¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, outubro 24, 2010
 
DE QUAL PLANETA VIERAM
ESTES DOUTOS SENHORES?


Comentei, há alguns meses, o fenômeno que chamei de zumbis da Guaianases, a rua que mais concentra drogados em São Paulo. A Guaianases fica na chamada Cracolândia, nas imediações da Estação da Luz, onde está a Pinacoteca do Estado de São Paulo e a sala São Paulo, uma belíssima sala de concertos que nada fica a dever para as congêneres de Paris ou Londres. É algo assustador. Centenas de mortos-vivos, crianças e adultos, homens e mulheres, enrolados em cobertores e capuzes, cachimbando crack, estão deitados na rua ou por ela perambulam em busca de droga. Nenhum taxista ousa entrar no pedaço. Tudo isto no centro da mais imponente capital do continente.

Higienópolis, o bairro onde moro, é um dos mais aprazíveis e seguros de São Paulo. A Cracolândia fica a uns dois quilômetros de meu prédio, distância muito curta nesta cidade. A Prefeitura quer revitalizar a Cracolândia. Para isso, está tocando um projeto que chamou de Nova Luz. Uma vasta área está sendo desapropriada e será demolida para dar lugar a um centro administrativo. A tal de revitalização está gerando um efeito funesto. Os nóias estão se espalhando pelas áreas adjacentes, inclusive pelo centro histórico da cidade. Hoje, na praça da República, e mesmo junto ao terminal de Cumbica, você vê pobres diabos jogados na sarjeta, sempre em grupos, chupando tranqüilamente seus cachimbos, em plena luz do dia.

É um belo cartão de visita para quem chega de Nova York ou Paris. Desembarca no maior aeroporto do continente, toma um ônibus de luxo e cai em meio a um amontoado de lixo humano. O número de usuários de crack quase dobrou no Brasil: de 380 mil para 600 mil. O problema está – ou estava - mobilizando o governo federal, que planejava dobrar o número de vagas para internação de usuários neste ano - de 2,5 mil para 5 mil - e lançou ontem um programa de R$ 410 milhões. Só tem um problema. O usuário se interna se concordar em internar-se. Se não concorda, permanece na rua livre como um passarinho, consumindo a droga na frente da polícia.

Higienópolis, mais que um bairro, é um estado de espírito. Administrativamente, não existe. Para efeitos legais, é Santa Cecília. É um fenômeno típico de São Paulo. Quando um bairro começa a degradar-se, sua parte mais rica e sadia muda de nome. Não há fronteiras precisas entre o que se convencionou chamar de Higienópolis e o que permanece como Santa Cecília. Se você vive na região limítrofe e quer vender seu apartamento, mesmo que ele fique obviamente em Santa Cecília, dirá que é Higienópolis. Mas se você quer comprar o mesmo apartamento, dirá que fica em Santa Cecília, embora o proprietário jure de pés juntos que está em Higienópolis.

Com a tentativa de revitalização da Cracolândia, os nóias estão se aproximando de Higienópolis. Jazem agora em torno ao metrô Santa Cecília, que obviamente fica em Santa Cecília. Mas se antes a Cracolândia estava a uns dois quilômetros de minha rua, agora já está a um quilômetro. Os usuários do metrô adotaram uma estratégia: combinam horários para encontrar-se na estação e, ao sair, formam comboios para enfrentar os zumbis de Santa Cecília. Polícia, que é bom, nem pensar.

A polícia vê mas não faz nada. Considera-se que o problema é social, não policial. Às vezes, para mostrar serviço, esvaziam as ruas do crack por algumas horas. Apenas por algumas horas. Ninguém é preso, nem usuários nem traficantes.

Moro a uma quadra do shopping Pátio Higienópolis, um dos mais imponentes de São Paulo, segundo freqüentadores de shoppings. Não posso afirmar o mesmo porque é o único que conheço. No shopping fica o auditório da Folha de São Paulo, onde desfilam desde Fernando Henrique Cardoso a Mário Vargas Llosa.

Na última sexta-feira, a Folha organizou um debate sobre a droga em seu auditório. Em reportagem de Reinaldo Lopes, editor de Ciência do jornal, leio que Ronaldo Laranjeira, da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), disse que sua posição "era lógica do ponto de vista da saúde pública". "A experiência de legalização das drogas ilícitas está aqui perto da gente, é a Cracolândia", ironizou, criticando o fato de que não há um movimento nacional para tentar controlar o uso do crack com a mesma expressão do que defende descriminalizar a maconha.

A jurista Maria Lúcia Karam, membro da ONG internacional Lead, favorável ao fim da proibição da venda de drogas, argumentou por sua vez que a guerra contra substâncias ilícitas aumentou a violência e ainda fez baixar o preço delas mundo afora. "Legalizar é controlar os danos causados pela droga. As pessoas só morrem de overdose porque não sabem o que estão usando".

O neurocientista Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, manifestou-se favorável à legalização das drogas. "Algumas pessoas realmente precisam ser protegidas da maconha, como grávidas e jovens com cérebro em formação -assim como outras pessoas precisam ser protegidas do leite porque têm intolerância à lactose."

Enquanto acadêmicos, juristas e especialistas discutiam a legalização da droga, ali ao lado, na estação Santa Cecília, os nóias fumavam e comerciavam a droga, imbuídos da tranqüilidade dos justos.

De que planeta vieram estes senhores que insistem em legalizar a droga? No Brasil, a droga está há muito legalizada.