas de Berlim. Em Livramento, pode-se almoçar em um país e tomar a sobremesa em outro, bastando para isso atravessar a rua. Poucos gaúchos — já nem falo de brasileiros — terão se dado conta da importância simbólica desta fronteira sempre aberta. Se um dia não for possível almoçar em Rivera e tomar o cafezinho em Livramento, ou vice-versa, algo de muito grave e triste terá ocorrido na América Latina. O muro de Berlim pode chocar qualquer homem livre, nascido em país onde seus cidadãos são livres. Mas choca ainda mais um santanense. Escrevia, em crônica passada, que toda e qualquer discussão sobre as utopias deveria ser antecedida, entre outras coisas, pela derrubada do muro. Gorbachov, sensível a este anseio de todo homem livre, afirma na mesma semana: “O muro não é eterno”.

Assim não fosse. Pois o muro, mais do que triste símbolo da barbárie contemporânea, é a sustentação armada das tiranias do Leste europeu. Jamais existiram duas Alemanhas. Jamais existiu uma Alemanha Oriental. Como escrevia há pouco Gilles Lapouge, há uma Hungria eterna, há uma Polônia eterna. Mas não há uma Alemanha Oriental eterna. Privada do alicerce comunista, ela afundaria.” A derrubada do Muro seria a morte da Alemanha Oriental e a emergência de uma nova potência na Europa, que reduziria França e Inglaterra a economias de segunda linha. De onde decorre que, ao lado das ditaduras de Cuba e da Romênia, a RDA é hostil a todo e qualquer aceno liberalizante de Gorbachov.

A propósito, na semana passada, o presidente da Alemanha Oriental apoiava publicamente o massacre da Praça da Paz Celestial. Entschuldigung Sie, bitte, perestroitchiski tovaritch Gorbachov, mas não será tão cedo, infelizmente, que os berlinenses gozarão da singela liberdade dos santanenses e riverenses, aos quais basta atravessar uma rua para abraçar um amigo ou tomar um café em outro país.

Mas falava do bêbado barco soviético abalroando inocentes icebergs em Spitzbergen. Tais cruzeiros, hoje em dia, são geralmente comprados por clientes em fim de vida, detentores de fortuna e ócio suficiente para tais luxos. Outro dia, ancorou cá na ilha, ao largo de Jurerê, o Ocean Princess, que fazia cruzeiro semelhante. Em um botequim de praia, encontrei uma jovem alemã que, ao descer do barco, fez com que a média de idade dos passageiros subisse mais que o dólar na Argentina nestes dias de Menem. É possível que no imaginário de algum cronista social, tais cruzeiros evoquem volúpias de palácios orientais. Mas bem outra é a realidade. Tais naus mais parecem um asilo flutuante repleto de argentários caquéticos.

E não seria eu a negar-lhes razão. Por que não morrer no mar? Em todo o caso, o Ocean Princess era um barco coerente. Içava bandeira capitalista e transportava autênticos milionários oriundos dos States. Já o Maxim Gorki, a meu ver, naufragou em suas dialéticas contradições, só solúveis no álcool. Tais navios carregam em seus porões um certo número de caixões, correspondentes, em geral, a um quinto do total de passageiros. Caixões de defunto, bem entendido, pois presume-se que vinte por cento dos turistas voltem ao lar de pés juntos, isso se seus cadáveres não forem jogados ao mar.

Na Inglaterra, tive a ocasião de assistir a uma cena tétrica. O Eugenio Costa atracara em Southampton, para apanhar quatrocentos membros do clube Saga. Até aí, nada demais. Acontece que o tal de clube só aceitava sócios com mais 65 anos. Como eu estava na ponte mais alta do barco, tive o privilégio — ou talvez o horror — de ver as quatrocentas velhinhas, ao som de uma banda, entrando pela proa, ao mesmo tempo que oitenta esquifes eram embarcados pela popa. Ocorreu-me então a atroz imagem de um café da manhã no decorrer do cruzeiro, os comensais olhando em torno e contando as baixas, tentando descobrir quem ou quantos haviam morrido na noite, reformulando mesas e fazendo novas amizades, mas... enfim, por que não confraternizar no naufrágio?

Mas, ao que tudo indica, não era chegada a hora dos turistas terminais do Gorki. Após tiritar algumas horas, foram recambiados ao aconchego de Berlim ocidental onde, pela primeira vez, desde que o muro é muro, um dirigente soviético ousou afirmar: o muro não é eterno. Mal Gorbachov acena com uma tênue esperança, um pouco mais ao sul, Nicolau Ceaucescu, o ditador romeno, começa a erguer uma cerca de arame farpado, ao longo dos 400 quilômetros de fronteira com a Hungria.

Mesmo pertencendo ao bloco socialista — não por vontade própria, é claro — a Hungria, por ter aderido a uma economia de mercado, é hoje certamente o país menos pobre do Leste europeu. Como na Romênia, há mais de década, a população vive com fome, os camponeses da Transilvânia começaram a dar no pé rumo à casa do primo rico. A pauperização crescente dos países socialistas, decorrente dos dogmas econômicos do marxismo, começa a gerar novos muros entre países irmãos, como diria o Joãozinho.

Ou talvez nem se chamasse Joãozinho. A piada, eu a ouvi na Iugoslávia. Em meio a uma aula, a professora pergunta ao Joãozinho lá deles quais são os países amigos da Iugoslávia. Joãozinho vai citando os que conhece, Romênia, Bulgária, Hungria... A professora quer o nome de outros países amigos. Joãozinho puxa pela memória: Polônia, Checoslováquia... Mais um, meu filho, pede a professora. Joãozinho consegue lembrar: a República Democrática Alemã. Mas não é ainda o que a professora quer ouvir.

— E a União Soviética, Joãozinho, não é um país amigo?
— De jeito nenhum, professora. A União Soviética é um país irmão.
— E qual é a diferença, Joãozinho?
— É que amigo a gente escolhe. Irmão é uma fatalidade.

Joinville, A Notícia, 02.07.89