¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, agosto 29, 2011
 
JURO QUE VI! *


Vi uma moça solicitando crediário. E vi a balconista atendendo a moça. E a última ficha de crediário era de número 40.649. E a moça preencheria a seguinte. E ouvi a balconista chamar outra balconista. E ouvi perguntar qual seria o número da ficha seguinte. E vi a outra balconista emudecer. E vi a moça sugerir às balconistas: “não será número 40.650?” E vi as duas se entreolharem surpresas. E ouvi uma confirmar: “claro, é 40.650!” Com o que concordaram todas.

E fui ao correio postar uma carta. E perguntei à funcionária quanto pagaria em selos. E ouvi vinte cruzeiros como resposta. E paguei os vinte. E levei a carta para registro. E a outra funcionária me informou que eram 31 cruzeiros. E voltei ao guichê anterior para pagar o restante. E vi a moça manipular uma calculadora eletrônica. E vi registrar 31. E calcar a tecla de subtração. E depois 20. E vi a moça ler no visor: 11. Perplexo, paguei os 11.

E fui a uma farmácia. E vi um cliente pagando sua compra. E a conta era de Cr$ 13,60. E ouvi a caixa perguntar se o cliente não teria 60 centavos. E ouvi o cliente dizer que não. E vi a moça dar-lhe dois comprimidos de Melhoral. E ouvi o cliente reclamar: não queria Melhoral. E ouvi a moça dizer: vou dar um jeito. E a vi sair do caixa e ir até o balcão. E vi a moça voltando com Pondicilina. E ouvi o cliente furioso exigindo seus 40 centavos. E vi a moça confusa tentando encontrar uma solução. E ouvi a moça chamar o chefe. E vi o chefe providenciando o troco. E vi o cliente receber 36 centavos.

E fui a uma livraria. E ouvi um cliente perguntando por Sexus, do Henry Miller. E vi o livreiro procurá-lo nas estantes. E não o vi voltar com o livro. E o ouvi quando explicava: proibido pela censura. Mas temos Nossa Vida Sexual, do Fritz Khan, não serve?

E fui a uma estação rodoviária. E vi uma moça comprando passagem. E ouvi que insistia em ir pela freeway. E vi a moça dirigir-se ao ônibus. E ouvi a moça reclamar furiosa. Comprara uma passagem pela freeway. E um cartaz indicava que o ônibus ia pela auto-estrada.

E fui a um restaurante. E vi um cliente pedir um vinho. E o vinho havia sido cuidadosamente trabalhado pelo enólogo. Fora envelhecido durante anos e distribuído em sua idade mais vigorosa. Para melhor entregar seu bouquet, exigia uma taça bojuda. E o cliente pediu a taça. E vi o garçom servir-lhe o vinho. E vi o cliente apanhar uma pedra de gelo da caçamba e pôr na taça. E o gelo se fundiu no vinho cuidadosamente elaborado pelo enólogo. E o cliente, orgulhoso de seu toque pessoal, ergueu a taça, sorveu o vinho e sorriu.

E fui retirar um documento em uma repartição pública. E entrei em uma fila. E paguei uma taxa. E fui atendido. E um funcionário me engraxou os dez dedos das mãos. E calquei meus dez dedos em um papel. E tirei a graxa com querosene. E voltei para apanhar o documento. E a data de meu nascimento estava errada. Entrei de novo na fila. E paguei outra taxa. E fui atendido. E um funcionário me engraxou de novo os dez dedos. E calquei de novo meus dez dedos cheios de graxa em um papel.

E voltei para buscá-lo. E o funcionário pediu-me licença para mostrar ao chefe os dois documentos, o certo e o errado. E o chefe ficou furioso. E rasgou um dos documentos... o que estava certo. E o funcionário voltou desolado. E meus dedos já estavam limpos, olhei para a graxa com vontade de chorar. E perguntei se teria de engraxar os dez dedos de novo. E o funcionário me disse que não, afinal aquele documento dispensava a impressão dos dez dedos. E eu contei até dez antes de qualquer resposta. E cheguei aos dez. E resolvi contar até cem, louvar a eficiência do serviço público e safar-me com o documento, com ou sem a marca de meus dedos.

E muito mais ainda eu vi. Vi táxis fazendo fila para apanhar pessoas que faziam fila para apanhar um táxi. Vi gente esperando táxi quase uma hora para fazer em cinco minutos o percurso que a pé fariam em quinze. Vi gente procurando ganhar tempo para ter mais tempo livre e, sem saber o que fazer com o tempo ganho, procurar uma forma de matá-lo. Vi gente matando o tempo e vi o tempo matando gente.

E muito mais coisas eu vi, juro que vi!

* Porto Alegre, Folha da Manhã, 28.03.77