¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, fevereiro 28, 2010
 
PRESCRIÇÕES DE
MEU UROLOGISTA



Quem me acompanha, sabe de meu apreço por leituras de teologia, religiões e história do cristianismo. Para meus desafetos, isto é sinal que ainda não encontrei uma fé e estou vivendo uma crise espiritual. Nada disso. Desde há muito sou ateu e convivo serenamente com esta condição. No dia em que deixei de acreditar em Deus e nas coisas do além, fui tomado por uma extraordinária sensação de liberdade. Se hoje leio livros sobre teologia ou religiões, por um lado os leio para divertir-me. Nada mais risível do que ver as acrobacias intelectuais dos teólogos para justificar o injustificável, para provar o improvável. Por outro lado, estas leituras me ajudam a entender o Ocidente e as circunstâncias em que vivo. Ninguém conseguirá entender este nosso mundinho se não conhecer a história do cristianismo.

Um de meus pavores é estar em algum lugar público, esperando algo ou mesmo nada esperando, sem ter nada para ler. Quando saio à rua, me muno de jornais e livros. Considero que um homem bebendo solitário em um bar, sem nada para ler, é um bêbado em potencial. Ou, no mínimo, um homem vazio. Já um homem que bebe tendo um livro nas mãos é outra coisa. É um leitor que bebe enquanto lê. Este medo de estar sem leitura em lugares públicos até ganhou um nome, criado por esses construtores contumazes de palavras: biblioagorafobia. Biblioagorafobo desde o berço, me sinto no deserto se sento em algum café ou bar sem leitura em punho. Meu urologista também.

Sempre o encontro nos cafés de meu bairro. Temos algo em comum: ele está sempre absorto, mergulhado em leituras, alheio ao universo que o cerca. Não que leia sobre medicina. Ele lê em todas as direções. E particularmente sobre religiões e história das religiões. É leitor entusiasta, daqueles que se entregam a um bom livro com o mesmo prazer de gourmet que degusta um bom prato. Sempre que nos encontramos, trocamos bibliografias. Em nosso último encontro, prescreveu-me dois livros.

O primeiro foi História do Cristianismo – para compreender melhor nosso tempo, antologia de ensaios organizada por Alain Corbin. Onde leio, já na introdução:

“O cristianismo impregna, com maior ou menor evidência, a vida cotidiana, os valores e as opções estéticas até mesmo dos que o ignoram. Ele contribui para o desenho da paisagem dos campos e das cidades. Às vezes, ganha destaque no noticiário. Contudo, os conhecimentos necessários à interpretação dessa presença se apagam com rapidez. Com isso, a incompreensão aumenta.

“Admirar o monte Saint-Michel e os monumentos de Roma, de Praga ou de Belém, deleitar-se com a música de Bach ou de Messiaen, contemplar quadros de Rembrandt, apreciar verdadeiramente certas obras de Stendhal ou de Victor Hugo implica poder decifrar as referências cristãs que constituem a beleza desses lugares e obras-primas. Entender os debates mais recentes sobre a colonização, as práticas humanitárias, a bioética, o choque de culturas também supõe um conhecimento do cristianismo, dos elementos fundamentais da sua doutrina, das peripécias que marcaram sua história, das etapas da sua adaptação ao mundo”.

É o tipo de livro que me agrada ler. Não que me traga algo de novo. Mas é como repassar uma aula, aula que nunca tive. Na escola, estudamos no máximo uma doutrina religiosa. Jamais se estuda história das religiões. Os proselitistas sabem que estudar história das religiões é perder a fé. Mergulhei com entusiasmo na prescrição de meu urologista e a recomendo a meus leitores.

A segunda prescrição foi outro livro, completamente alheio a este tema, mas também fundamental para entendermos o mundo em que vivemos. O Livro dos Números – uma história ilustrada da matemática, de Peter Bentley. E soberbamente ilustrado, com farta iconografia. Números têm muito a ver com religião. Neste livro descubro, entre outras coisas, que nosso calendário está incorreto ao celebrar o primeiro aniversário de Cristo no dia em que ele nasceu. Ocorre que na época não se tinha a noção de zero.

“Em 2 d.C., Cristo tinha um ano. Em 3 d.C., tinha dois. (De fato, o calendário é provavelmente muito mais impreciso ainda, pois, segundo Mateus, capítulo 2, o rei Herodes estava vivo quando Jesus nasceu, e os registros históricos mostram que Herodes morreu em 4 a.C.) Portanto, nosso calendário é um pouquinho atrapalhado. Como não tivemos zero algum, o início do século II foi na verdade 101 d.C. As recentes celebrações do milênio ocorreram a um ano inteiro de distância do devido momento – o ano 2001 d.C. ocorreu na realidade 2.000 anos depois do nascimento (percebido) de Cristo. Talvez devêssemos aprender a contar a partir de zero”.

Isto é só aperitivo. O autor continua perseguindo o desenvolvimento da matemática na história, ilustrando sua tese com a biografia e achados dos grandes nomes da área. É livro tão importante para entender o mundo como uma história das religiões.

Tim-tim, leitor! Eu, que pouco ou nada entendo do universo matemático, estou mergulhando com gosto neste livro. Recomendo vivamente.