¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, abril 20, 2010
 
TODO LOUVOR À
MOÇA DA CAIXA



Nem tudo está perdido, me escreve um leitor. Ao passar em um hipermercado, viu um livro junto à esteira da mesa de uma caixa. Era O Idiota, do Dostoievski.

- Logo que o vi, pensei em seus artigos. Então eu perguntei à operadora: "Este livro é seu? É que é raro alguém hoje em dia ler tal livro. A maioria só lê Harry Potter... e afins." Ela falou que procura livros em sebos. É jovem de uns 25 a 30 anos, diria. Não me disse se estava fazendo algum trabalho universitário. Uma pessoa normal demais para você achar que goste de ler. Fiquei admirado. Tão admirado que te escrevo estas linhas”.

Não há idade nem classe social nem condição econômica específicas para se ler boa literatura, meu caro Thomas. Livro é um objeto relativamente barato. Não vivemos mais nos dias de Beccadelli Panormita, que vendeu uma porção de terra para adquirir, por 120 escudos de ouro, as obras de Tito Lívio. Nem na época da condessa d’Anjou, que comprou as Homilias de Aimon d’Halberstadt por duzentas ovelhas, três moios de tribo e boa quantidade de peles de marta. A propósito, estas informações eu as colho em Guerra sem Testemunhas, de Osman Lins, um dos bons escritores nacionais, cujas obras hoje só encontramos em sebos.

Em meus dias de universitário, ainda em Porto Alegre, tive uma experiência extraordinária. Precisava mudar de apartamento e contratei uma camionete para transportar meus poucos trastes. O chofer, retaco e parrudo, mal pôs os olhos em meus livros, comentou:

-Você tem uma bela biblioteca.

Comentei que nem considerava aquilo uma biblioteca. Seriam apenas um trezentos ou quatrocentos livros. Não mereciam tal dignidade.

- Não estou falando da quantidade – me disse –. Me refiro à qualidade.

Bom, o diálogo mudava de figura. Perguntei se era chegado a leituras.

- Sou. Mas só leio os clássicos.

E passou a discorrer sobre Dostoievski, Tolstoi, Gogol. Me falou inclusive de um excelente e pouco conhecido autor, Kuprin, do qual eu tinha um exemplar de Yama, uma curta e densa novela sobre a vida nos prostíbulos. Claro que não era um brasileirinho comum. Chamava-se Ivan, era russo branco e ganhava seu pão fazendo fretes.

Vivi apertado em meus dias de universidade. Mas, por poucos cruzeiros, eu tinha acesso ao pensamento de Nietzsche, aos poemas de Pessoa, às viagens imaginárias de Swift. Por caro que fosse um livro, eu não o considerava caro, já que me trazia o pensamento de homens de outras culturas e outra épocas. Não, não me espanta que um caixa de supermercado leia Dostoievski. Me espantaria, isto sim, ver um bem situado empresário lendo O Idiota.

"O rico não lê" – me disse certa vez um editor português -. "Está muito ocupado com seu iate, suas ações, seu scotch. Nós apostamos na classe média para baixo". Cá entre nós, a leitura é um dos lazeres de melhor relação custo/benefício. Por poucos reais, você pode embarcar em viagens fascinantes.

Não tenho dados, mas é de supor-se que nos dias de Balzac, Stendhal ou Dostoievski se lesse bem mais que hoje. Não existiam os derivativos da cultura visual, o cinema e a televisão. Dostoievski publicava seus romances em folhetins nos jornais e tinha grande público. Isto responde inclusive a uma questão, porque escrevia livros tão extensos. É que recebia por página e precisava pagar suas dívidas de jogo. Bendito vício que nos rendeu as longas digressões dos Karamazov, de Myskhin e Rogozhin, de Stravogin, Verchenskij e Kirilov.

Você pode embarcar em viagens fascinantes, dizia. Ou pode também ir à Disneylândia. É o que faz o leitor de bestsellers, literatura barata produzida para vender aos milhões e satisfazer os baixos instintos de certo tipo de leitor. Quando vejo alguém lendo em público, sempre espicho o olhar para ver o que está lendo. Ultimamente, só tenho visto os Harrys Potters, Dans Browns, Danielles Steels e Paulos Coelhos da vida. Certa vez, vi uma moça num ônibus lendo Orwell. E só.

Um outro leitor me fala de uma executiva da Editora Record, que dizia ser necessário publicar o bestseller para que outros tipos de livros, de melhor qualidade, sejam publicados a preços mais acessíveis. A má literatura seria adubo da boa. De fato, um editor não vive da publicação de livros sublimes. Mas o argumento é safado. Porque editora de bestsellers dificilmente publica livro que preste.

A verdade é que o bom livro exige campo fértil para ser semeado. Ensaios de peso como os de Le Goff, Delumeau, Eliade encontram grande público em países como Alemanha, França, Espanha, Portugal. Aqui, ficam numa primeira edição. Há algum tempo, ouvi observação que me deixou pasmo. Eu lia em meu boteco um livro publicado nos anos 30, páginas amarelecidas pelo tempo. Um parceiro eventual de mesa - não confundir com amigo - manifestou surpresa: “tu lês livros antigos”? Ora, leio preferentemente livros antigos. Pelo jeito, ler livros antigos virou algo démodé.

Todo louvor à moça do caixa. Ela sabe onde está a boa literatura. Nos sebos. Sim, também há boa literatura nas livrarias. Mas é prudente tomar distância dessas que alugam suas vitrines para bestsellers.