¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, julho 24, 2010
 
KALOCAINA - XI

Karin Boye

Tradução de Janer Cristaldo



Justamente aquela semana foi excepcionalmente favorável à experiência. Não menos que três dos dez homens do grupo não constavam entre os denunciados, e felizmente a polícia efetuara prontamente as prisões; tínhamos, portanto, três pessoas alheias ao assunto à nossa disposição. O chefe de polícia compareceu pessoalmente ao interrogatório. Sentou-se, longo e magro na cadeira, espichou as pernas à sua frente, junto as mãos sobre o tronco estreito e esperou com um ardor misterioso nos olhos. O chefe de polícia era uma pessoa notável, dessas que parecem ter nascido para ir longe. Sua postura podia ser relaxada, e mesmo mais relaxada que a de Rissen, mas mesmo assim jamais deixava de parecer militar. Enquanto Rissen se deixava levar pelos próprios impulsos e parecia mais puxar que conduzir, o repouso imóvel de Karrek era o gesto antes do salto, e em seu rosto duro e fechado, no brilho sob os olhos semicerrados, podia-se ver o bote de uma fera que não deixaria escapar sua caça. Eu não só sentia respeito por sua força, como também colocava minhas esperanças em seu poder. E logo constataria estar certo.

Os três prisioneiros foram trazidos um a um e interrogados. Dois eram de uma espécie com a qual nada tínhamos no momento a fazer, eram criminosos comuns, que simplesmente haviam sido atraídos pelas somas que o espião prometera. Um deles, uma mulher, nos divertiu com suas confidências íntimas sobre a natureza e hábitos do marido. Uma mulher viva e inteligente, mas nada aceitável como cidadã-soldado, com o mais compacto e acirrado egoísmo.

O terceiro, porém, deu-nos algo em que pensar.

Por que não denunciara sua mulher ficou totalmente obscuro, mesmo para ele mesmo. Por um lado não mostrou nenhuma gratidão extasiada pela confiança de sua esposa como a mulher pálida que interrogávamos antes; por outro lado não tinha interesse algum pelas somas prometidas. Embora não negasse diretamente a possibilidade de que a mulher fosse espiã, demonstrava visivelmente não estar certo de que tudo realmente ocorrera como a mulher contara. Tudo o que se podia dizer era que uma certa apatia o impedira – uma apatia que talvez pudesse vencer alguns dias depois, mas isto era impossível de se saber. Tivesse Karrek se decidido a tomar a lei ao pé da letra, esta apatia o teria qualificado como perigoso ao Estado. Enquanto um homem assim apático se decidia a agir, a subversão já poderia ter completado sua obra. E como se isso não bastasse, sua hesitação testemunhava uma ligação extremamente frágil ao Estado. Não foi, pois, surpresa para mim, quando ele deixou escapar.

– Em verdade, tudo isto é muito menos importante que nosso objetivo.

Agucei os ouvidos e vi que o chefe de polícia fazia o mesmo.

– O objetivo de vocês? Perguntei. Mas quem são vocês?

Ele sacudiu a cabeça com um sorriso ingênuo e rápido.

– Não pergunte. Não temos nome, nem organização. Nós apenas existimos.

– Existem como? Como se chamam nós, se não têm nome nem organização? Quantos são vocês?

– Muitos, muitos. Mas eu não conheço muitos. Já vi muitos, mas nem sei como se chamam. E por que precisaríamos sabê-lo? Sabemos que somos nós.

Como já mostrava sinais de despertar, olhei interrogativamente, primeiro para Rissen, depois para o chefe de polícia.

– Por tudo o que existe no mundo, continue – murmurou Karrek entre dentes. Rissen também dez um gesto afirmativo. Dei, então, ao homem mais uma injeção.

– E agora, o nome dos que você conhece.

Alegre e inocentemente, sem a mínima hesitação, deu cinco nomes. Era tudo, declarou. Não conhecia outros. Karrek fez sinal para que Rissen os anotasse.

– E qual é a revolução que vocês planejam?

Apesar da dose, não deu resposta alguma. Contorceu-se ante a pergunta e fez um visível esforço, mas nada saiu dele. Por um momento pensei novamente que talvez sob certas circunstâncias a kalocaína pudesse ser ineficaz, e comecei a suar frio. Mas talvez a pergunta tivesse sido mal formulada – embora a mim me parecesse suficientemente clara – de forma que a cobaia nem mesmo desperta pudesse respondê-la.

– Vocês querem algo, não é verdade? – perguntei cuidadosamente.

– Claro, claro que queremos algo...

– O que então?

Silêncio novamente. Depois, com hesitação e esforço:

– Queremos se... Queremos tornar-nos... Uma outra coisa...

– Sim? E vocês querem se tornar o quê?

Silêncio. Um suspiro profundo.

– Querem ocupar determinados postos?

– Não, não. Isso não.

– Querem ser outra coisa que não cidadãos-soldados do Estado Mundial?

– N-n-não... Quero dizer... Não, isso não...

Eu estava estupefato. Karrek cruzou as pernas com um movimento silencioso, espichou as mãos ainda cruzadas, piscou com o olho e disse em voz baixa, perscrutante.

– Onde você encontrou os outros?

– Na casa de um deles, que eu não conheço.

– Onde? E quando?

– Distrito RQ... Quarta-feira, há duas semanas...

– Quantos estavam lá?

– Quinze... Vinte.

– Então não será difícil de descobrir onde era – disse Karrek para mim e Rissen. – O porteiro deve saber disso.

E continuou o interrogatório.

– Vocês têm licença, naturalmente. Sob nome falso?

– Sob nome falso não. A minha pelo menos era verdadeira.

– Então é bem mais fácil. Adiante. Do que trataram?

Mas aí, mesmo Karrek fracassou. As respostas do interrogado se tornaram confusas e inseguras.

Deixamos em paz o perturbado homem, ainda mais que a segunda dose já começava a perder seus efeitos. Acordou com forte mal-estar. Não parecia ter sofrido muito moralmente, estava nervoso, mas não desesperado; surpreso, mais que confuso.

Quando desapareceu pela porta, o chefe de polícia pulou da cadeira com todo seu comprimento elástico, respirou fundo e disse:

– Temos trabalho aqui. O homem não sabia de nada, isto é certo. Os companheiros devem saber mais. Podemos catá-los, nome a nome, até os mais secretos círculos. Quem sabe, chegaremos a uma imensa conspiração, quem sabe?

Fechou os olhos, e um ar de satisfação descontraiu os traços nodosos. Adivinhei seu pensamento: Isto levará minha fama a todos os recantos do Estado Mundial. Talvez eu pensasse errado. O chefe de polícia e eu tínhamos naturezas diferentes.

– Quanto ao resto – continuou lentamente, olhando perscrutadoramente pra um e outro. – Quanto ao resto, terei que viajar por curto tempo. É possível que vocês sejam logo chamados para um outro lugar. Estejam de malas prontas. O chamado poderá ocorrer em casa ou no trabalho. Por uma questão de segurança, tenham uma mala pronta no laboratório, assim não precisarão atrasar-se para apanhá-la, uma pequena mala com o mais necessário, para ficar fora alguns dias. E tenha os aparelhos em ordem, para levá-los consigo e mostrar como sua kalocaína funciona.

– E o serviço militar? – perguntou Rissen.

– No caso de algum problema, é evidente que arranjo tudo. Se não o consigo, então nada é feito. Não prometo nada. Que farão vocês nos próximos dias?

– Continuaremos com experiências e mais experiências.

– Então não há empecilhos para que sigam este fio. Falo no que descobrimos com o último interrogado. Em vez de empregar cobaias do Serviço Voluntário, desenrolem polegada a polegada o novelo de nomes que lhes deu, registrem tudo o que emergir e esperem pelas providências. Que acham disto?

Rissen hesitou.

– Não há nada sobre tais casos no regulamento do laboratório.

O chefe de polícia riu desdenhosamente.

– Não sejam burocratas – disse. – Se lhe chegar uma ordem do chefe do Laboratório Central – é Muili, não? – imagino que você não se prenderá tão rigidamente ao regulamento. Falarei diretamente com Muili. Depois é só deixar todos os nomes na Casa da Polícia. Disto talvez dependa o bem ou mal do Estado – e você fala em regulamento!

Ele se foi e ficamos olhando um para o outro. Penso que minha fisionomia era vitoriosa e ao mesmo tempo de admiração. Nas mãos de um homem como Karrek, eu podia tranquilamente confiar minha sorte. Ele era feito de vontade pura, para ele não existiam dificuldades.

Mas Rissen franziu a testa, resignado.

– Acabaremos nos tornando uma subseção da polícia. Adeus, ciência.

Isto me tocou. Gostava de meu trabalho científico e sentiria muito sua falta, se não pudesse executá-lo. Mas Rissen era pessimista por natureza, tentei persuadir-me. De minha parte, eu vi apenas a Escada diante de mim e a primeira e única pergunta era se ela conduzia ao alto. O resto cabia ao tempo mostrar.

Uma hora depois chegou a ordem do chefe do Laboratório Central, de que devíamos dedicar-nos a nosso trabalho segundo a linha indicada pelo chefe de polícia. Na Casa da Polícia estavam todos já instruídos, bastava que déssemos por telefone o nome dos que queríamos ter presos, e as pessoas em questão estariam em nossas mãos em vinte e quatro horas.

O primeiro a ser enviado era um jovem com um período relativamente curto de acampamento juvenil, e com uma curiosa mistura de insegurança e orgulha da hostilidade à vida social, à qual ainda não se sentia totalmente adaptado. Sob a influência da kalocaína, seu amor-próprio pôde expandir-se de uma forma que parecia cômica a nós adultos, e ele começou a relatar-nos vastos e vagos planos futuros. Ao mesmo tempo admitia sentir-se muitas vezes profundamente irritado com os seres à sua volta. Estes lhe queriam mal, disse. De fato, eu havia sugerido que deixássemos as cobaias falarem por si tanto quanto possível, pois o último fora interrogado bastante asperamente; mas este caso revelava uma psicologia juvenil um tanto exacerbada para que Karrek pudesse sentir-se satisfeito de modo que por fim passei ao ataque e perguntei-lhe se não conheci nosso último prisioneiro.

– Sim. Somos companheiros de trabalho.

– Você o encontrou alguma vez fora do trabalho?

– Sim, ele convidou-me para um encontro...

– No distrito RQ? Na quarta-feira, há quatorze dias atrás?

O rapaz sorriu ligeiramente e pareceu bastante interessado.

– Sim. Um encontro estranho. Mas eu gosto muito deles. De certa forma eu gosto deles...

– Você pode nos contar o que lembra?^

– Claro. Foi estranho. Entrei, e só vi gente que não conhecia. Nada havia de especial. Quando sacrificamos uma noite livre para a vida comunitária, quase sempre o fazemos para discutir algo referente ao trabalho ou coisa parecida, uma festa planejada ou uma declaração às autoridades, e é perfeitamente compreensível que não conheçamos todos os participantes. Mas não se tratava disso! Eles não discutiam coisa alguma. Eles se sentavam e falavam sobre tudo, ou simplesmente se calavam. Calavam-se de uma forma tal que me deixava o coração opresso. E, além disso, a forma como se cumprimentavam! Apertavam-se as mãos. Inacreditável! Algo necessariamente anti-higiênico e, além disso, tão íntimo que nos dá vergonha. Tocar no corpo de um outro, intencionalmente! Eles afirmavam tratar-se de uma antiquíssima saudação que haviam retomado, mas não precisava utilizá-la, caso não se quisesse, não se era obrigado a nada. Mas no início eu tinha medo deles. Nada é tão horrível como sentar e ficar calado. Tem-se um sentimento de que todos penetram a gente. Como se estivesse nu, ou pior ainda. Espiritualmente nu. Principalmente na presença de pessoas mais velhas, pois estas aprenderam a ver através da gente e, além disso, quando falam, falam superficialmente, permanecendo alertas sob a superfície. Já me aconteceu de conseguir falar superficialmente e manter-me alerta sob a superfície e após isto me senti alegre, como se houvesse escapado de um perigo. Mas lá eu não conseguia isto. Nenhum deles se deixaria enganar. Quando não falavam, falavam baixinho, e parecia que não pensavam em mais nada naquele instante. Penso ser melhor falar alto, assim se consegue captar a atenção dos outros, fala-se alto e se mantêm os pensamentos em outro lugar. Mas eles eram tão estranhos! Por fim, acabei achando aquilo agradável e pensei gostar deles. Tudo era de certa forma tranquilo.

Tudo isto pouco esclareci. O garoto era noviço no movimento, e ainda não fora introduzido em seus segredos. No entanto, perguntei, por via das dúvidas.

– Você viu algum chefe do grupo? Alguma distinção de graus?

– Não... Não que eu visse. Tampouco ouvi alguém falar sobre isso.

– E o que mais fizeram? Falaram sobre algo que fizeram ou pretendem fazer?

– Não que eu saiba. Se bem que tive de sair mais cedo, eu e mais alguns que também não tinham estado lá antes, creio. Depois não sei o que fizeram. Mas ao sairmos, alguém disse: quando nos encontrarmos lá fora, nos reconhecemos. Não consigo explicar isto, mas era algo realmente solene, e eu acho que os reconheceria; não precisamente os que encontrei lá, mas qualquer um deles. Existia algo especial neles, que não consigo descrever. Quando cheguei aqui, sabia perfeitamente que o senhor (indicou a mim) não pertencia ao grupo. Mas quanto a ele (dirigiu vagamente o olhar a Rissen), quanto ele não estou certo. Talvez pertença ao grupo, talvez não. Só sei que me senti mais calmo entre eles do que entre quaisquer outros. Lá eu não experimentava essa sensação tão palpável de que eles me quisessem mal.

Olhei friamente para Rissen. Parecia tão espantado que logo percebi ser inocente, se por inocente entendemos que jamais participou de tais encontros secretos que o jovem descrevera. Mas algo permanecia nebuloso. Também em Rissem existiam os mesmos veios associais, um certo parentesco com toupeiras cegas.

O garoto despertou com remorsos desproporcionais aos fatos relativamente inofensivos que contara. Pelo que entendi, sua angústia não se devia ao relato da reunião, senão às confidências de ordem pessoal que havíamos interrompido com bocejos.

– Acho que devo esclarecer algumas coisas, murmurou ele já de pé, um pouco trêmulo. Aquilo que eu disse, que era inseguro em relação aos outros, não é exatamente verdade. Apenas me pergunto o que pensam de mim. Não quis dizer que necessariamente me queiram mal E tudo que disse desejar ser ou fazer era pura fantasia, sem um pingo de verdade. Também fui um pouco exagerado ao dizer que me sentia melhor com aquela gente estranha do que com as pessoas comuns. Claro que me sinto melhor com gente comum, quando reflito um pouco...

– Também estamos convencidos disto – disse Rissen gentilmente. – No futuro você deve manter-se junto aos outros, os comuns. Suspeitamos fortemente que aquele grupo em que você caiu por acaso é perigoso ao Estado. É evidente que você não foi ainda contaminado, mas tome cuidado! Quando você menos espera, eles o envolvem em suas redes.

O garoto parecia aterrorizado ao sumir pela porta.

Não sei que terríveis planos esperávamos de fato descobrir da reunião que se seguiu após o garoto e dos demais serem enviados a suas casas. Algum dos prisioneiros, no entanto, deviam ter permanecido enquanto eles conspiravam. Interrogamos minuciosa e sistematicamente os quatro que ainda restavam, anotamos meticulosamente suas declarações, mas demorou algum tempo até que pudéssemos ter uma idéia aproximada da liga secreta. Muitas vezes olhamos um para o outro e sacudimos a cabeça. Estaríamos lidando com um grupo de débeis mentais? Eu jamais ouvira falar de algo assim fantástico.

Antes de mais nada, estávamos no ar quanto à própria organização, nomes dos chefes, ramificações. Ao poucos íamos descobrindo que não existiam chefes nem organização alguma. Acontece muitas vezes em conspirações secretas que os membros da graduação inferior não têm acesso aos segredos mais importantes; tudo o que sabem é o nome de dois ou três membros, tão sem importância quanto eles próprios. Concluímos que este é o tipo de membro que tínhamos em mãos. No entanto, certamente chegaríamos às mais altas esferas, onde se sabia mais, através dos prisioneiros. Bastava apenas continuar.

Que acontece, depois que os noviços deixam a casa? – perguntamo-nos antes de mais nada. Uma mulher fez-nos uma descrição fantástica.

– Apanha-se uma faca. Um de nós a entrega a um outro, deita-se numa cama e se finge que dorme.

– Muito bem. E depois?

– Depois? Nada mais. Se alguém mais quer participar, tem lugar para ele também fingir que dorme. Pode-se também sentar e apoiar a cabeça na cama. Ou na mesa ou em qualquer outra coisa.

Quase sufoquei-me com uma gargalhada. A cena era impagável. Alguém senta-se, sério, com uma grande faca de mesa na mão (obviamente se tratava de uma faca de mesa, era a mais fácil de obter, bastava apenas esquecer de deixá-la junto ao prato do almoço), em meio as outras pessoas também sérias. Um espicha-se na cama com as mãos sobre a barriga, cerra fortemente os olhos, quem sabe tenta inclusive roncar. Um após o outro apanham uma almofada e a colocam por perto e encenam seu papel na peça. Alguém sentado escorrega de sua posição contra a beirada da cama, apóia a nuca na pata, boceja... Fora isso, silêncio e morte.

– Nem mesmo Rissen pôde impedir um sorriso.

– E qual é o sentido disto? – perguntou.

– Um sentido simbólico. Através da faca ele se entrega à violência do outro. E, no entanto, nada lhe acontece.

(E, no entanto, nada lhe acontece! Com um monte de gente em torno. Pessoas que roncam acordadas e podem a qualquer momento olhar de revés. Não lhe acontece nada quando um de seus hóspedes – registrado legalmente pelo porteiro – fecha a mão em torno de uma faca que não corta nem água e escuta quão confiantemente ele ronca...)

– E para que serve tudo isso?

– Queremos invocar um novo espírito – respondeu a mulher, muito séria.

Rissen apoiava o queixo, pensativo. Em conferências sobre história eu ouvira falar, e com certeza também Rissen, que os selvagens da antiguidade costumavam invocar certas divindades e executar certas práticas, ditas mágicas, para chamar seres imaginários, ditos espíritos. Persistiria isso ainda em nossos dias?

Da mesma mulher extraímos certas alusões a um louco total que desempenhava um certo papel dentro de seus círculos. Em verdade, não se precisava muito para servir de herói para essa gente.

O senhor conhece Reor? – perguntou ela – Não, ele não vive mais, ele vivia há mais ou menos quinze anos, segundo alguns, em alguma das Cidades Hidráulicas, segundo outros em alguma das Cidades Têxteis. Imagine não ter ouvido falar em Reor. Eu quis fazer uma conferência sobre Reor certa vez. Embora tudo seja verdade, só os iniciados podem compreender. Se se quer falar de Reor, é preciso dirigir-se aos iniciados. Ele andava por aqui e por ali, pois naquele tempo não existia o problema de licenças, alguns o acolhiam por medo, pois pensavam que pertencesse à polícia; outros o expulsavam, pois pensavam que fosse um criminoso. Mas os que o receberam – claro, nem todos observaram como ele era – julgaram-no apenas estranho; já outros descobriram que podiam sentir-se calmos e tranquilos com ele, como um bebê nos braços da mãe. Alguns o esqueceram, mas outros jamais o esquecerão e contam dele tudo o que lembram. Mas só os iniciados entendem isto. Ele jamais trancava sua porta. Jamais se importava com testemunhas ou provas do que fazia ou dizia. Nem mesmo se protegia contra ladrões e assassinos, e por isso acabou sendo assassinado por um ladrão que pensou que Reor tivesse um pedaço de pão em sua mochila. Mas ele não o tinha mais, já o havia comido com alguns outros que encontrara pelo caminho... Mas este pensou que ele o carregava. E espancou-o até a morte.

– E com tudo isso vocês o julgam um grande homem? – perguntei.

– Ele era um grande homem. Reor era um grande homem. Era um dos nossos. Existem ainda alguns que o conheceram.

Rissen olhou expressivamente para mim e sacudiu a cabeça.

– A lógica mais engraçada que já vi em minha vida – disse eu. – Sejamos como ele, que foi assassinado por um ladrão! Não entendo nada.

– Você falou em iniciação – disse Rissen à mulher, sem importar-se comigo. – Como alguém se inicia?

– Não sei. Nos iniciamos, simplesmente. Acontece. Os outros notam isto, os que também são iniciados.

– Então qualquer um pode chegar a dizer que é iniciado? Deve existir algum procedimento, alguma cerimônia; segredos que não se divulgam...

– Não, nada disso. Nota-se, eu disse. Nos tornamos iniciados, compreende, ou não nos tornamos; alguns jamais o conseguem.

– Como se nota isso então?

– Bem... Nota-se por tudo... Aquilo da faca e do sono torna-se então sagrado e claro para nós... E muito mais...

Estávamos tão bem informados quanto antes.

Se a mulher era pessoalmente louca ou se dividia sua loucura com toda aquela gente, era impossível saber. Só podíamos estar certos dos ritos mágicos com a faca e a simulação do sono, isto foi confirmado pelos outros; em compensação não ficou claro se ocorriam sempre ou se eram ocasionais. Tampouco conseguimos encontrar rastros do mito de Reor em todos, embora subsistisse em alguns. O que existia realmente de comum naquele círculo, além de todos, sem exceção, se comportarem de maneira estranha?

Um outro, também uma mulher, tinha alguns nomes para dar-nos. Achamos então conveniente interrogá-la persistentemente quanto à organização. Sua resposta foi tão espantosa como a dos outros.

– Organização? Não buscamos organização alguma. O que é orgânico não precisa ser organizado. Vocês constroem de fora para dentro, nós construímos de dentro para fora. Vocês constroem utilizando a vocês mesmos como pedras, e ruem por dentro e por fora. Nós nos construímos desde dentro como árvores, e crescem pontes entre nós que não são de matéria morta ou força bruta. De nós emerge o vivo. Em vocês submerge o inanimado.

Tudo isto me pareceu um jogo de palavras sem sentido e, no entanto, impressionou-me. Talvez fosse a própria intensidade de sua voz profunda que me fez vibrar. Não era impossível que Linda me tivesse vindo à lembrança, sua voz profunda e intensa, em especial certas vezes, quando parecia não estar tão cansada. Pensei então em como reagiria se agora, em lugar da mulher desconhecida, estivesse Linda entregando-me seu íntimo, com um tom de voz tão penetrante e chamativo. Ocultei por muito tempo na memória as palavras isoladas que repetia para mim mesmo, e julgava fazê-lo por achar que soavam bem em toda a sua falta de sentido. Muito, muito tempo depois, comecei a entrever um sentido nelas. Mas já então me haviam tocado, dando-me um primeiro vislumbre do que queria dizer com “nós”, com reconhecer-se lá fora e com um círculo de iniciados sem organização, sem sinais exteriores nem grandes ensinamentos ou doutrinas visíveis.

Quando ela foi liberada, dirigi-me a Rissen:

– Ocorreu-me algo. Talvez tenhamos interpretado mal essa história de “espírito”. Quem sabe isso não quer dizer uma forma interior, uma filosofia de vida. Ou o senhor acredita que está é uma interpretação por demais sutil para surgir de um tal círculo de loucos?

Quando ele olhou para mim, senti medo. Que me entendeu perfeitamente, isto pude ver, mas também algo mais. Vi que também ele se sentira influenciado pela natureza intensa e quente da mulher. Vi que ele era ainda mais receptivo do que eu. E também vi que seu próprio olhar, seu próprio silêncio me empurravam em uma direção, que todo o meu senso de dever, todo o meu sentimento de honra me proibiam de tomar. Ele estava preso nas malhas da rede daqueles loucos, e inclusive eu senti em certo momento a suave e poderosa atração.

Não havia o primeiro garoto dito que Rissen bem poderia pertencer ao grupo de loucos, à seita secreta? Não tivera eu o pressentimento de que em Rissen se escondia uma ameaça e um perigo? Desde agora eu sabia que nutríamos uma inimizade profunda.

Restava-nos ainda um dos prisioneiros, um homem já velho com feições inteligentes, e eu o temia – quem sabe não teria a mesma força sugestiva que a mulher de há pouco –, e ao mesmo tempo esperava grandes revelações dele. Ele, mais que ninguém, devia estar por dentro dos círculos mais secretos, e, com alguma sorte, encontraríamos nele provas definitivas de que toda aquela seita de loucos deveria se condenada e exterminada, para alívio e salvação de mim mesmo e de muitos outros. Mas quando ele já havia sido introduzido e mal o havíamos feito sentar, o telefone tocou e eu e Rissen fomos chamados por Muili, o chefe do Laboratório Central.