¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, janeiro 25, 2010
 
MANGAL PANDEY,
VEGANS E DVDS



Ano passado, vi um filme dos mais interessantes na madrugada, The Rising: Ballad of Mangal Pandey, 2005, direção do indiano Ketan Mehta. Que me conste, o filme não passou no Brasil. Deixando de lado alguns momentos bollywoodescos, de danças que funcionam como coral grego narrando a história, o filme merece ser visto. Estamos na Índia, meados do século XIX, quando o país ainda vive na condição de colônia britânica, submetido à poderosa Cia. Britânica das Índias Orientais. Mangal Pandey é um cipaio, soldado a serviço do Reino Unido, como também um grande contingente de indianos. Torna-se amigo de um oficial britânico, William Gordon. Esta amizade vai ser abalada com a chegada de um novo rifle, cujos cartuchos eram envoltos em uma cápsula de gordura que tinha de ser arrancada com os dentes.

E aí reside o problema. Os cartuchos eram besuntados em banha de porco ou vaca. Isto mexia com duas amplas camadas do país, os muçulmanos e os hinduístas. Para os primeiros, o porco é um animal imundo. Sua carne não é halal, isto é, não é permitida a um muçulmano. Por outro lado, para os hinduístas, a vaca é animal sagrado. Por razões inversas, não pode ser comida.

Há um outro conflito de culturas que ocupa um plano menor no filme, as satis, as viúvas que são queimadas vivas após a morte do marido. William Gordon tropeça com uma procissão que leva uma sati rumo à fogueira. Sua sensibilidade de ocidental não admite tal sacrifício e o oficial a resgata da morte pelo fogo. Mexeu com outro tabu. Sua residência será cercada e atacada pelos indianos que exigem que a viúva seja queimada. Esta tradição só foi proibida recentemente, em 1987, com a cremação de Roop Kanvar, no Rajastão. Foi proibida legalmente, o que não quer dizer que tenha sido extinta. Mas volto aos cartuchos.

Inicialmente, os oficiais ingleses juram que não são besuntados com gordura animal. Mangal não se importa então de mordê-los. Advertido por um amigo, acaba visitando a fábrica onde, de fato, os cartuchos eram envoltos numa cápsula de gordura suína e bovina. Tarde demais. Tornou-se um pária, um intocável, aqueles indianos que não pertencem a casta alguma, aos quais até mesmo os jesuítas serviam pão em uma longa pá, para manter distância em relação aos impuros.

Mangal lidera então uma rebelião contra o exército britânico. Ele e os seus recusam-se a morder o cartucho, mesmo sob a ameaça de canhões. A rebelião, mais conhecida como a Revolta dos Cipaios, prende fogo no país durante dois anos e custará alguns milhares de mortos a indianos e ingleses. Mangal acaba sendo enforcado e assim torna-se um dos precursores da independência da Índia, quase um século mais tarde, em 1947. Com tabu não se mexe.

Apesar daquelas danças bollywoodescas, completamente fora do contexto de um drama – que não deixam de ter certa beleza, confesso – recomendo o filme vivamente. Mas não era do filme que pretendia falar. E sim de outros fanáticos, os vegans.

Leio na Folha de São Paulo reportagem sobre esta seita de ultravegetarianos que eliminaram as carnes de sua dieta, em nome do respeito à vida dos animais. Até aí, uma opção de vida. Opção nada inteligente a meu ver, afinal sem a carne dos animais o ser humano não teria chegado até aqui. E tampouco irá muito longe, se depender de vegetais. Vá lá! Há malucos para tudo neste mundo.

Os vegans não consomem mel porque seria desrespeitar a abelha. "Ela fabrica o mel para ela. Os produtos não são feitos com mel tirado da natureza, há exploração das abelhas, elas ficam presas em caixas para produzir mais", diz a dentista Rosana Tsibana, 45, que se considera "quase vegana". Quer dizer, ainda não chegou lá. Mas já eliminou matéria-prima animal de roupas e calçados. Só não abandonou o queijo, por falta de opções na hora de comer na rua.

Nos estertores do século XIX, Marx cunhou a expressão “exploração do homem pelo homem”. Audace, toujours de l’audace. Os vegans deram um passo à frente. Temos agora a exploração da abelha pelo homem.

Que muçulmanos ou hinduístas se recusem aos prazeres da carne, até que se entende. Prisioneiros de religiões primitivas, delas ainda não se libertaram. Mais difícil é entender um ocidental cultuando estas bobagens. Mangal Pandey ressurgiu entre nós, em pleno século XXI: alguns adeptos mais radicais deixam até de ir ao cinema, sob o argumento de que filmes contêm uma substância gelatinosa que é retirada do boi. "Só vejo filmes que não exploram os animais e só freqüento cinemas que passam DVD, não películas", diz o professor de educação física Charles de Freitas Lima, 36, vegano há oito anos.

O que me lembra um restaurante que conheci em Madri, o Comidas Naturales. Nele tudo era natural: o boi, o cordeiro, o porco. Nada era artificial. Ora, o DVD foi criado em 1996. A seita dos vegans - palavra que deriva de vegetarianos - foi criada em 1944, na Inglaterra. Fosse vegano desde o berço, o professor só conheceria cinema aos 23. Só que resta uma perguntinha: será que os fabricantes de DVDs não consomem carne bovina? Nem os produtores, diretores e atores dos filmes?

Seria prudente pesquisar. E só ver filmes em cuja produção não haja sequer sombra de consumo de carne animal. Que mais não seja, alface também não é um ser vivo?