¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

domingo, outubro 31, 2010
 
SÃO PAULO CHAMA


Há pouco, escrevi sobre a cacrolândia que se aproximava de meu bairro, Higienópolis. Um leitor entendeu que vivo nas cercanias do inferno.

Tenho verdadeiro repúdio pela cidade na qual escolheste viver. Sempre que vou para esse lugar, me desagrado de algo. É o provincianismo metropolitano (parece contradição? Não é. São os Fasanos da vida, o paulistano que se julga rei do mundo, atrás talvez só do nova-iorquino...), o trânsito insuportável, as intermináveis filas, o aglomerado humano, os preços elevadíssimos, as pessoas - especialmente as mulheres - extraordinariamente feias (nasci e cresci em Santa Maria e moro em Porto Alegre, convenhamos que tenho razão no que falo).

Essa cidade é a ante-sala do inferno. E olha que já visitei outras metrópoles. Como consegues viver aí, não faço idéia. Mesmo em Higienópolis, Alphaville, munido de helicóptero e de uma horda de serviçais, ainda assim creio que não conseguiria viver aí.


Não é bem assim, caro leitor. Isso é o que eu pensava quando cheguei aqui, nos anos 70. A primeira impressão que se tem de uma cidade marca muito. Entrei por uma marginal, não lembro agora se a do Tietê ou Pinheiros, um fedor abominável perfurava a janela do ônibus. Isso era o de menos. No rio, duas pessoas faziam regata, sem importar-se com o mau cheiro. O homem se adapta a tudo, pensei na ocasião. Mas eu não penso adaptar-me a esta cidade.

Me prometi jamais viver aqui. Tive acenos da Veja, não aceitei. Em 90, estava desempregado em Curitiba e a Folha de São Paulo me chamou. Abandonei o marasmo de Curitiba – cidade confortável de morar, confesso – e vim. Hoje, não saio daqui nem morto. Pela primeira vez em minha vida, sei onde vou morrer, salvo acidente. São Paulo tem as melhores cabeças do país, os melhores salários, o melhor jornalismo, o maior parque gráfico, o maior número de editoras, livrarias, cinemas e universidades, a mais farta escolha culinária.

Aqui pertinho de casa, só numa ruela de menos de 200 metros, a praça Vilaboim, posso escolher entre três restaurantes japoneses, um francês, um alemão, um mexicano, um italiano, um árabe, um brasileiro. Santa Maria toda não chegará nem daqui a um século às opções culinárias daquela ruelinha. Estou falando, reitero, apenas de uma pequena rua aqui do bairro.

No Fasano ninguém é obrigado a ir. Freqüento ótimos restaurantes, nos quais não pago nem um terço dos preços do Fasano. Se há paulistanos que se julgam o centro do mundo, eu os desconheço. Meus amigos são pessoas que perambularam pelo mundo todo e sabem muito bem que o mundo não tem centro. Em uma cidade que faz seis ou sete Uruguais, há muita opção de amigos.

Os preços são caros? Isso é verdade. Mas sempre se paga um pouco mais para viver bem. Em função da supervalorização do real, há uma distorção dos preços no Brasil. Posso comer muito bem por 25 reais em Paris ou Madri, com entrada, prato principal, sobremesa e eventualmente vinho. Aqui, por esse preço, não consigo nem vinho decente.

As mulheres são feias? Pode ser. No centro da cidade, onde circula o povão. Povão é sempre pobre e beleza é mercadoria escassa entre os pobres, que se vai fazer? No shopping aqui ao lado de casa, há um desfile diário de beldades que se esparrama pelas ruas adjacentes. Ao deambular por meu bairro, seguido tropeço com mulheres de sonho.

O trânsito é insuportável? De fato. Mas isto para quem se locomove. Não tenho carro. Nunca tive. Sou pedestre inveterado e conheço muito pouco da cidade, talvez nem um décimo de seu território. É o que me basta. Raramente saio de meu bairro. Não há por quê. O bairro mais distante que conheço é Vila Madalena, a seis quilômetros do meu. Às vezes, nos fins de semana, vou almoçar lá. Isso é distância muito curta aqui. São Paulo é pandemônio para quem trabalha longe de casa. Aí é complicado. Em verdade, de São Paulo não gosto muito. Só me reconciliei com a cidade no dia em que tomei uma decisão intelectual: não vivo em São Paulo. Vivo em Higienópolis.

Cidades verticais não me agradam. Mas nem sempre se come pão quente. Faço vida de bairro, não dou cem passos sem ser cumprimentado por alguém. Em um raio de 500 metros de meu apartamento, posso esquecer a carteira que tenho crédito. Vivo em uma pequena cidade. Minha geografia é menor do que a que uso em Dom Pedrito. Os garçons todos do pedaço me conhecem pelo nome e me recebem com alegria.

Tenho boa imprensa em minha porta todos os dias. Estive há pouco em Santa Maria, cidade universitária. Estadão ou Folha não chegam mais lá. O jornal mais abrangente que informa os santa-marienses é aquela excrescência, a Zero Hora. A RBS atrasou culturalmente o Rio Grande do Sul. Porto Alegre, cidade onde vivi meus melhores anos, não suporto mais. Só vou para rever amigos e namoradas.

Tenho uma sobrinha que nasceu em Santa Maria e veio trabalhar aqui. A cada feriadão, se tocava de ônibus para o Sul. Isso agora no início, disse para ela. Mais um pouco, e 24 horas em Santa Maria será uma tortura para ti. Não deu outra. Ela ainda volta para visitar os seus. Mas não consegue esquentar banco na cidade. Eu também volto a Dom Pedrito. Para rever amigos de adolescência. Não fosse por isso, acho que meus pés jamais pisariam aquelas ruas. Apesar do afeto que tenho por Dom Pedrito. “A cidade pequena, olha e passa”, dizia Kavafis.

São Paulo tem muitas ilhas. As nobres e as pobres. Se você consegue viver em uma ilha nobre, sem ter de percorrer as pobres, viver aqui se torna agradável. Feriadão em São Paulo é algo delicioso. Dois ou três milhões de pessoas saem da cidade, que vira uma espécie de Dom Pedrito em domingo. Em feriadão, daqui não saio nem atado.

Hoje, enfrentei uma Angélica deserta quando fui a uma mesa eleitoral – para não votar, bem entendido. De lá, fui para a praia. Isto é, para o Prainha, meu boteco, uma espécie de sala de estar onde recebo meus amigos. A quinze minutos de caminhada, está a Vilaboim, onde em poucos metros tenho a culinária de seis ou sete países.

Claro que é melhor viver em Paris ou Madri. Hoje, até poderia morar lá. Ocorre que meus amigos estão aqui e não tenho mais idade para construir novos círculos. Mas são cidades que estão a meu alcance, na hora em que quiser. Então, viver aqui continua sendo mais conveniente. Se você passa uma semana em São Paulo, pode voltar assustado para a aldeia. Quem mora aqui algum tempo não volta mais.

São Paulo chama. E vicia.