¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, julho 26, 2010
 
KALOCAINA - XIII

Karin Boye

Tradução do sueco de Janer Cristaldo




O desjejum da manhã seguinte foi-nos servido em um dos refeitórios. Não éramos os únicos hóspedes noturnos do Palácio da Polícia – na grande sala dezenas de cidadãos-soldados de ambos os sexos e das mais diversas idades – embora todos adultos – se acotovelavam em torno das mesas. Alguém acenou-nos de seu lugar. Era o próprio Karrek que se sentara com sua sopa de milho entre desconhecidos. Embora tivesse tomado lugar antes de nós, sentimo-nos contentes ao ver seu rosto conhecido, e ele tampouco parecia ter algo contra nossa companhia.

– Solicitei audiência para nós três ao Ministro da Polícia – disse ele – e tenho razões para crer que seremos recebidos logo. Apanhem as bugigangas tão rápido quanto possível.

Após o desjejum, corri para apanhar os aparelhos para administrar a kalocaína. Vi depois que minha pressa fora exagerada. Fomos os três conduzidos à sala de espera do Ministro, onde tivemos de esperar uma boa hora antes que se abrissem as portas do gabinete. Antes de nós já esperavam três pessoas, o que me fez supor que a demora seria longa.

Mas fomos os primeiros a serem recebidos. Um funcionário lépido e ágil abriu a porta, dirigiu-se a Karrek e sussurrou-lhe algo. Karrek apontou-nos e fomos conduzidos os três a uma nova sala de espera, onde fomos novamente revistados. As medidas de segurança eram muito mais rigorosas aqui que em nossa Cidade Química, naturalmente porque as vidas que aqui deviam ser protegidas eram mais raras e preciosas que as demais nas outras regiões do Estado Mundial. Já na sala de espera, em maior número que nesta ante-sala e no gabinete do ministro, estavam postados guardas com armas embaladas. Até que finalmente nos encontramos frente ao poderoso homem.

Uma larga figura girou na cadeira e levantou as espessas sobrancelhas em saudação. Era visível que a presença de Karrek o tornava satisfeito. Eu já conheci bem o Ministro Tuareg, do Álbum Fotográfico dos Cidadãos-Soldados, seus pequenos olhos pretos de urso, seu mento autoritário, seus lábios carnudos; e no entanto, sua presença produziu-me uma impressão bem mais forte do que a esperada. Talvez fosse a sensação de estar frente ao Poder concentrado que me fazia tremer. Tuareg era o cérebro dos milhões de olhos e ouvidos que vigiavam dia e noite as conversas e os atos mais íntimos dos cidadãos-soldados, era a vontade os milhões de braços que continuamente, ou em certos momentos do dia, protegiam a segurança interna do Estado – a vontade inclusive de meus braços, quando eu dedicava minhas noites ao serviço policial. Eu, no entanto, tremia, como se não fosse minha mais alta aspiração vê-lo face a face – como se eu fosse um dos criminosos que eu próprio perseguia. Mas eu nada fizera de errado! De onde provinha então esta maldita insegurança em meu espírito? A resposta estava sob meu nariz: tudo dependia de uma ilusão sugerida que podia ser expressa nestas palavras: “Nenhum cidadão-soldado acima dos quarenta tem a consciência limpa”. E quem dissera isto fora Rissen.

– Muito bem, temos aqui nossos novos aliados – disse o Ministro a Karrek. – Os senhores estão preparados para algumas experiências rápidas daqui a duas horas? No terceiro andar uma sala foi disposta para servir de laboratório, um pouco rudimentar talvez, mas acho que lá tem tudo que os senhores precisam. Se faltar algo, é só avisar o pessoal. E as cobaias já estão à disposição.

Dissemos estar prontos e entusiasmados. Terminada a audiência, fomos conduzidos por um outro caminho ao laboratório improvisado do qual o Ministro falara. As instalações eram perfeitamente satisfatórias, desde que não se pretendesse produzir kalocaína em grandes quantidades.

Karrek subiu conosco. Sentou-se em uma mesa numa posição tão relaxada que seria considerada por qualquer pessoa como desleixada e repulsiva

– Então cidadão-soldado – disse ele –, depois de verificarmos as possibilidades de trabalho do local, o que surgiu daquela reunião secreta lá na Cidade Química n° 4?

Rissen era meu chefe e tinha, pois, direito e obrigação de responder primeiro. O que ele fez, depois de um longo silêncio.

– De minha parte, não me parece que seja algo diretamente criminoso. Ligeiramente loucos me parecem todos, mas criminosos... Não.

– Pelo menos até agora – prosseguiu após nova pausa –, não encontramos em nenhum deles um ato contrário à lei, pelo menos nenhum que lhes tenha ocupado suficientemente os pensamentos para que o revelassem durante o efeito da kalocaína. Deixo de lado aquele homem que deixou de denunciar sua esposa por subversão, pois conforme sua vontade, meu chefe, havíamos concordado em não tomar a lei ao pé da letra, pois se trata de recrutamento de cobaias voluntárias. O que eles descrevem, me parece ser uma seita de loucos, mas não uma associação política. Talvez nem se possa dizer que constituem uma seita. Não tem organização alguma, não têm chefes, pelo menos que pudemos entender, não têm lista de membros, nem mesmo nomes, e mal infringem a lei contra associações fora do controle estatal.

– Você é excessivamente formalista, cidadão-soldado Rissen – disse Karrek ironicamente. – Você fala em “constar no regulamento” e “infringir a lei”, como se tinta impressa fosse um obstáculo instransponível. No fundo, você não pensa assim, não?

– Leis e regulamentos existem para nossa proteção... – objetou Rissen, amargo.

– Para proteção de quem? – reagiu Karrek. – Não para a do Estado, em todo caso. O Estado tem mais benefícios com cabeças arejadas, que em caso de necessidade cospem na tinta impressa...

Rissen calou-se a contragosto, mas revidou logo:

– Seja como for, eles parecem inofensivos ao Estado. Podemos tranquilamente soltar os que estão presos e deixá-los todos entregues a seus destinos. E ainda assim a polícia terá muito trabalho com assassinos, ladrões, perjuros...

Chegara minha vez. Precisava lançar meu primeiro ataque sério a Rissen.

– Chefe Karrek – comecei lenta e acentuadamente. – Permita-me fazer algumas objeções, embora, seja, um subordinado. Parece-me que esta associação misteriosa não é nada inocente.

– Estou interessado também em sua opinião – disse Karrek. – Você pensa tratar-se de uma associação comum?

– Dou aos parágrafos seu justo valor – disse eu. – O que quero dizer é que todos aqueles homens, tanto isolados como reunidos, constituem um perigo ao Estado. Antes de mais nada, pergunto: o senhor julga que nosso Estado Mundial necessita de atitude completamente nova, uma filosofia de vida totalmente distinta? Não me entenda mal, estou consciente de que aqui e ali o povo deveria ser estimulado a um senso de responsabilidade mais intenso e maiores esforços, mas uma nova filosofia de vida, diferente da que antes tínhamos? Não é isto em si mesmo uma ofensa ao Estado e a seus cidadãos-soldados? E era exatamente este o conteúdo manifestado pelos prisioneiros: Queremos invocar um novo espírito. Primeiro tomamos a expressão como uma manifestação supersticiosa, e isto já seria condenável, mas o fato em si era ainda pior.

– Você exagera um pouco a situação – disse Karrek. – Minha experiência ensinou-me que quanto mais abstrato algo é, menos perigosos são seus efeitos. Conceitos genéricos podem ser empregados conforme são manipulados, ora num sentido ora em sentido contrário.

– Mas uma filosofia de vida não é algo abstrato – objetei energicamente. – Eu diria que, pelo contrário, é a única coisa que seguramente não é abstrata. E a filosofia de vida desses loucos é contrária ao Estado. Isto se evidencia melhor com o mito do tal de Reor, diante do qual os demais não lhe chegam aos pés em matéria de loucura, e que por isso tornou-se o seu herói e por excelência. Indulgência com transgressores, imprudência com a própria segurança (pois somos um instrumento valioso e caro, isto não deve ser esquecido), relações pessoais mais sólidas que as relações normais com o Estado, é a isto que eles querem nos conduzir! À primeira vista seus rituais parecem asneiras. Num segundo momento se evidenciam como absolutamente repulsivos. São amostras de uma confiança exagerada entre as pessoas, pelo menos entre algumas. E isto, já considero perigoso ao Estado. Os mais crédulos acabam – mais cedo ou mais tarde como seu herói Reor – assassinados por ladrões. E não é este o fundamento do Estado? Existissem bases e razões para a confiança entre os homens, jamais o Estado teria sido erigido. O fundamento sólido e necessário da existência do Estado é a desconfiança mútua e profunda entre os homens. Quem nega este fundamento, nega o Estado.

– Ora – disse Rissen com certa impetuosidade – você esquece que o Estado ainda precisa ser erigido, como centro econômico e cultural.

– Não, não esqueço. E não creia de modo algum que parto de alguma espécie de superstição civilista, de que o Estado existiria em razão de nós e não nós em razão do Estado, como de fato acontece. Quero dizer apenas que o cerne da relação das células privadas para com o Estado reside na fome de segurança. Se um dia notássemos – não estou afirmando que notamos, mas se – que nossa sopa de ervilhas se tornou mais rala, que nosso sabão não presta, que nossas residências estão em ruínas sem que alguém se preocupe com isso, iríamos protestar então? Não, pois sabemos que o bem-estar não é um valor em si mesmo, que nossas renúncias servem a um objetivo maior. E se descobrimos barreiras de arame farpado em nossos caminhos, não nos resignamos a estas limitações da liberdade de movimento sem protestar? Claro que sim. Sabemos que tudo isto acontece para a preservação do Estado, para evitar sabotagens. E se um dia chegássemos a achar que todas as ocupações do tempo de lazer devem ser sacrificadas ao indispensável treinamento militar, que os incontáveis luxos supérfluos que faziam parte da nossa educação devem agora ser deixados de lado em prol de uma imprescindível formação de cada um como trabalhador especializado nos setores absolutamente fundamentais da indústria, teríamos então razões para protestar? Não, não e não! Nós reconhecemos e aplaudimos o fato de que o Estado é tudo; o indivíduo, nada. Admitimos e aceitamos que a maior parte da assim chamada “cultura” – excluo aqui os conhecimentos técnicos – constitui um luxo para tempos em que nenhum perigo ameaça o Estado (tempos que talvez jamais voltem). Resta então a pura subsistência e a cada vez mais desenvolvida organização policial e militar. Este é o cerne da vida do Estado. O resto é secundário.