¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, novembro 23, 2010
 
ARMADILHAS DO CONSUMO


Comentei ontem que pelos 1400 dólares que fanáticos pagam para ver, por 50 minutos, o ajuste de sons do McCartney, eu pagaria passagem de ida-e-volta a Paris. Perdão, leitores, me enganei. Vou pagar 1220 dólares. 2.100 reais na cotação de hoje. Haja falta de noção do que é bem bom na vida em pais que pagam 1400 dólares para seus filhos assistirem a uma bobagem. Por apenas um pouco mais de grana, poderiam proporcionar aos rebentos uma semana em Paris.

Paris é arquitetura, história, artes, gastronomia. Sena, Boul’Mich, Notre Dame, Saint Chapelle, Montparnasse, Montmartre, Champs Élysées, Louvre, Carnavalet, Eiffel, Pompidou, Deux Magots, Café de Flore, Chez Lipp, e aqui não relaciono sequer um por cento do que Paris oferece. Relaciono apenas o que se pode ver em uma semana. Isso sem falar do que o contato com uma outra cultura proporciona. Trocar isto por um ajuste de sons de uma banda? Me parece insano.

Em uma sociedade consumista, as pessoas são atraídas por tentações imediatas e esquecem – ou ignoram – o que de melhor poderiam ter pelo mesmo que pagam por futilidades. O sommelier da loja onde me abasteço me oferece vinhos de 500 ou mais reais. Ora, companheiro, por quatro garrafas dessas estou em Paris ou Madri, tomando in loco estes mesmos vinhos, por um terço ou menos deste preço. Isso sem falar na solenidade dos restaurantes. Certa vez, em Verona, vi um vinho exposto numa mesa por 11 mil dólares. Ora, por 11 mil dólares eu passo quinze dias na Europa, comendo e bebendo bem. Com uma amiga a tiracolo.

Suponho que nenhum italiano seria suficientemente estúpido para consumir aquele vinho. A meu ver, a garrafa estava ali por uma questão de status. Quem freqüentasse o restaurante poderia dizer aos seus: “estive num restaurante onde um vinho custava 11 mil dólares”. Claro que nunca faltará um americano nouveau riche para pagar por aquela garrafa.

Comentei há pouco o que paguei por duas taças de café com leite mais um sanduichinho numa lanchonete aqui na esquina de casa: 27 reais. 11,56 euros, na cotação de hoje. Ora, dez euros é o que se paga, tanto em Madri como em Paris, por menus executivos em centenas de restaurantes. Entrada, prato principal e sobremesa. Eventualmente, mais meia jarra de vinho. Conforme a casa, o vinho pode ser muito bom. Na rede Museo del Jamón, na Espanha, estes almoços costumam ser ótimos. Se você não conhece o pedaço, pode até se dar mal. Conhecendo um pouco, pode comer muito bem. Dez euros, hoje, igual a 23,34. Menos que o mísero sanduíche e os dois cafés que tomei na madrugada em meu bairro.

Ano passado, almocei em um restaurante de luxo aqui em São Paulo, o D.O.M. Não fui lá de moto próprio, bem entendido. Fui a convite de uma amiga que vive em Berlim e queria oferecer um almoço, a mim e a uma amiga comum, soprano. Quando vi o nome do restaurante, alertei: acho que vais te arrepender amargamente. Se se arrependeu, não sei.

Degustamos uma cozinha artificial, de laboratório, no estilo do Ferran Adriá, que aliás acaba de fechar seu restaurante chiquésimo na Catalunha por falta de clientes. O chef, pura simpatia. Também! Por aqueles preços, ser simpático era obrigação. A cada prato, vinha nos explicar do que se tratava, pois não dava para entender a olho nu o que se comia. Não olhei a conta. Mas pelo que vi no cardápio, aquele almocinho para três custou mais de uma viagem de ida-e-volta à Europa. O restaurante, lotado. Foi necessário reservar mesas com dois dias de antecipação.

Que me perdoem os paulistanos, mas quem freqüenta tais restaurantes não prima pela inteligência. Ora, direis, vai ver que são pessoas que vão a Paris a toda hora. Pode ser. Mas se vou a Paris a toda hora, é claro que não vou aceitar os preços absurdos de um restaurante paulistano. Se lá posso comer por muito menos – e muito menos, mesmo – porque jogar dinheiro fora em um restaurante em São Paulo, onde as pessoas vão não para comer, mas para serem vistas?

Confesso que tenho vida folgada. Mas também tenho noção do que valem as coisas. Salvo se convidado, jamais vou a essas passarelas de exibição. Estive em um outro restaurante metido a besta, muito freqüentado pelos Sarneys, Delfins Nettos e Zé Dirceus da vida, o Massimo. É o que chamo de restaurantes para pessoas jurídicas. Ninguém paga do próprio bolso, mas com verbas de representação. Um amigo havia tido bons lucros na Bolsa e convidou-me. Foi a única vez em São Paulo que devolvi um prato. Pedi um coelho e veio um coelho roxo, com consistência de borracha. Fora isto, tenho freqüentado restaurantes mais caros que os de Paris, que fazer se não estou em Paris? Mas não caio na armadilha das vitrines.

Mês que vem, estarei comendo bem e barato. Lá. Verdade que a sobrevalorização do real nos permite tais mordomias. Os exportadores se queixam. Mas eu não sou exportador e vou aproveitar esta janela.