¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, novembro 17, 2010
 
ROCK, PALAVRA-ÔNIBUS


Caro Janer,

Cordiais saudações!

Tenho acompanhado sua recente polêmica com os roqueiros e fãs do rock. Fico tentado a dar minha opinião. Eu concordo com você, em certa medida, que talvez seja possível dizer algo sobre a capacidade intelectual de uma pessoa pelo seu gosto musical. Levo até em consideração aquele famoso dito de Schopenhauer que você já mencionou em seu blog. Mas não acho que isto seja algo absoluto, como se fosse uma fórmula do tipo "ouvinte de óperas = inteligente / ouvinte de forró = burro" (apesar de ser tentador pensar na fórmula "ouvinte de funk = retardado" como um axioma).

Há duas ideias que você expôs em sua polêmica com o rock que me motivam a escrever este e-mail. Uma é a da atração do homem-massa pelas multidões (você me inspirou a ler o Ortega y Gasset, leitura que apreciei muito). A outra é a transformação do rock em "palavra-ônibus", como você mencionou.

Eu sou indiferente aos Beatles. Não gosto nem desgosto, como se diz. Mas, quando você criticou, no mesmo contexto, um gosto musical pelo rock com aquilo que parece ser um gosto por multidão revelado por muitos amantes do rock, eu não pude deixar de pensar em outros eventos que atraem multidões e nas distinções que devemos fazer entre as duas coisas. Há certamente milhões que freqüentam espetáculos de rock e apreciam tanto o barulho quanto a multidão (para não falar das drogas).

Mas há pessoas que se dispõem a enfrentar uma multidão não por gostar da multidão, mas por gostar do espetáculo. Não pude deixar de pensar nas diversas ocasiões em que espetáculos de música erudita (outra "expressão-ônibus") atraíram multidões, como em apresentações de músicos mais populares, como Pavarotti. Não creio que em tais espetáculos havia apenas homens-massa na multidão. Penso que havia muita gente que estava ali apenas por causa da música, a despeito da multidão. Então, o fato de uma pessoa se dispor a enfrentar uma multidão não faz dela automaticamente um homem-massa.

Isto me leva à outra constatação sua, qual seja, a da transformação do termo rock em "palavra-ônibus". Concordo integralmente. Chamam igualmente de rock coisas tão distintas quanto as cançonetas (como você as chama) dos Beatles, as composições de um David Gilmour ou o ruído horroroso de algumas bandas que se limitam a gritar e fazer barulho. É por isso que acho que seus textos causaram tantas reações. Se o rock é "palavra-ônibus", e se designa coisas muito distintas entre si, então é natural que seus leitores que apreciam boa música rock se sintam incomodados ao serem colocados na mesma categoria de apreciadores de porcarias também chamadas de rock.

Eu mesmo posso dar um exemplo: gosto muito de algumas músicas do Pink Floyd, adoro a voz de Harriet Wheeler (da banda The Sundays), e sei que, se um hipotético extraterrestre ouvisse uma canção destes grupos que mencionei e depois ouvisse o ruído produzido por outras bandas, acharia espantoso que nós humanos designássemos ambos os sons pelo mesmo nome. Eu tenho horror a multidões, mas penso em eventos que as atraem em termos da relação custo/benefício. Eu não enfrentaria uma multidão para ver os remanescentes dos Beatles, pois a música não me daria um prazer que compensasse o sacrifício de estar em um lugar cheio de gente. Mas já encarei multidão em um espetáculo de rock que compensou o aborrecimento. Eu estava ali pela música, e não pela multidão.

Como você disse, rock é palavra-ônibus. Quando você ouvir alguma barulheira que costuma ser chamada de rock, não associe o ruído ao gosto musical de seus leitores. Provavelmente não é este tipo de rock que seus leitores apreciam. Se eles gostam de ler seus textos, acho difícil que gostem de rock porcaria, de rock barulheira, de rock para imbecis. Ouso dizer que talvez você seria até capaz de gostar de algumas das músicas que seus leitores gostam.

Um grande abraço,

Humberto Quaglio