¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, novembro 17, 2010
 
PAÍS FECHA PORTOS
PARA A BOA MÚSICA



Grato, Quaglio,

pelas ponderações. Entendeste o que quis dizer. Afinal, durmo com o inimigo. A Primeira-Namorada é – ou talvez era, não sei – guitarreira. Ano passado, se apresentou aqui em São Paulo uma banda, a tal de Radiohead. Segundo ela, um tipo de rock do qual eu gostaria. Fez um CD e deixou comigo. Ok! Não era aquela pauleira que costumamos associar a rock. Mas continuo preferindo música renascentista, fados, flamencos, cante hondo. Valeu a intenção. Mas não me converteu. Continuo ateu.

O gosto musical, como o literário ou culinário, depende de educação. Eu me criei ouvindo Teixeirinha e Pedro Raimundo, Luiz Gonzaga e irmãos Bertussi. Vivia no campo, este era meu universo. Existia ainda a Inesita Barroso, que até hoje ainda curto, é a meu ver o grande expoente da música folclórica no Brasil. De vez em quando a encontro em meus botecos, solene e sozinha, mas sempre acompanhada pela “marvada pinga”.

Na cidade, minha sensibilidade mudou. Acho que no ginásio ainda continuava nesse universo primevo. Minha aproximação com a grande música surgiu no período universitário. Meu curso de Direito, eu o fiz um pouco por influência de Bach, Beethoven, Scriabin, Scarlatti, Vivaldi. Explico. Fiz vestibular para Filosofia, em Porto Alegre, e para Direito, em Santa Maria. Pretendia optar por um dos cursos, e minha preferência era Filosofia. Mas ninguém é dono de seu destino. Através de um colega pianista da Filosofia, conheci uma celista de Santa Maria. Enamorado, decidi fazer também Direito. Era um pretexto para ter um pé em Santa Maria.

Durante cinco anos, fiz um curso, não de Direito, mas de música erudita. A celista tinha uma irmã, flautista. Ficávamos curtindo música, madrugada adentro, eu, o pianista, a flautista e a celista. Lá pelas cinco da matina, eu voltava para casa, dava uma rápida trecheada nos tomos de Direito e às oito horas já estava fazendo exames. Após o último exame, em gesto simbólico, ao voltar para Porto Alegre, joguei meus tratados jurídicos no rio Guaíba.

Mas o mundo gira. O pianista continua pianista. A flautista se revelou tangueira, reencontrei-a em Paris dançando em milongas. E, para minha surpresa, reencontrei a celista em Florianópolis curtindo Chavela Vargas. Mas não abandonou o celo. Ainda há pouco, me mandou um vídeo no qual executa Prokofiev.

Meu encontro com a ópera foi tardio. O mundo operístico no Rio Grande do Sul era muito pobre e tinha uma soprano-pra-toda-obra, a Eny Camargo. A mulher era rotunda. Quando Don José a apunhalava, ela fazia um estrondo no palco ao cair. Detestei ópera em minhas universidades. A obra mostrava uma cigana jovem e sensual e eu via uma velhota gorda e sem graça. Só fui reconciliar-me com o gênero aos 30 anos, em Paris, quando assisti a uma Carmen com a Berganza. Se apenas ouço a ópera, não me importa quem a cante. Mas se a assisto, exijo physique du rôle. Vou mais longe. Acho que uma Carmen tem de ter cara de puta. Essa é uma das razões pelas quais adoro a interpretação da Julia Migenes, no filme de Rosi.

Me falas de espetáculos de música erudita (outra "expressão-ônibus") que atraíram multidões, como em apresentações de músicos mais populares, como Pavarotti. Sim, música erudita também é uma expressão-ônibus. Seja como for, não é para multidões. Se eu antes gostava de Plácido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti, estes senhores caíram em meu conceito quando começaram a cantar em estádios. Não só em meu conceito, mas no conceito de todo músico que se preze. Ópera não é para multidões. Ópera em estádio vira rock. Certa vez, a convite de uma amiga harpista, fui ver a Orquestra Sinfônica de Nova York no Ibirapuera. Horror! Como ouvir boa música ao som de cachorros latindo e pipoqueiros batendo matracas?

Depois que os “três tenores” começaram a cantar em estádios, deles tomei distância. Ora, direis, é uma tentativa de levar a boa música ao povo. Não é. Boa música não é para multidões. É algo camerístico. Boa música exige sala, silêncio, boa acústica. Houve época, no Brasil, em que pianistas se apresentavam em praças públicas, executando clássicos em meio ao ruído do trânsito. Isso não é arte. Mas corrupção, financiada com o dinheiro do contribuinte.

Pelo rock, passei batido. E por razões não exatamente musicais. É que detesto multidões ululantes. Se vejo 50 mil pessoas indo para o norte, eu rumo ao sul, mesmo que no sul esteja chovendo canivetes. O rock é indústria tirânica e predatória, abafa as demais expressões musicais. Música francesa, italiana, alemã ou grega não chega ao Brasil. Você conhece algum cantor sueco? (Não estou me referindo aos Abba, é claro). Algum cantor russo ou finlandês? Tente comprar tarantelas, csárdás ou bouzoukis em uma loja qualquer. Não vai encontrar. Cante hondo, zarzuelas, sevillanas? Ni pensar.

O mundo é rico em sons e do Exterior recebemos toneladas de rock. Fechamos os portos para a boa música que se faz no estrangeiro. Ópera chega, é verdade, mas a conta-gotas. Vá numa grande loja como a Fnac e procure a estante de óperas. É uma vergonha o que se encontra lá. Em compensação, você arrisca encontrar uma estante inteira – já vi, juro que vi – com DVDs do tal de André Rieu, um canastrão da música erudita que vende como pão quente.

O gosto musical, como disse, é como culinária: só se refina com educação e tempo. Ofereça ostras a um jovem. A menos que tenha nascido comendo ostras, ele vai torcer o nariz. Em um país onde cultura é moeda rara, é normal que milhões de jovens engulam sem estrilar o que as gravadoras ianques lhes empurram goela abaixo.

Diga-se o mesmo em relação ao cinema. Fica para outro dia.