¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, outubro 31, 2009
 
TALEBAN DA UNIBAN
TÊM MEDO DE COXAS



Gosto de citar uma frase que Roberto Arlt, considerado o Dostoievski argentino, coloca na boca de um de seus personagens:: “A revolução, a faremos com os jovens. São estúpidos e entusiastas”.

Em minha vida, encontrei não poucos jovens maduros e sensatos e tive imenso prazer em confraternizar com eles. Mas, no geral, tenho de concordar com Arlt. E vou mais longe: estúpidos, entusiastas e senis. Prova disto é o recente episódio ocorrido em São Bernardo do Campo, no campus da Universidade Bandeirantes de São Paulo (Uniban).

Uma estudante do primeiro ano de Turismo quase foi linchada por uma multidão de estudantes no prédio onde estuda, por estar usando um minivestido. O fato ocorreu na semana passada e ganhou repercussão nesta semana pelo site YouTube, onde foram publicados vídeos que registraram o episódio. Leio na Folha de São Paulo:

Pu-taaa! Pu-taaa! Pu-taaa! Cerca de 700 alunos da Uniban, Universidade Bandeirante de São Paulo, campus de São Bernardo, pararam as aulas do noturno para perseguir, xingar, tocar, fotografar, ameaçar de estupro, cuspir. Tudo isso contra uma aluna do primeiro ano do curso de turismo, 20 anos, 1,70 metro, cabelos loiríssimos esticados e olhos verdes, que compareceu à escola em um microvestido rosa-choque, pernas nuas com pelinhos oxigenados à vista, salto 15, maquiagem de balada, na quinta-feira da semana passada (22). Michele Vedras (nome fictício inventado por ela em um blog) só conseguiu sair da escola sob escolta de cinco soldados da PM, duas mulheres inclusive, que tiveram de usar spray de pimenta para conter os mais exaltados e abrir caminho entre a massa. Vídeos do ataque circulam pela rede, um deles intitulado "A Puta da Uniban". (...) Presos na sala de aula, a turma e o professor ouviam os estudantes lá fora gritando. "Solta ela, professor! Deixa pra nós. Vamos estuprar!"

Mas em que país estamos? Certamente não é neste Brasil, onde a minissaia vige desde os anos 60 e fio dental nas praias não escandaliza mais ninguém. Mulher pelada está nas capas de todas as revistas, expostas publicamente nas bancas de jornais. O que gera efeitos curiosos. Os membros da Opus Dei, a organização aquela à qual pertence um dos líderes do PSDB, Geraldo Alckmin, quando andam pelas ruas trocam de calçada ao ver um quiosque. Para não ver as mulheres peladas. Malucos religiosos, entende-se. Mas... universitários? Em um campus?

Em minhas universidades, lá nos anos 60 – isto é, há meio século - vivi cercado de minissaias e ninguém se espantava com isto. Quando professor, nos anos 80, minhas aluninhas não se furtavam de exibir o fundo de suas coxas aos professores. Eu lecionava na UFSC, onde muitos professores eram filhotes de padres, que das mulheres mantiveram distância em suas juventudes. Os ex-seminaristas subiam pelas paredes. Eu, que com mulheres sempre mantive um bom convívio, nem ligava. Para perplexidade de minhas discípulas. Certo dia, em plena aula, uma delas perguntou: “o professor não se comove quando mostramos as coxas?”

Comoção nenhuma. “Estou aqui para dar aulas, não para olhar calcinhas – respondi -. Vocês podem mostrar o que quiserem, isso não perturba minha aula. Agora, se for lá em casa...” Semana seguinte, algumas atrevidas estavam lá em casa. Mas isto já é outra história.

Estou perplexo. Que a União e Estados caloteiem seus credores, que senadores e deputados e governadores roubem, que ministros sejam corruptos, que acadêmicos transformem seus estudos no Exterior em turismo pago pelo contribuinte, com isto já estamos acostumados. Faz parte do cotidiano da nação. Mas é insólito que universitários quase estuprem uma colega só porque ela mostra as coxas. Segundo uma universitária entrevistada pela Folha, os colegas da moça tentavam enfiar o aparelho celular no meio de suas pernas, para tirar fotos.

Com o assalto ao erário, com a extorsão do contribuinte, com a corrupção de “nossos” representantes, já me acostumei. (Ponho nossos entre aspas porque meus representantes não são. Já faz quase três décadas que não voto). Mas por essa eu não esperava. Que isso aconteça na Arábia Saudita, no Dubai, no Afeganistão, no Paquistão, até que entendo. Foi em Riad, creio, que a mulher de um diplomata brasileiro foi esbofeteada pela Polícia Moral por ter entrado em um shopping com o rosto descoberto. O Itamaraty, tão valente quando se trata de defender Chávez ou Zelaya, nem chiou.

Entendo até no Vaticano. Mas no Vaticano, apenas impediriam a entrada da moça. Nem cardeais nem bispos nem a Guarda Suíça tentariam enfiar celulares entre as pernas de uma turista de minissaia. O Vaticano, com todo seu obscurantismo, consegue ser mais moderno que os universitários da Uniban. A atitude destes alunos é típica dos taleban. Daqueles baitas machos que não temem explodir-se em nome de Alá, mas que se mijam de medo ao ver o rosto de uma mulher.

Os universitários da Uniban, pelo jeito, têm medo de coxas. Logo das coxas, esse território tão lindo e harmonioso de uma mulher.

Além de estúpidos, são senis.

sexta-feira, outubro 30, 2009
 
NORMALIDADE DAS GENTES,
SEGUNDO O PRESIDENTE



O Supremo Apedeuta andou dizendo que não é fácil enfrentar a violência. "Se fosse fácil teria resolvido em 2006, em 2005 e em 2004. Não é fácil quando se lida com gente anormal. O bandido é anormal. Nós somos normais. Temos que mostrar ao mundo que o Estado brasileiro e a parte boa da sociedade brasileira tem mais força que o crime organizado”.

Cabe perguntar-se o que Lula entende por bandido. Pelo jeito, são aqueles pobres diabos do tráfico de droga, que por mais fortuna que façam, sempre correm o risco de serem presos pela polícia ou assassinados por bandos rivais. É claro que Lula não se referia a corruptos como José Sarney, Zé Dirceu, Antônio Palocci, Jader Barbalho, Edir Macedo. Estes são gente fina, que merecem os afagos presidenciais. Quando lida com eles – e os defende – Lula está lidando com gente normal. Aqui tampouco se trata de crime organizado. É crime institucionalizado.

Portanto, normal.

 
A FALTA QUE NOS
FAZ UM NAPOLEÃO



Entre 9 de fevereiro e 9 de março de 1807, Napoleão Bonaparte constituiu na França um sinédrio – conselho judeu de 71 membros – que sucedeu à Assembléia de Notáveis, que tinha por função oficializar as medidas de secularização em matéria de decisões doutrinárias, do ponto de vista da lei judaica. Ao sinédrio e aos notáveis, o imperador fez doze perguntas:

1. É lícito aos judeus casar-se com várias mulheres?
2. O divórcio é permitido pela lei judaica? O divórcio é válido sem que seja pronunciado pelos tribunais e em virtude de leis contrárias ao Código francês?
3. Uma judia pode casar-se com um cristão e uma cristã com um judeu? Ou a lei pretende que os judeus se casem apenas entre eles?
4. Aos olhos dos judeus, os franceses são irmãos ou são estrangeiros?
5. Em um ou outro caso, quais são as relações que a lei judiaprescreve para com os franceses que não são de sua religião?
6. Os judeus nascidos na França e tratados pela lei como cidadãos franceses vêem a França como sua pátria? Sentem a obrigação de defendê-la? Sentem-se obrigados de obedecer às leis e de seguir todas as disposições do Código Civil?
7. Quem nomeia os rabinos?
8. Qual jurisdição de polícia exercem os rabinos entre os judeus? Qual polícia judiciária é exercida entre eles?
9. Estas formas de eleição, esta jurisdição de polícia são desejadas por suas leis ou apenas consagradas pelo uso?
10. Há profissões que são proibidas pela lei dos judeus?
11. A lei dos judeus os proíbe de praticar usura com seus irmãos?
12. Ela proíbe ou permite praticar usura com estrangeiros?

A França vivia então um problema, as queixas permanentes dos departamentos do Leste contra os créditos dos judeus. Napoleão queria saber se os judeus que tinham nacionalidade francesa eram franceses ou estrangeiros que viviam sonhando com as colinas de Sion. É uma boa pergunta a se fazer aos judeus que vivem hoje no Brasil.

Leio no noticiário on line que a Justiça brasileira ordenou ao Ministério da Educação que marque outro dia - que não o sábado - para que 21 alunos de um colégio judaico de São Paulo façam o Enem. A prova está marcada para 5 e 6 de dezembro - sábado e domingo.

O sábado é o shabat, dia em que os judeus descansam. Do pôr do sol da sexta ao pôr do sol do sábado, não trabalham, não dirigem e não escrevem. Mais ainda: não acendem fogões, não ligam computadores, não portam qualquer objeto. Nem mesmo guarda-chuva. Aqui em meu bairro, majoritariamente judeu, quando chove aos sábados, os filhos de Israel, apesar de bem trajados, vestem capas de plástico, dessas que se compram a cinco reais nas bancas de jornais. Guarda-chuva tem de segurar. Não pode. Capa não precisa segurar. Então pode.

Vendo que seus alunos perderiam o Enem, o colégio Iavne apresentou a ação judicial. Na primeira instância, a Justiça não viu motivo para mudar a data. O colégio recorreu. E o Tribunal Regional Federal deu razão à escola. O juiz Mairan Maia escreveu que o MEC deveria permitir que a prova fosse resolvida pelos alunos do Iavne "em dia compatível com o exercício da fé". Seria um exame com "o mesmo grau de dificuldade. Ninguém será privado de direitos por motivos de crença religiosa."

Onde estes senhores pensam que estão? Em Israel, onde o shabat é sagrado? Neste Brasil laico, nem mesmo o domingo, dia sagrado para os católicos desde Constantino, é dia em que qualquer atividade seja interditada. Israel é um Estado teocrático e os judeus brasileiros estão querendo impor seus dogmas a um Estado laico. A decisão do juiz Mairan Maia abre portas para que os muçulmanos exijam não fazer vestibular nas sextas-feiras, seu dia sagrado. Mais um pouco, e teremos vestibular em datas diferentes para católicos, judeus e muçulmanos. E também para os seguidores da Igreja Adventista, que descansam nos sábados.

Está faltando um Napoleão nestes trópicos, para bem dividir as águas. Os judeus com cidadania brasileira precisam decidir se respeitam as regras do país onde escolheram viver ou se preferem seguir regras escritas na Judéia há cinco mil anos.

quinta-feira, outubro 29, 2009
 
NO PAÍS ONDE ROUBAR
JÁ NÃO MAIS É CRIME



Escrevi, mês passado, que Michèle Alliot-Marie, ministra da Justiça na França, anunciou no canal Europe 1 que depositaria junto às Cortes uma medida que restabeleceria a possibilidade de dissolver as seitas por estelionato. O que estava em jogo era a cientologia, a religião criada em 1952 por um escritor de ficção científica, L. Ron Hubbard. Segundo a Cientologia, há 75 milhões de anos, vários planetas se reuniram numa confederação das galáxias, governada por um líder do mal chamado Xenu. Como os planetas estavam com problemas de superpopulação, Xenu mandou bilhões de seus habitantes para Terra, onde foram mortos com bombas de hidrogênio. Seus espíritos - chamados de "thetans" - são os seres humanos. Famosa em Hollywood, a seita tem entre seus adeptos atores como John Travolta, Tom Cruise, Michael Jackson, Juliette Lewis, Anne Archer e Lisa-Marie Presley. Na França, a seita teria 45 mil adeptos. No mundo, seriam 12 milhões. Em países como Espanha, Japão e Canadá, tem o status de associação religiosa.

Na ocasião do pronunciamento da ministra, a Milivudes (Missão Inter-ministerial de Luta contra os Desvios Sectários) afirmava que uma modificação da lei, ocorrida em 12 de maio passado, não permitia mais a um magistrado a dissolução de seitas, o que suspenderia o risco de dissolução da Cientologia, perseguida por fraude em Paris.

Comentei, na época, que a idéia da ministra da Justiça não era exatamente brilhante. Há uns vinte séculos, judeus e romanos tentaram dissolver uma seita de malucos, que falavam de um deus três-em-um, de uma mãe virgem, de um judeu que ressuscitou dos mortos e vigarices outras. Os judeus até conseguiram mandar o líder para a cruz, o que foi feito pelos ocupantes romanos da Galiléia. De nada adiantou. Dissolver seitas não é boa idéia. Produz mártires. E nunca faltam malucos que adoram o martírio.

Os juízes acabaram optando por melhor estratégia. Leio no Estadão que a Igreja da Cientologia foi condenada por fraude pela Justiça francesa e deverá pagar uma multa de mais de 630 mil euros (R$ 1,6 milhão), mas continua autorizada a existir no país - onde, diferentemente do que ocorre nos Estados Unidos, no qual ela surgiu, é considerada uma seita. O Tribunal Correcional de Paris considerou que uma "multa muito pesada" era "mais oportuna" do que a proibição de suas atividades.

A multa recaiu sobre as duas principais estruturas da cientologia na França, a Associação Espiritual da Igreja da Cientologia Celebrity Centre (Asescc) e sua livraria, a Scientologie Espace Librairie (SEL). A Asescc terá de pagar 400 mil euros, e a SEL, 200 mil euros. Os outros 30 mil euros serão pagos por um dos principais dirigentes da seita no país, Alain Rosenberg, também condenado a 2 anos de prisão, mas em liberdade condicional.

Outros três responsáveis foram condenados a penas de 10 a 18 meses em liberdade condicional e multas de 5 mil euros a 20 mil euros por extorsão. Dois outros foram condenados a multas de 1 mil euros e 2 mil euros por "exercício ilegal da atividade farmacêutica".

Os condenados são acusados de ter se aproveitado da vulnerabilidade de quatro antigos adeptos e extorquido deles dezenas de milhares de euros. A sentença é mais branda do que a proposta em junho pela promotoria, que pedia a dissolução das principais estruturas e a condenação dos responsáveis, além de multa de 4 milhões euros.

A affaire começou em dezembro de 1998. Uma mulher depositou queixa, considerando ter sido vítima de fraude pela cientologia. Abordada alguns meses antes em Paris por cientólogos para um teste de personalidade gratuita, ela despendeu ao final 30 mil euros por cursos, compra de livros, medicamentos e de um “eletropsicômetro”, aparelho elétrico capaz de “medir as variações do estado mental da pessoa pelas modificações da corrente elétrica”. O dispositivo mede as trocas na resistência elétrica da pele do analisado, fazendo passar 1/2 volt através de um par de tubos, de chapa de zinco, cheios de uma solução química, apoiados na pele para medir as ondas e gravá-las, enquanto se ouve o analisado. Cá entre nós, alguém precisa ser muito obtuso para investir 30 mil euros na adesão a uma vigarice que mais se assemelha a roteiro de Guerra nas Estrelas.

Enquanto isso, cá abaixo dos trópicos, os ditos pastores neopentecostais continuam extorquindo impunemente dinheiro e bens de pobres de espírito. Pior ainda, de pobres de posses também. Minha faxineira me conta histórias de pessoas humildes que chegaram a vender o único imóvel que possuíam para encher as burras dos Macedos, Soares e Malafaias da vida. Por falar nisso, ainda há pouco, na emissão do Silas Malafaia, assisti a entrevista com um pastor americano. Dizia o rotundo senhor que o dízimo mínimo admissível, por mês, seria de 900 dólares. Ora, quantos crentes neste Brasil pobre podem arcar com tal contribuição?

Mas, pelo jeito, arcam. Os pastores constroem não só templos suntuosos, mas também mansões suntuosas para seu uso. Uma sobrinha, que trabalha em uma empresa de helicópteros, me conta que R. R. Soares acaba de comprar seu terceiro helicóptero. De Dom Pedrito, a cidadezinha onde me criei, recebo a notícia de que comprou o único cinema da cidade. A propósito, há alguns anos, Edir Macedo tentou comprar um estádio de futebol em Lisboa. Mas os lusos acharam o puchero um tanto gordo e não permitiram a alienação do estádio.

Templo é dinheiro. Se na França os juízes já começam a punir severamente os vigaristas que exploram as angústias humanas, entre nós eles se sentem como peixes dentro d’água. Afinal, se um ex-presidente rouba, se seus filhos roubam, se senadores roubam, se deputados roubam e todos permanecem impunes, só podemos concluir que o roubo foi descriminalizado.

quarta-feira, outubro 28, 2009
 
DEUS É FEIO E
FEDE A SANGUE



Me escreve o André:

Janer,

que tal uma coluna sobre o porquê de chorarmos quando diante de tanta beleza? Afinal por que choramos? Não consigo definir, mas tenho a impressão que o choro diante de coisas belas ocorre por sentirmos uma conexão forte com o que é admirado. E essa conexão vem de onde? Seria por que somos parte do mesmo pó cósmico e a beleza das cataratas nos faz lembrar como somos parte do todo? Sei que você não acredita em Deus, mas seria essa conexão com o planeta um sinal de que estamos ligados a algo maior e invisível?


Beleza é algo relativo, meu caro André. O que a mim pode parecer belo, a um outro pode parecer feio. Se choramos diante do que é belo, é porque o que a nós parece belo nos comove. Que somos parte do mesmo pó cósmico, disso não tenho dúvidas. Daí a achar que a beleza nos comove porque somos parte do todo, vai uma longa distância. Que se torna ainda maior quando se supõe que esta conexão com o planeta é sinal de que estamos ligados a algo maior e invisível, o tal de Deus.

Deus, se é que estamos falando do deus da ficção bíblica, odeia a beleza. Por que o bom Jeová destruiu quase a totalidade do gênero humano, isso sem falar nos animais? Jeová extermina todo o gênero humano porque os filhos dos deuses haviam descoberto que as filhas dos homens eram belas e com elas se cruzaram. Só porque os filhos dos deuses admiravam a beleza, Jeová destrói toda a humanidade, exceto Noé e os seus. Os animais, que nada tinham a ver com o peixe, foram juntos. (Falar nisso, sorte tiveram os peixes. Dilúvio não mata peixe). É o ódio hebraico à beleza que determina o genocídio do Gênesis.

Deus é feio. Além disso, fede a sangue. Que era seu templo, senão um açougue a céu aberto? Os sacrifícios de animais - bois, carneiros, cabritos, pombas - só podiam ser feitos no templo de Jerusalém. Claro que o melhor da carne ia para os sacerdotes. Estes sacrifícios só acabam com a segunda destruição do templo pelos romanos, em 70 D.C.

Se me comovo com a beleza, isto nada tem a ver com Deus. Sem ir mais longe, porque Deus não existe. Esta comoção, já a comentei em minhas crônicas. Entrar lentamente de trem em Paris, vendo cruzar na janela aqueles tetos e chaminés que sempre repousaram nalgum escaninho de nossa memória. Ouvir o chiado dos próprios pés numa viela noturna e silente em Veneza. Quebrar pela primeira vez a crosta de um mar congelado rumo ao Ártico. Perfurar pela primeira vez um deserto branco, pleno de neve e silêncio, para cair finalmente, também pela primeira vez, numa densa noite ao meio-dia. Penetrar em um fiorde em uma meia-noite clara como dia. Atravessar as pontes sobre o Neva nas noites brancas de São Petersburgo. Ouvir o silêncio da noite gelada, no pico de uma montanha enluarada no Sahara. É um silêncio estridente, que fere os ouvidos acostumados aos ruídos urbanos, só entrecortado pelas escassas palavras dos tuaregues contando lendas ao redor de uma fogueira.

Se os deuses houveram por bem conceder-me a ventura dessas paragens, hoje tudo isto adquiriu um ar de déjà vu. Certo dia, atravessando o Pont Saint Michel, minha mulher me alertou: notaste que aquilo ali à direita é a Notre Dame? Eu sequer a havia visto. Residira quatro anos em Paris e já não mais a via. Se hoje deploro a condição de quem ainda não passou por estes momentos mágicos, ao mesmo tempo a invejo. Este deslumbramento, eu o perdi para sempre. Com as cataratas, foi distinto. Eu jamais as havia visto. Mais uma vez, me acometeu a dita síndrome de Stendhal.

Ante as urbes prodigiosas, os viajores do século XIX sofriam uma reação física semelhante a dos peregrinos perplexos ao nelas entrarem. Os visitantes caíam de joelhos em Florença, Roma e Atenas. No caso dos peregrinos, recorria-se à histeria e à doença de San Vito para explicar as convulsões. O mesmo não se diria de hordas mais sensíveis. Em 1817, quando ia entrar na igreja de Santa Croce, em Florença, Stendhal foi tomado por uma espécie de pasmo, teve o pulso acelerado e lhe tremeram as pernas... isso só de antever o que veria lá dentro. A esta experiência, que o escritor francês narra em sua correspondência, convencionou-se chamar de síndrome de Stendhal, a perturbadora agitação do viajante ante a contemplação da beleza.

Esta crise acometeu-me em Cuenca, quando a beleza das cidades da Espanha já começava a saturar-me. Subindo a encosta do penhasco, ao olhar para o alto vi os prédios inclinados que pendiam sobre minha cabeça. Aos poucos, fui perdendo o sentido da verticalidade. Para não cair, olhava só para baixo. Ao chegar, de pernas bambas, à frágil ponte que varava o abismo, não consegui mais manter-me em pé. Sentei no chão e enrolei-me em posição fetal. Crianças saltitavam sobre o vazio, sem medo algum ou espanto. Haviam nascido ali. Para minha satisfação, vi outros estrangeiros apoiando-se nas paredes de rocha para não cair. Isto também só se vive uma vez. Dia seguinte, após tomar um bom vinho na sacada de uma das casas colgadas, enveredei pela ponte e saltitei como as crianças. Vencera Cuenca.

Quanto às cataratas, perdi o filé. No dia em que visitaria o lado argentino, consta que o mais deslumbrante, caiu um toró danado, com direito até mesmo a granizo. Melhor assim. Terei de voltar.

Em suma: nada a ver com aquele assassino e genocida asqueroso cultuado por judeus e cristãos.

terça-feira, outubro 27, 2009
 
JOSÉ HERNÁNDEZ E RAMIRO BARCELLOS


De Alexandre Kich, recebo:

Grande Janer,

Uma vez pensei sobre quando escreverias sobre o Antônio Chimango? Ai está. Nada para mim existiu de mais bonito em termos de poesia provocativa do que a descoberta do Antônio Chimango na biblioteca de meu ex-colégio no 1° ano do falecido 2° Grau. Falei com dezenas de professores de Letras gaúchos sobre o poemeto campestre e ninguém sabia de sua existência. Poucos professores de História associam seus versos à conturbada vida política gaúcha sob o mando de Borges.

Para mim, o Antônio Chimango é um tapa debochado na cara não somente dos autocrata guasca, ali encarnado em Borges de Medeiros, mas em tempos de messianismo centralista em Brasília e ressurreição do populismo facínora latino-americano com Chávez, um deboche de todos esses homens que metidos em fardas e escondidos sob uma ideologia homicida nos querem tirar a liberdade individual.

O Positivismo asfixiante dos chimangos não morreu, ele encarnou por incrível que pareça na cor maragata do petismo. Grande Hernández. Grande Ramiro Barcellos.


Meu caro Kich,

como estou de pé no estribo, a mala já nos tentos para mais uma campereada, vou ficar devendo. Mas um dia ainda volto ao assunto.

segunda-feira, outubro 26, 2009
 
SOBRE A CULTURA PLATINA


De Luiz Melendez, de Rio Grande, RS, recebo:

Caro Cristaldo,

concordo em tudo que você falou nos posts sobre Martin Fierro. De fato é uma vergonha a classe culta aqui do Rio Grande ter virado as costas ao Prata. E não só no que diz respeito à literatura, mas também à música. Para se conseguir algum cd de qualquer milongueiro argentino ou uruguaio é necessário importar via EUA ou Europa!

Quanto mais no que se refere aos livros. Espera-se até sete meses para receber um livro editado ali na Argentina ou no Uruguai. Vivemos aqui numa ditadura regida pela dupla RBS-Globo, a qual só prioriza uma subcultura, tanto a local quanto a do eixo São Paulo-Rio-Salvador, como você bem sabe. O pior de tudo é que os "gaúchos" (gaúchos de mídia) ainda se orgulham da indigência em que estamos. Não sei qual a sua opinião sobre os autores "gaúchos" mais conhecidos. Para mim o padrão criado pelo Erico Verissimo, o paradigma sobre o qual ninguém pode discordar sob pena de ser massacrado, apenas empobreceu a literatura rio-grandense. Eu nunca encontrei grande coisa nas obras dele. Posso estar enganado, mas nada nele me parece original; apenas uma seleção de lugares comuns, de chavões e personagens previsíveis. Espero que a coisa mude, mas me parece difícil.

Um abraço



Meu caro Melendez:

Houve uma conspiração muito bem definida, desde o início do século passado, para separar a dita cultura brasileira da cultura platina. O Erico nunca soube o que era o gaúcho. Homem urbano, farmacêutico de profissão, ele enviava cartas a Antero Marques e Aureliano Figueiredo Pinto, interrogando sobre as coisas de campo. O grande poema gaúcho, Antônio Chimango, foi proibido pelos áulicos de Borges de Medeiros. O grande romance, Memórias do Coronel Falcão, fora recomendado às traças: durante três décadas e meia, esta obra de Aureliano Figueiredo Pinto permaneceu inédita, pois os donos da cultura gaúcha, arrinconados em Porto Alegre, o consideravam eivado de espanholismos. Escrito em 1937, só foi publicado em 1973.

Mesmo que os gaúchos pretendam ignorar a cultura uruguaia ou argentina, há algo de hernandiano até mesmo nos gaúchos estereotipados do Erico. Não poderia ser diferente, já que gaúchos do Brasil e Argentina estão mais próximos entre si, tanto pelo meio geográfico como pela cultura, do que um rio-grandense e um nordestino, por exemplo.

Que é o Antonio Chimango senão uma onda distante, mas concêntrica, provocada pelo Martín Fierro? Também nas canções de Teixeirinha como na poesia produzida pelos poetas ligados ao movimento tradicionalista, lá está a caricatura contemporânea do gaúcho de Hernández. Até mesmo em manifestações literárias mais populares, encontramos o dedo do poeta argentino. Circula subterraneamente no Rio Grande do Sul um conhecido poema pornográfico, “Comendo éguas e outros bichos”. Vejamos uma de suas coplas:

Ò poetas que cantais
velhas cópulas eqüinas
olvidando outras vaginas
que numa escala crescente
vos deram gozos candentes
no lupanar das campinas

Temos a reprodução rítmica exata de uma sextilha do Martín Fierro, com os versos rimando no esquema ABBCCB. Sabemos que esta pérola da fescenina gaúcha foi criada coletivamente por poetas tradicionalistas, que não gostam muito de citar Hernández. Mas a influência é inegável:

Aqui me pongo a cantar
al compás de la vigüela,
que el hombre que lo desvela
una pena estrordinaria,
como la ave solitaria
con el cantar se consuela.

A propósito, este poema argentino - mas também nosso -, que tanto mexe com a alma do homem da fronteira rio-grandense, começou a ser escrito por José Hernández em Santana do Livramento. Não por acaso, o poema maior que a América Latina legou à literatura universal é praticamente desconhecido nos cursos de Letras do país. Mas já fiz palestra em uma “Semana Martín Fierro” ... em Berlim. Onde Hernández foi comparado a Homero. E já o ouvi declamado nas ilhas Canárias, geografia que nada tem a ver com a pampa onde perambulava Fierro. Em Paris, um dos professores que participou de minha defesa de tese, Paul Verdevoye, o traduziu ao francês.

A propósito, há alguns anos, ministrei um curso sobre o poema de Hernández, em Passo Fundo, durante a VII Jornada Nacional de Literatura. Nesta cidade, famosa por suas tradições gaúchas, meus alunos praticamente desconheciam Fierro. Está na hora, parece-me, de a universidade gaúcha esquecer um pouco as confusas teorias literárias geradas às margens do Sena e olhar com mais carinho para a riqueza cultural do Plata.

sábado, outubro 24, 2009
 
EM FOZ!
SEM VOZ



Visitei as cataratas. Chorei. A beleza, quando excessiva, me faz chorar. Não tenho palavras.

sexta-feira, outubro 23, 2009
 
PAUSA PARA POESIA

Do Martín Fierro


Ninguno me hable de penas,
porque yo penando vivo,
y naides se muestre altivo
aunque en el estribo esté,
que suele quedarse a pie
el gaucho más alvertido.

Junta esperiencia en la vida
hasta pa dar y prestar
quien la tiene que pasar
entre sufrimiento y llanto;
porque nada enseña tanto
como el sufrir y el llorar.

Viene el hombre ciego al mundo,
cuartiándoló la esperanza,
y a poco andar ya lo alcanzan
las desgracias a empujones.
¡La pucha, que trae liciones
el tiempo com sus mudanzas!

Yo he conocido esta tierra
en que el paisano vivía
y su ranchito tenía
y sus hijos y mujer...
Era una delicia el ver
cómo pasaba sus días.

Entonces... cuando el lucero
brillaba en el cielo santo,
y los gallos con su canto
nos decían que el día llegaba
a la cocina rumbiaba
el gaucho... que era un encanto.

Y sentao junto al jogón
a esperar que venga el día.
Al cimarrón le prendía
hasta ponerse rechoncho,
mientras su china dormía
tapadita con su poncho.

Y apenas la madrugada
empezaba a coloriar,
los pájaros a cantar
y las gallinas a apiarse,
era cosa de largarse
cada cual a trabajar.

Este se ata las espuelas,
se sale el otro cantando,
uno busca un pellón blando,
éste un lazo, otro un rebenque,
y los pingos relinchando
los llaman dende el palenque.

El que era pion domador
enderezaba al corral,
ande estaba el animal
bufidos que se las pela...
y, más malo que su agüela,
se hacía astillas el bagual.

Y allí el gaucho inteligente
en cuanto el potro enriendó,
los cueros le acomodó,
y se le sentó en seguida,
que el hombre muestra en la vida
la astucia que Dios le dió.

Y en las playas corcoviando
pedazos se hacía el sotreta
mientras él por las paletas
le jugaba las lloronas
y al ruido de las caronas
salía haciéndosé gambetas.

¡Ah tiempos!... ¡Si era un orgullo
ver jinetiar un paisano!
Cuando era gaucho baquiano,
aunque el potro se boliase,
no había uno que no parase
con el cabresto en la mano.

Y mientras domaban unos,
otros al campo salían,
y la hacienda recogían,
las manadas repuntaban,
y ansí sin sentir pasaban
entretenidos el día.

Y verlos al cáir la noche
en la cocina riunidos,
con el juego bien prendido
y mil cosas que contar,
platicar muy divertidos
hasta después de cenar.

Y con el buche bien lleno
era cosa superior
irse en brazos del amor
a dormir como la gente,
pa empezar al día siguiente
las fáinas del día anterior.

Ricuerdo... ¡qué maravilla!
cómo andaba la gauchada
siempre alegre y bien montada
y dispuesta pa el trabajo;
pero hoy en el día... ¡barajo!
No se la ve de aporriada.

El gaucho más infeliz
tenía tropilla de un pelo;
no le faltaba un consuelo
y andaba la gente lista...
Tendiendo al campo la vista,
no vía sino hacienda y cielo.

Cuando llegaban las yerras,
¡cosa que daba calor
tanto gaucho pialador
y tironiador sin yel!
¡Ah tiempos... pero si en él
se ha visto tanto primor!

Aquello no era trabajo,
más bien era una junción,
y después de un güen tirón
en que uno se daba maña,
pa darle un trago de caña
solía llamarlo el patrón.

Pues siempre la mamajuana
vivia bajo la carreta;
y aquel que no era chancleta,
en cuanto el goyete vía,
sin miedo se le prendía
como güerfano a la teta.

¡Y que jugadas se armaban
cuando estábamos riunidos!
Siempre íbamos prevenidos,
pues en tales ocasiones
a ayudarles a los piones
caiban muchos comedidos.

Eran los días del apuro
y alboroto pa el hembraje,
pa preparar los potajes
y osequiar bien a la gente,
y ansí, pues, muy grandemente
pasaba siempre el gauchaje.

Venía la carne con cuero,
la sabrosa carbonada,
mazamorra bien pisada,
los pasteles y el güen vino...
pero ha querido el destino
que todo aquello acabara.

Estaba el gaucho en su pago
con toda siguridá,
pero aura... ¡barbaridá!
la cosa anda tan fruncida,
que gasta el pobre la vida
en juir de la autoridá.

Pués si usté pisa en su rancho
y si el alcalde lo sabe
lo caza lo mesmo que ave
aunque su mujer aborte...
No hay tiempo que no se acabe
ni tiento que no se corte.

Y al punto dése por muerto
si el alcalde lo bolea,
pués áhi no más se le apea
con una felpa de palos.
Y después dicen que es malo
el gaucho si los pelea.

Y el lomo le hinchan a golpes,
y le rompen la cabeza,
y luego con ligereza,
ansí lastimao y todo,
lo amarran codo con codo
y pa el cepo lo enderiezan.

Áhi comienzan sus desgracias,
áhi principia el pericón;
porque ya no hay salvación,
y que usté quiera o no quiera,
lo mandan a la frontera
o lo echan a un batallón.

Ansí empezaron mis males
lo mesmo que los de tantos.
Si gustan... en otros cantos
les diré lo que he sufrido.
Después que uno está perdido
no lo salvan ni los santos.

quinta-feira, outubro 22, 2009
 
MEUS AMIGOS MARXISTAS (V)


Como dizia, Sábato recidivou. Em Abbadón, El Exterminador, publicado em 1974, sabe-se lá porque, faz a apologia de um dos maiores assassinos da América Latina, aliás seu conterrâneo. O celerado vira um santo. Falo de Ernesto Guevara, o Che, um dos responsáveis pelo maior desastre do continente no século passado, a revolução cubana. Ao elaborar minha tese sobre a obra de Sábato, considerei que na ficção vale tudo, inclusive transfigurar um personagem histórico. Daí resultou um capítulo desastrado de meu ensaio, que reproduzo a seguir.

Hoje, penso diferente. Considero que um escritor não tem o direito de canonizar um assassino frio. Foi mais ou menos o que Jorge Amado fez com Luís Carlos Prestes, em O Cavaleiro da Esperança. E mesmo com Stalin, que endeusou na mais repulsiva de todas suas obras, O Mundo da Paz. Neruda, Aragón e tantos outros fizeram o mesmo. Sábato, que denunciou com veêmencia o stalinista, acabou por construir um altar ao mais operoso stalinista da América Latina.

Pensei inclusive em retirar o capítulo que dedico ao Che em minha tese. Mas considerei que não seria honesto publicar um trabalho que não aquele aprovado na Sorbonne Nouvelle. Escrevi, escrito está. Le voilà:

Um outro Ernesto – Recusando a luta contra Deus, escrevia Camus, o homem se engaja no tempo, na revolução, movimento que mata homens e princípios. Movimento este que terá, na pessoa de um outro Ernesto, também argentino, sua encarnação no continente latino-americano. Como Camus, Sábato não acredita na troca de funções, o escravo substituindo o senhor: "se temos de construir uma nova sociedade não há de ser sobre a base de uma mudança tão-somente econômica, mas de uma nova atitude frente ao homem". Gato escaldado pelo stalinismo, sempre prudente face às Revoluções que logo se tornam "revoluções", Sábato não hesita em saudar em Ernesto Guevara a esperança de uma América Latina independente. A calorosa correspondência entre estes dois Ernestos (anexos 2 e 3) revela uma admiração recíproca. Estamos imersos nos anos 60. (Vista de 1994, a carta do Che padece de um romantismo atroz, e por isso merece registro. Fidel, o Libertador, mostra sua face de tirano. Ante a Cuba atual, dos marielitos e balseros, Guevara revela estar navegando em um mundo onírico).

Vários críticos acusaram Sábato de ter compromissos com a ditadura militar argentina, pelo fato de ter-se recusado ao exílio. Cabe lembrar o discurso proferido na Universidade de Paris, alguns dias após a morte do Che. Sábato vê no guerrilheiro o homem que encontrou a morte combatendo não somente pela elevação do nível de vida dos povos miseráveis, mas também por um ideal mais valioso, pelo ideal de um Homem Novo:

"Assim acabou a vida do comandante Guevara. Indefeso, após sofrer horas intermináveis com muitas balas em seu corpo enfermo, sem médico, com a asma que agravava de modo insuportável sua dor. Houve um latino-americano suficientemente covarde para aproximar-se daquele corpo dorido, com a suficiente coragem para sacar o revólver diante de seus olhos, dirigi-lo ao coração e disparar esse balaço miseravelmente histórico. Jamais saberemos o que disse Ernesto Guevara nesses momentos, mas podemos imaginar que seu olhar foi muito triste. Não por sua esperada morte, mas pelo fato de ter-lhe sido dada de tal forma e por um boliviano. Não por um ranger dos Estados Unidos, mas por alguém que de certa forma era seu próprio irmão".

A data é inerente à obra. O discurso foi proferido em novembro de 1967, em meio ao clima emocional criado pela morte de Guevara. Vista de hoje, quando milhares de pessoas arriscam a vida no mar em balsas improvisadas para fugir da ilha, Cuba talvez fornecesse a Sábato uma visão distinta da obra do Che. Seja como for, a admiração do escritor pelo guerrilheiro está em Abbadón, el Exterminador. Através do relato de Nepomuceno, o "Palito", Marcelo Carranza ouve a saga do Che. O personagem Palito seria um companheiro de armas do guerrilheiro. Sábato mescla história e ficção. Boa parte de seu relato está baseado no diário de campanha de Inti Peredo. Em carta de despedida a Fidel, diz Guevara:

"Outras terras do mundo reclamam o concurso de meus modestos esforços. Posso fazer o que te está negado por tua responsabilidade à frente de Cuba e chegou a hora de separarmo-nos. Deixo aqui o mais puro de minhas esperanças de construtor e o mais querido entre meus seres queridos. Libero Cuba de qualquer responsabilidade, salvo a que emana de seu exemplo. Se a hora definitiva me chegar sob outros céus, meu último pensamento será para ti, Fidel".

Abbadón traz ainda a transcrição de um outro trecho de carta, esta endereçada a seus pais, que evidencia o caráter romântico e quixotesco do empreendimento do guerrilheiro:

"Queridos velhos: sinto outra vez sob meus talões o costilhar do Rocinante, volto à estrada com minha adarga no braço. Há coisa de dez anos, escrevi-lhes outra carta de despedida. Segundo recordo, lamentava-me de não ser melhor soldado e melhor médico. O segundo já não interessa, médico não sou dos piores... Pode ser que esta seja a definitiva. Não a busco, mas está dentro do cálculo lógico. Se é assim, vai um último abraço. Sempre os quis muito, só que não soube expressar meu carinho. Sou extremamente rígido em minhas ações e creio que às vezes não me entenderam. Por outro lado, não era fácil entender-me. Creiam-me, pelo menos hoje".

Che teve sorte. Morreu como herói. Seria interessante imaginar sua reação face ao encarceramento de opositores e à fuga, em 1980, de quase duzentos mil cubanos para os Estados Unidos. De qualquer forma, Sábato toma como personagem uma espécie de mito, a figura do guerrilheiro não coincidindo necessariamente com o homem Guevara.

A evocação de Palito mostra um homem que acredita mais no moral e na disciplina que no poder das armas. Um guerrilheiro deve manter a decisão de combater seus ideais até a morte. Esta disciplina não é a dos quartéis, mas a de "homens que sabem pelo que lutam e que sabem que isso é grande e justo". À noite, segundo o relato de Palito, Che dava um curso de francês:

"Não é uma questão de dar tiros, dizia, só de dar tiros. Algum dia vocês terão de ser dirigentes, se triunfarmos nesta guerrilha. O dirigente, dizia, tem de ter não só coragem, tem que se desenvolver ideologicamente, tem de ser capaz de análises rápidas e de decisões justas, tem de ser capaz de fidelidade e disciplina. Mas, principalmente, dizia, tem de constituir o exemplo de homem que queremos em uma sociedade justa".

Palito confessa não compreender muito bem o que Che queria dizer "homem novo". Deduzia que deveria ser mais ou menos como o Che: "com espírito de sacrifício pelos outros, com coragem e ao mesmo com compaixão e..." O companheiro de armas de Guevara hesita. Mas acaba fazendo uma descrição quase evangélica do Che:

"Dizia que não se podia lutar por um mundo melhor sem isso, sem amor pelo homem e que isso era uma causa sagrada, não uma simples questão de palavras, que a cada dia, a cada hora, tinha-se de prová-lo. Muitas vezes o vimos tratar sem rancor soldados que pouco antes haviam atirado para matar, como curava suas feridas, mesmo gastando os medicamentos que para nós eram escassos".

Um episódio narrado por Palito nos conduz ao Camus de Os Justos. Che havia ordenado uma emboscada e devia comandar o ataque. Mas o primeiro caminhão passa e nele havia dois soldados adormecidos ao lado de porcos. Che não ataca. É preciso ser uma espécie de santo leigo – acusação aliás feita a Camus – para nutrir esta ternura pelo inimigo que não pensaria duas vezes para apertar o gatilho.

"Naquela noite, ao redor do fogo, nos explicou que uma atitude como aquela talvez pudesse ser considerada como uma debilidade e que debilidades daquele tipo em certos momentos poderiam ser fatais para a guerrilha. Mas ali surgiu de novo o homem novo. Matar de tocaia dois soldados indefesos, adormecidos e inocentes, porque afinal de contas combatiam recebendo ordens, seria realmente uma debilidade. Seria possível criar o homem novo pelo qual lutávamos sobre a base de atrocidades como aquela? Seria possível se chegar a fins nobres por meios ignóbeis?"

Nesta romântica defesa da guerrilha, Sábato deixa entrever que seria legítimo matar os dois soldados caso estivessem acordados, mesmo sendo inocentes. Dos diários do Che e Inti Peredo, o autor passa às notícias da imprensa cotidiana. Eis-nos de novo reenviados às páginas policiais. Desta vez não mais se trata de uma crônica policial, mas da realidade política da América Latina.

"Calcula-se que o comandante Ernesto Che Guevara deve cair de um momento a outro, pois está rodeado há vários dias por um círculo de ferro. Aqui, a terra e as picaduras transformam a pele de qualquer ser humano em um manto de miséria. A vegetação inextricável, seca e coberta de espinilhos, torna impossível qualquer deslocamento, mesmo de dia, a não ser pelos arroios estreitamente vigiados. Não é possível entender como os guerrilheiros podem suportar este cerco de sede, fome e horror. 'Este homem não sairá vivo', diz um oficial".

Fim inexorável. Prisioneiro e ferido, Che encoraja, na ficção de Sábato, o soldado que deve executá-lo: "Não me atrevia a disparar. Nesse momento vi o Che muito grande, enorme. Seus olhos brilhavam intensamente. Senti que vinha por cima de mim e senti uma tontura. Esteja tranqüilo – me disse –. Aponte bem".

Sábato tem profundo desprezo pelas esquerdas festivas. Em seu vocabulário, as gauches caviar. Admira quem não hesita em abandonar uma situação confortável para lutar. No mesmo livro, comentando a célebre afirmação de que a literatura é inútil enquanto há uma criança no mundo morrendo de fome, Sábato-personagem explica sua visão do Che:

"Não negou a medicina. Abandonou-a. Deixou que outros fizessem medicina. Além disso, declarou: o dever de um autêntico revolucionário é fazer a revolução. Um sapateiro é sapateiro enquanto faz sapatos, do contrário é um mistificador. Devemos admitir, no entanto, que a revolução não se faz só com fuzis. Faz-se também com livros, começando pelos que escreveram, como Marx ou Bakunin".

As letras ou o fuzil. Nestes dois Ernestos, vemos pessoas que tudo jogaram – seus empregos, uma situação confortável e mesmo suas vidas – em uma aposta pelo homem.

quarta-feira, outubro 21, 2009
 
FIERRO, DE RELANCINA


Tenho uma definição muito pessoal de gaúcho. Se interpelar alguém com os primeiros versos de Martín Fierro e se meu interlocutor não continuar a sextilha, não é gaúcho. Pode ser até rio-grandense, mas gaúcho não é. Não se pode confundir este personagem ligado à pampa e ao cavalo, com seres urbanos nascidos no asfalto.

Em algum final de noite dos anos 90 em Paris, encontrei uma uruguaia que vivia na Noruega, em Oslo, e se dizia gaúcha. Dei o santo:

Aqui me pongo a cantar
al compás de la vigüela,


Ela deu a senha:

que el hombre que lo desvela
una pena estrordinaria,
como la ave solitaria
con el cantar se consuela.


Era gaúcha, sem dúvida alguma. O mesmo eu não poderia afirmar das centenas de pessoas que encontrei em meus dias de Porto Alegre. Pois o poema maior que o continente latino-americano deu à literatura universal, de um modo geral, é desconhecido pelos habitantes da capital de um Estado que se pretende gaúcho.
Alguns anos antes da reunificação alemã, estive em Berlim Ocidental, em plena "Semana Martín Fierro". Era hóspede de uma estudante de Letras de origem italiana, nascida no Rio Grande do Sul. Ela não sabia se José Hernández era açougueiro ou alfaiate. Quando soube que o poema começara a ser escrito no exílio do senador argentino em Santana do Livramento, achou que eu delirava. Foi consultar uma enciclopédia literária alemã, lá estaria a verdade. Pois lá estava a verdade: os dicionaristas concediam várias páginas a nosso vizinho e o comparavam – nada mais, nada menos – a Homero.

Em Paris, quando defendia uma tese de doutorado em Literatura Comparada, tive a honra de ter no júri M. Paul Verdevoye. A parte de ser um dos grandes divulgadores da literatura latino-americana na Europa, era o tradutor do poema de Hernández ao francês. Tradução a meu ver inviável. Mas - diz-se entre tradutores - se traduzir é impossível, traduzir também é necessário:

Ici je m'mets a chanter
aux accords de ma guitare.
L’homme que tient éveillé
une peine extrardinaire,
comme l’oiseau solitaire,
en chantant peut s’consoler.


E já que estamos falando do impossível, não resisto à tentação de reproduzir o esforço de Folco Testena. Por inusitado que soe, a tradução italiana parece ser uma das mais próximas do poema de Hernández:

Incomincio qui a cantare
pizzicando la mandola.
L'uomo, si anche di una sola
pena in cuor sente il rovello,
come solitario augello
con il canto si consola.


Tive ainda um outro reencontro com estes versos de minha infância lá no outro lado do Atlântico. Em Las Palmas de Gran Canaria, encontrei um professor universitário, arabista de renome, cuja pedra de toque era o conhecimento do poema argentino. Naquela ilha vulcânica, batida pelos ventos da África, tão estranha à pampa gaúcha, o homem deslumbrava platéias canarinas recitando a saga de Fierro.

Gaúcho de Livramento, nasci embalado pelas sextilhas hernandianas. Nas madrugadas lá da Linha, na fronteira seca entre Uruguai e Brasil, antes de buscar as vacas em meio à cerração, sempre se tomava um mate ao redor do fogo no galpão. Enquanto eu chorava com a fumaça de algum cavaco de madeira verde, meu pai recitava as coplas de Fierro.

Chamavam-no de Canário. Não era homem de Letras. Se lhe perguntassem onde ficava a Europa, meu pai diria sem vacilar: “é lá pras bandas de Passo Fundo”. No que não deixava de ter razão. Vista de um homem postado em Livramento, a Europa fica sem dúvida para os lados de Passo Fundo. No entanto, conhecia de cor centenas de versos de Fierro. Não sei se ouvira falar de Hernández. E aqui se revela o milagre da grande arte: como no Quixote, o personagem acaba por matar o autor. Fierro, para os gaúchos da Fronteira Oeste do Rio Grande do Sul, era um índio vago que por ali havia passado, sempre lutando para defender seu pelego. Talvez até mesmo estivesse vivo, sempre fugindo de “la polecía”.

José Hernández, nuestro vecino, terá sido um dos raros poetas a sentir, ainda em vida, a ventura de ter sido morto pelo personagem que criou. Antes mesmo da publicação da segunda parte do poema, já era conhecido como Martín Fierro: “Soy un padre al cual le ha dado su nombre su hijo”, costumava dizer. Ao morrer, um jornal de La Plata deu-lhe a honra deste necrológio:

Ha muerto el senador Martín Fierro

Deslumbrados pelos brilhos teóricos emanados de Paris ou Moscou, os donos da cultura no Rio Grande do Sul, intelectuais porto-alegrenses que nada conheciam do homem do campo, ajoelharam-se em direção ao norte e deram as costas para o Prata. Pelo que ouvi em minhas universidades, raros são os acadêmicos que têm notícias deste poema maior da América Latina. A intelligentsia - ou talvez melhor disséssemos burritzia - da capital, arrinconada nos CTGs, preferiu criar uma caricatura, o “centauro dos pampas”, esse personagem ridículo e fanfarrão que nada tem a ver com o gaúcho, originalmente um pobre diabo do campo, esquecido, humilhado e massacrado pelo poder central.

Os rio-grandenses não são nada originais quando ignoram Martín Fierro, esta atitude é nacional. Ao norte do rio Uruguai, raras pessoas o conhecem. Em Florianópolis, ao propor um curso sobre o poema, os PhDeuses que me cercavam julgaram que eu estava falando grego. Hoje, em São Paulo, tenho fascinado não poucos amigos recitando as coplas de Hernández. Jamais haviam ouvido falar do homem ou da obra. Em algum momento da estruturação da literatura rio-grandense, almofadinhas da capital impuseram fronteiras culturais onde não há fronteiras: na pampa brasileira, uruguaia e argentina, geografia homogênea que produz o mesmo tipo de homem e o mesmo modo de sentir.

Com os mesmos argumentos com que Hernández foi expulso de nossa literatura, foi abafada a obra de outro grande escritor gaúcho, Aureliano Figueiredo Pinto. “Memórias do Coronel Falcão”, romance escrito em 1937 e só publicado postumamente em 1973, foi jogado às gavetas pelos donos da cultura de então, por “conter espanholismos”. Ora, se fossemos cortar do vernáculo todos os estrangeirismos adquiridos pelo português através dos séculos, ainda estaríamos falando galego.

Mas volto ao poema nascido nesta geografia de fronteira, esquecido e desprezado pelos intelectuais brasileiros, mas com prestígio nos mais importantes centros culturais do Ocidente. Em seu poema, em um castelhano rude e estropeado, Hernández canta valores eternos, pouco considerados neste século dominado por ideologias: o valor pessoal, a coragem física, a amizade, a confraternização no infortúnio. Mexe com a alma de todo homem livre o encontro de Fierro com o sargento Cruz. Quando a “polecía” o cerca, Fierro a enfrenta com a coragem da fera acuada. Cruz, que tinha a missão de aprisionar Fierro, troca de banda:

Tal vez en el corazón
lo tocó un santo bendito
a un gaucho, que pegó el grito
y dijo: “¡Cruz no consiente
que se cometa el delito
de matar ansí un valiente!


Não será fácil encontrar, na literatura universal, momento tão dramático de admiração mútua por dois homens que jamais se haviam visto e que, além disso, lutavam em campos contrários. As lutas de Fierro com o negro, com os índios e com a polícia sempre encantaram qualquer encontro que reunisse dois ou mais gaúchos. A luta com um negro em um baile é um dos momentos mais citados do poema: Fierro, embriagado - con la mamúa -, vê chegar ao baile um negro com uma negra na garupa do cavalo:

Al ver llegar la morena
Que no hacia caso de naides,
Le dije con la mamúa
"Va...ca...yendo gente al baile".

La negra entendió la cosa
Y no tardó en contestarme -
Mirandomé como a un perro -
"Más vaca será su madre"

Y dentró al baile muy tiesa
Con más cola que una zorra,
Haciendo blanquear los dientes
Lo mismo que mazamorra.

"Negra linda"... dije yo -
"Me gusta pa la carona"-
Y me puse a talariar
Esta coplita fregona:

"A los blancos hizo Dios,
A los mulatos San Pedro,
A los negros hizo el Diablo
para tisón del infierno".


Daí à luta com o negro é um passo e Fierro acaba por matá-lo. Desata as rédeas de seu cavalo e entra na noite da pampa. “Esforcei-me” - escreve Hernández - “sem saber se o consegui, em apresentar um tipo que personificasse o caráter de nossos gaúchos, concentrando o modo de ser, de sentir, de pensar e de expressar-se que lhes é peculiar; dotando-o com todos os jogos de sua imaginação cheia de imagens e de colorido, com todos os ímpetos de sua altivez, imoderados até o crime, e com todos os impulsos e arrebatamentos, filhos de uma natureza que a educação não poluiu”.

Hernández também canta a luta do indivíduo contra a adversidade, a solidão do gaúcho ante o verde da pampa, a rebelião do paisano contra as determinações da urbe. Fugindo do poder federal, Fierro, com seu súbito amigo Cruz, ao final do poema, se enfurna no deserto. É sofrida a travessia da fronteira pelos dois desertores:

Y cuando la habian pasao,
una madrugada clara,
le dijo Cruz que mirara
las últimas poblaciones;
y a Fierro dos lagrimones
le rodaron por la cara.
Y siguiendo el fiel del rumbo
se entraron en el desierto.


Estes “dos lagrimones” prometem, é claro, uma “Vuelta”, onde um Hernández mais maduro e filosófico, dará arremate ao poema. Temos então novos vultos, cada vez melhor delineados, entre estes o velhaco Viscacha, e Picardia, o filho do sargento Cruz. Se a obra começara como poema, assume agora novos personagens e sua característica definitiva de romance narrado em estrofes. Os conselhos do velho Viscacha, antes de chegar nos salões de Buenos Aires, terão aquecido as noites de muito peão de estância - o que restou do gaúcho - em torno a um fogo de chão:

El primer cuidao del hombre
es defender el pellejo;
lleváte de mi consejo,
fijáte bien lo que hablo:
el diablo sabe por diablo
pero más sabe por viejo.

Hacéte amigo del juez,
no le dés de qué quejarse;
y cuando quiera enojarse
vos te debés encojer,
pues siempre es güeno tener
palenque ande ir a rascarse.

Nunca le llevés la contra
porque él manda la gavilla;
allí sentao en su silla
ningún güey le sale bravo:
a uno le dá con el clavo
y a otro con la cantramilla.


No andés cambiando de cueva,
hacé las que hace el ratón:
conserváte en el rincón
en que empesó tu esistencia:
vaca que cambia querencia
se atrasa en la parición.

Y menudiando los tragos
aquel viejo como cerro,
“No olvidés, me decía, Fierro,
que el hombre no debe crer,
en lágrimas de muger
ni en la renguera del perro.”

“No te debés afligir
aunque el mundo se desplome:
lo que más precisa el hombre
tener, sigún yo discurro,
es la memoria del burro
que nunca olvida ande come.”


A naides tengás envidia;
es muy triste el envidiar;
cuando veás a otro ganar
a estorbarlo no te metas:
cada lechón en su teta
es el modo de mamar.

Si buscás vivir tranquilo
dedicáte a solteriar;
mas si te querés casar,
con esta alvertencia sea:
que es muy difícil guardar
prenda que otros codicean.


Nesta segunda parte do poema, Fierro trova com um moreno. Não por coincidência, seu adversário de payada é irmão do negro que há anos matara em uma pulperia. Neste nosso Brasil 97, a definição de lei proposta pelo contendor de Fierro, há mais de século, é de uma atualidade surpreendente:

La ley es tela de araña,
en mi inorancia lo esplico:
no la tema el hombre rico,
nunca la tema el que mande,
pues la rompe el bicho grande
y sólo enrieda los chicos.

Es la ley como la lluvia:
nunca puede ser pareja;
el que la aguanta se queja,
pero el asunto es sencillo,
la ley es como el cuchillo:
no ofiende a quien lo maneja.

Le suelen llamar espada,
y el nombre le viene bien;
los que la gobiernan ven
a dónde han de dar el tajo:
le cai al que se halla abajo
y corta sin ver a quien.


Este poema universal, tão próximo de nós - sejamos gaúchos ou apenas nascidos no Rio Grande do Sul - e ao mesmo tempo tão distante, é o cerne da reflexão que proponho hoje em uma mesa redonda em Cascavel, Paraná.

Yo sé el corazón que tiene
el que con gusto me escucha.

terça-feira, outubro 20, 2009
 
KFAR SHAUL CHEGOU TARDE


Leio no noticiário on line que a cidade de Jerusalém, considerada santa para os cristãos, judeus e muçulmanos, pode provocar em alguns turistas um efeito alucinante, uma espécie de alteração psíquica devido a sua aura de religiosidade e beleza. Esse efeito é conhecido como Síndrome de Jerusalém. As pessoas que passaram por este surto têm entre 30 e 40 anos, a maioria delas é solteira ou divorciada e, mesmo depois que retornam aos seus países, precisam continuar com o tratamento.

O Hospital Psiquiátrico Público Kfar Shaul estuda essas alucinações há 20 anos e recebe cerca de cinqüenta turistas em cada temporada. Quem sofre o surto acredita ser o próprio messias ou afirma escutar a voz dos profetas. Os mais atingidos são aqueles que têm o hábito de ler constantemente a bíblia. Também acreditam ser o Cristo ou de estarem ouvido a voz de Jesus e por isso, seriam o seu emissário; outros que são a reencarnação de João Batista. Já as mulheres, acreditam estarem grávidas do messias.

Os casos aumentam nas proximidades da Páscoa e Natal. Nas excursões, o guia identifica quem está em surto psicótico e o encaminha para a polícia e posteriormente para o hospital. Os sinais de comportamento são estes: desejo de viajar sozinho a Israel, ansiedade, agitação, nervosismo, necessidade de se manter limpo o tempo inteiro (banhos e troca de roupa são constantes), usar uma espécie de toga branca até os pés, gritar os salmos ou versículos da bíblia e fazer sermões em praças públicas ou em lugares sagrados. É uma espécie de loucura passageira que atinge o turista por cerca de seis dias, provocando um estado de excitação que, em seguida, provoca a buscar incansavelmente de sua purificação e a dos demais. Quando a crise finalmente cessa, ela se recorda de tudo, porém, não deseja falar sobre o que ocorreu.

Comentei isto há dez anos. Jerusalém, desde sempre, atraiu malucos de todos azimutes. Para começar o Cristo, que se ficasse em Nazaré não teria feito história. Em algum momento dos Evangelhos, diz uma voz: “pode surgir algo que preste em Nazaré?” Em verdade, sua cidade natal sequer é mencionada no Antigo Testamento. Paulo também sentiu esta necessidade. Ficasse em Tarso, o cristianismo sequer existiria. Pois quem criou a doutrina, em verdade, não foi Cristo. Mas Saulo de Tarso, que mais tarde adotou o nome de Paulo.

Maomé também sentiu o cheiro de prestígio de Jerusalém. Que tem a ver Maomé com Israel? Ocorre que Maomé viajou, em uma noite, de Meca a Jerusalém, montado em uma besta alada chamada al Buraq, menor que um burro e maior que uma mula. Segundos os mulás, esta espécie de mula teria cabeça de anjo e rabo de pavão.

Até aí nada demais. Se o Deus de Israel arrasa cidades a ferro e fogo, abre mares e provoca dilúvios, por que o Deus dos árabes não poderia delegar uma de suas mulas aladas para levar, em velocidade de Boeing, seu profeta em rápido turismo a Jerusalém? Quem com Jeová fere, com Alá será ferido. O pepino é que Maomé decidiu apear da besta justo ao lado do Domo da Rocha, atrás do Muro das Lamentações. E dela subiu ao Sétimo Céu, sempre montado no Burak e guiado pelo anjo Gabriel.

Melhor escolhesse outra rocha para bolear a perna. Pois aquela, para os judeus, é a Pedra da Fundação, sobre a qual o mundo teria sido criado. Na mesma rocha, Abraão teria oferecido seu filho Isaac em sacrifício a Jeová. Com tanto deserto no Oriente Médio, dois deuses - e dos mais ciosos da própria deidade - inventaram de escolher o mesmo rochedo para suas demonstrações circenses de poder.

Ao ouvir dizer que os deuses gregos haviam morrido, Nietzsche emendou: morreram de tanto rir, ao saber que no Ocidente havia surgido um que se pretendia único. O pior é que a moda do deus único vingou, e os árabes quiseram um outro para si. Não bastasse um segundo deus exclusivo, o primeiro resolveu assumir consistência humana e foi escolher a já conturbada Israel para encarnar. O Filho de Deus nasce em Nazaré e vai morrer logo em Jerusalém, o que faz da cidade uma encruzilhada das três religiões monoteístas dominantes do século.

Decididamente, os gregos conseguiam conviver melhor com seus deuses. Em terra tão eivada de sobrenatural, onde anjos anunciam partos e transportam profetas aos céus, não é de espantar que até os turistas sintam-se de repente transfigurados. O Centro de Saúde Mental Kfar Shaul, a maior clínica psiquiátrica de Jerusalém, desde os anos 80 vem manifestando sua preocupação com o distúrbio conhecido como a Síndrome de Jerusalém. Ao se verem em lugares descritos no Velho Testamento e nos Evangelhos, muitos peregrinos passam a achar que são personagens bíblicos.

Segundo os psiquiatras, a síndrome se manifesta de três maneiras. Algumas pessoas, já mentalmente perturbadas, ao chegar a Jerusalém se convencem de que são personagens bíblicos. Outras têm visões do fim do mundo. Um terceiro tipo de paciente chega são à cidade, mas logo se sente compelido a vestir túnicas brancas e a fazer pregações. Em falta de túnica, vai lençol de hotel mesmo.

A clínica trata de cerca de 150 casos de Síndrome de Jerusalém por ano, dos quais 40 exigem internação. A desordem emocional é mais comum entre protestantes e judeus vindos dos EUA e da Europa. Dos estrangeiros internados, 60% são americanos e 35%, europeus. O restante vem da Ásia e da América Latina. É o que contam as agências de notícias.

Ex-crente, entendo esta síndrome. Que em Israel estes visionários brotem como cogumelos após a chuva, é normal. Se Deus já falou com os homens há mais de dois milênios, por que não o faria com os homens deste século? Ainda mais quando os que o procuram perambulam por sua geografia ancestral.

Quando Cristo anunciou-se como o filho de Deus, muitos outros contemporâneos seus nutriam pretensões semelhantes. Um destes iluminados portava inclusive o mesmo nome do Cristo: era Jesus, filho de Baruch. Mas o filho de Maria teve mais sorte: foi crucificado. Paulo empunhou seu cadáver e erigiu o cristianismo. Pela primeira vez na história, surgia uma religião que ostentava como logotipo um instrumento de tortura. E a cruz invadiu o Ocidente, atravessou mares e hoje polui até a baía da Guanabara. Por esses milagres que só a propaganda consegue, o logotipo sangrento tornou-se símbolo de salvação.

Mas por que isto acontece? Seguindo o Dr. Yair Barel El, responsável pela ala psiquiátrica do Kfar Shaul, em todo ser humano existe um ponto de saturação sensorial ao que ele entende ser a salvação aliada à visão da beleza de uma cidade mística. Existem duas posições distintas sobre esta doença: uma, afirma que ocorre em uma pessoa equilibrada, que nunca apresentou sinal de distúrbio mental, e a segunda, que o surto depende de uma predisposição do indivíduo, manifestada anteriormente no seu país de origem e isto independente do seu nível sociocultural. A ciência, disse ele, ainda não encontrou solução para explicar este fenômeno comportamental.

O Kfar Shaul chegou tarde. A síndrome foi identificada em 1982. Se há dois mil anos os rabinos tivessem clínicas para receber os turistas mais exaltados, estes nossos últimos anos seriam, sem dúvida alguma, menos conturbados.

 
MEUS AMIGOS MARXISTAS (IV)


Caríssimo e muito próximo Sábato:*

Há seres que são apenas pontes entre duas pessoas, como diz um de seus personagens, frágeis pontes como as que improvisam os exércitos sobre um abismo, e que são recolhidas tão logo as tropas tenham passado. Lá pelos anos 70, antes de uma viagem a Buenos Aires, fui procurado por um destes seres que, uma vez cumprida sua missão de transitória ponte, desapareceu de minha existência tão abruptamente como havia surgido. Me pedia que lhe comprasse El Tunel, "desse extraordinário argentino, Ernesto Sábato". Ora, eu já ouvira falar desse nome, e dele não guardava a melhor das lembranças. Em meus dias de adolescente havia lido El Túnel, que me parecera uma vulgar história de ciúmes, o que só comprova que cada livro tem uma idade certa para ser lido, e é perigoso antecipar esta leitura. Naqueles dias, víamos Buenos Aires com secreta inveja: era a capital cultural da América do Sul, metrópole onde tínhamos acesso a livros e filmes proibidos no Brasil, onde se respirava toda uma busca de latinidade.

Invadidos pela parafernália musical ianque, era com reverência quase religiosa que acariciávamos os discos de Atahualpa Yupanqui e Mercedes Sosa nas livrarias de Florida. Atravessar o Plata era para nós, brasileiros, mais ou menos como ir à Europa, com a vantagem de que o Plata não era tão largo como o Atlântico. Voltávamos com as espáduas curvadas sob –literalmente– o peso da cultura. Um amigo queria uma coleção de Crisis, outro pedia um livro de Roberto Arlt, um terceiro os últimos contos de Borges e, na falta de poder transportar filmes, tínhamos de voltar com um detalhado resumo de realizações como Le Dernier Tango à Paris, La Grande Bouffe, The Devils, État de Siège, Z, etc.

Mas os tempos mudam, e mudam com rapidez na América Latina. Antes porém que os tempos mudassem, aquele ex-amigo, discreta ponte, me pedia que comprasse um de seus livros. Comprei-o, mais precisamente na livraria La Ciudad, cuja atmosfera sempre me fascinou. Fui a um bar, creio que na Lavalle com Suipacha, para um "trago largo". Tinha vários dias livres pela frente para dedicar-me ao conhecimento físico da cidade, e pressa nenhuma. Enquanto esperava o garçom fui remexendo minhas compras, algumas pessoais, mais as inevitáveis encomendas de amigos. Abro Sobre Héroes y Tumbas e me deparo com a nota policial que abre o livro: um crime e um suicídio ocorridos em circunstâncias misteriosas, frutos aparentemente de um gesto de loucura. Mas certas inferências conduziam a uma hipótese mais tenebrosa, em virtude de um estranho "Informe sobre Ciegos" que Fernando Vidal Olmos havia concluído na noite de sua morte. Antes mesmo de chegar o "trago largo", minha tentação era passar as páginas, cair diretamente no Informe.

Preferi obedecer a ordem dos fatos estabelecida pelo autor e, durante duas gordas centenas de páginas, permaneci fascinado pela ausência onipresente de Vidal Olmos. Escusado dizer que naqueles dias abandonei todos meus projetos turísticos. Debruçado sobre teu livro, descobri uma Buenos Aires profunda e subterrânea, escondida ao visitante que não dispõe de um guia como Sábato. Após ter percorrido com Olmos cavernas, seitas e incestos, ao chegar àquele repouso final, quando o angustiado Martín urina ao lado de Bucich, o chofer de caminhão, sob o poncho estrelado da pampa, tomei uma decisão imediata: comprei sua obra completa. Era preciso reler El Túnel, quem escrevera Sobre Héroes y Tumbas não podia ter cometido bobagens. E mais Uno y el Universo, vamos ouvir o primeiro vagido do autor. Como também El Escritor y sus Fantasmas, cujo título me excitava. Eram os dias de lançamento de Abaddón, el Exterminador. Considero que um bom livro é o melhor presente. Para espanto do livreiro, apanhei vários exemplares.

Falava no ex-amigo que me levou a teu encontro. Entusiasmado com a independência intelectual de Sábato ante os engodos de esquerda e direita, passei a divulgar tua obra entre amigos e nos jornais para os quais escrevia. Mas vivemos tempos dogmáticos, em que ideologias doentias se sobrepõem a este antiquíssimo e quase esquecido sentimento, a amizade. O amigo que me encomendara Héroes, por ver em Sábato um escritor que tratava dos problemas da condição humana, fechava-se agora em um azedo mutismo, resmungando qualquer coisa sobre "literatura psicológica e decadente". Vivíamos então no Brasil – e vivemos ainda – sob o império das patrulhas ideológicas, fenômeno que não lhe é estranho: um homem pensa com a própria cabeça e logo se vê entre dois fogos. Primeiro, a censura do stablishment, que detesta todo pensamento novo. Depois, a censura de uma pretensa oposição, que também detesta o novo, já que suas ambições não giram exatamente em torno a um mundo mais humano, mas visam à posse imediata do poder. O silogismo é tão ridículo quanto primário: só os marxistas ou compagnons de route são bons escritores. Ora, Sábato não só não é marxista como ainda abandonou –e ousou criticar– o marxismo. Logo, Sábato não é bom escritor.

Obedecendo ao mesmo processo mental que fez um dia Sartre dizer a Camus que "l'amitié, elle aussi, tend à devenir totalitaire; il faut l'accord en tout ou la brouille, et les sans-parti eux-mêmes se comportent en militants de partis imaginaires", um belo dia o amigo que me levara a teu encontro passou a acusar-me de reacionário pelo fato de defender os mesmos ideais libertários que defendes. Cumprida sua missão como ponte, este amigo desaparece de cena e destas reflexões.

Nasci em Santana do Livramento, caríssimo Sábato, e este detalhe não é gratuito. Filho do campo, me criei entre contrabandistas e muitas vezes cevei um mate para um guarda aduaneiro vindo da cidade. A meia légua dali, alguns paisanos passavam bois ou ovelhas para o Uruguai ou no sentido inverso, conforme o preço da lã ou da carne. Contrabandista desde o berço, muito cedo me desinteressei por gado, mas nem por isso abandonei este vício de fronteirista. Após aquele "trago largo" a Suipacha, atravessei o Plata com o cérebro repleto de uma mercadoria inefável, imperceptível aos vigias de fronteiras. Pois o contrabando mais importante não é o de bois ou ovelhas, mas o das experiências que nos fecundam o espírito quando mergulhamos em outra cultura.

Disto terão se apercebido mais tarde os homens de aduana. Quando voltei à Argentina para dar-te um abraço e apanhar o barco que me traria à Europa, em minhas malas os guardinhas buscaram uma mercadoria específica.
– Que tiene Usted en este bulto?
– Ropas.
– Y en este?
– Regalos.
– Y en este otro?
– Libros.
– Abralo.

O pequeno funcionário subitamente tomou ares de crítico literário e, com a nonchalance de quem despetala um malmequer, afirmava: este é bom, este não é, este sim, este outro não. A Argentina havia mudado. De mais importante centro editorial da América do Sul, passara a ser governada por homens que temiam livros, isto é, idéias.

Naqueles anos, caro Sábato, vivi meus dias de Juan Pablo Castel: havia perdido Deus, em Marx meu intelecto se recusava a crer e pouca ou nenhuma confiança alimentava em mim mesmo. Na Filosofia buscara resposta a certas angústias e na Filosofia só encontrei abstrações que me conduziam a becos sem saída. No Direito, tentara encontrar satisfação a meus ideais de justiça, e no Direito via um sistema de opressão de um povo por uma elite desprovida de qualquer senso de humanidade. Para comer, fazia jornalismo, sem maiores entusiasmos, consciente da definição gideana: jornalismo é o que amanhã interessa menos do que hoje. Alguns ensaios e contos publicados, e a suspeita atroz de que literatura talvez não fosse meu melhor rumo. Foi quando li aquela sua mensagem jogada ao mar, aquelas densas e sofridas páginas de Abaddón, el Exterminador, dirigidas a "un querido y remoto muchacho".

"Te desanimás porque no sé quién te dijo no sé qué. Pero ese amigo o conocido (que palabra más falaz!) está demasiado cerca para juzgarte, se siente inclinado a pensar que porque comés como el es tu igual; o, ya que te niega, de alguna manera es superior a vos. Es una tentación comprensible: si uno come con un hombre que escaló el Himalaya, observando con suficiencia como toma el cuchillo, uno incurre en la tentación de considerarse su igual o superior, olvidando (tratando de olvidar) que lo que está en juego para ese juício es el Himalaya, no la comida".

Para mim, que vivia uma perigosa fase de descrença em tudo e em todos, tuas frases me soaram como tábua lançada a um náufrago. Talvez o mundo não fosse assim tão negro, negro seria meu pessimismo. "Y por eso tan pocas veces el creador es reconocido por sus contemporáneos: lo hace casi siempre la posteridad, o al menos esa espécie de posteridad contemporánea que es el extranjero. La gente que está lejos. La que no ve cómo tomás el café o te vestis".

Nem tudo estava perdido, pois. O ex-advogado descrente do Direito, o ex-aprendiz de filósofo fugitivo de filosofias que reduziam o homem a conceitos, o ex-jornalista cansado de jornais que pingavam sangue e mentira, voltou a bater numa porta esquecida, gonzos enferrujados, além da qual suspeitara um dia não existir saída. Pergunto-me quantas respostas terá recebido tua carta e quantos jovens terão sido salvos do vácuo no qual naufragaram Castel e Meursault.

Hoje, olhando para trás e tentando tirar de minhas errâncias algum ensinamento, primeiro quero te agradecer a mão de longe estendida. Depois, agradecer a Deus por não existir, ausência que permite ao homem este vagido "solitário e solidário", como escreveu Camus, que chamamos literatura.


* Paris, 1981

segunda-feira, outubro 19, 2009
 
MEUS AMIGOS MARXISTAS (III)


Outro comunista ilustre que conheci foi Ernesto Sábato. Não que seja hoje comunista. Abandonou o Partido lá por 35 ou 36, por ocasião das primeiras purgas de Stalin. Foi quando desceram do barco Camus, Koestler, Gide, Ignazio Silone, Louis Fischer, Stephen Spender, Richard Wright. Desde então, Sábato tem sido um crítico feroz dos regimes totalitários socialistas.

Conheci Sábato meio por acaso, através de um bom amigo, o Odilon Rebés Abreu, hoje falecido. Eu ia para Buenos Aires e ele encomendou-me um livro, El Tunel, “desse extraordinário escritor argentino, o Sábato”. Comprei o livro e enquanto degustava um trago largo – lembro que no café El Reloj – comecei a trecheá-lo. Foi amor à primeira vista. Voltei à livraria e comprei todos os demais livros do autor. Na época, havia sido publicado Abaddón, el Exterminador. (Voltarei a este livro).

Mergulhei com fascínio nas páginas de Sobre Heroes y Tumbas. Desde o primeiro capítulo, o leitor fica inquieto para chegar ao terceiro, o “Informe sobre Ciegos”. A saga de Fernando Vidal Olmos, que vê uma conspiração universal no mundo dos cegos, suas pesquisas sobre o que ele chama de seita, suas relações com Alejandra, me prenderam por boas horas nos cafés de Buenos Aires. Não fiz quase nada na cidade, passei meus dias todos lendo Sábato.

Em Abaddón, Sábato escreve uma “Carta a un remoto muchacho”, um dos momentos mais altos de seu romance. Me pareceu que se dirigia a mim. Resolvi respondê-la. Qual não foi minha surpresa ao receber uma afável resposta de volta. Eu imaginava o homem encarcerado nalgum hospício, talvez imobilizado por uma camisa de força. Nada disso. Estava “vivito y coleando”, como diria Cela.

Daí a visitá-lo foi um passo. Fui procurá-lo na modesta casinha em que vivia, em Santos Lugares, a uma hora de Buenos Aires. Recebeu-me com afeto, junto com Matilde, sua mulher. Conversamos toda uma tarde. Nos encontramos depois em Buenos Aires, Paris e São Paulo. Quando ganhei uma bolsa em Paris, decidi que estudaria sua obra. Meu orientador, perplexo. “E por que não um escritor brasileiro?” – perguntou-me. Porque não me fascinam, respondi.

Meu orientador jamais ouvira falar de Sábato. Passou na Bibliothéque Nationale e pesquisou sua fortuna literária. Só aí teve noção da importância de sua literatura. Hoje, Daniel Pageaux – que assim se chamava – faz palestras sobre Sábato em toda Europa e inclusive publicou um ensaio sobre sua obra. Gostei de ter ensinado algo a meu professor.

Foi ainda em Porto Alegre, creio que em 1976, que recebi o convite de Sábato para traduzir sua obra. Comecei com El Tunel. Em Paris, traduzi Sobre Heroes y Tumbas e Abaddón. E mais alguns ensaios: Uno y el Infinito, Hombres y Engranages, Heterodoxia, El Escritor y sus Fantasmas. Ou seja, eu estava lendo vírgula a vírgula, ponto a ponto, a obra que pesquisava.

Costumo afirmar que há uma idade – e uma época – para ser comunista. Entendo que quem nasceu no início do século e tenha vivido, enquanto jovem, a Revolução de 17, tenha aderido imediatamente à Idéia, como se dizia então. Já um adulto, em 35 ou 36, por ocasião das purgas de Stalin, só sendo desonesto para se dizer marxista. Certo, Lenine já havia cometido seus massacres, mas o Ocidente deles ainda não tinha conhecimento. Há quem diga que Stalin foi um desvio da boa doutrina. Não foi. Lenine já defendia o terror como instrumento de controle do poder. E só podia ser assim. O terror como instrumento de Estado já está implícito no Manifesto.

Sábato – e muitos outros intelectuais – abandonaram o barco na década de 30. Mas... houve recidiva.

domingo, outubro 18, 2009
 
MEUS AMIGOS MARXISTAS (II)


Outro comunista pelo qual tive grande respeito foi um operário de Dom Pedrito. Chamava-se Gerson Prabaldi e era funileiro. Às seis da tarde, religiosamente, fechava sua oficina, montava em sua bicicleta e saía a fazer seu apostolado. Distribuía as revistas China e Unión Soviética, ambas em espanhol, que traziam belíssimas fotos dos paraísos socialistas, em papel couché e policromia. Mulheres radiantes dirigindo tratores, colhendo trigo, operários felizes empunhando foices ou maçaricos, crianças lindas e saudáveis contemplando os amanhãs que cantam.

Era tudo mentira, é claro. Naqueles dias, tanto China como a ex-URSS passavam por períodos de escassez e mesmo de fome e tinham seus dissidentes assassinados ou prisioneiros em campos. Mas o Gerson, coitado, acreditava naquela propaganda toda. E sentia-se obrigado a divulgar a Idéia – como se dizia então – aos demais pedritenses. Às vezes, organizava palestras em sua oficina. A seu modo, lutava por um mundo melhor. Tenho certeza de que, se soubesse o que realmente acontecia na China ou na então URSS, combateria com o mesmo entusiasmo a tal de Idéia.

Era homem honesto e generoso, mas desinformado. E esta é, a meu ver, uma das raras maneiras – senão a única - de um honesto ser comunista.

Outro comunista que admirei foi Dyonélio Machado, o celebrado autor de Os Ratos. Já septuagenário, gostava de receber jovens em sua casa. Eu o encontrava geralmente às quarta-feiras, quando sempre me esperava com bom vinho. E biscoitos. Pas de vin sans biscuit, costumava dizer.

Militante do Partido Comunista Brasileiro, foi preso em 1935, por ocasião da Intentona Comunista. Passou dois anos na prisão. Em 1947, com o PC na legalidade, se elegeu deputado federal pelo partido e foi seu na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul.

Passou longos anos sem publicar livro algum. De repente, lançou Os Deuses Econômicos, livro cuja história se passava na Grécia antiga. Chegou inclusive a estudar grego, para bem situar sua ficção. A meu ver, foi uma forma de evitar discussões contemporâneas.

Curiosamente, este comunista empedernido foi quem me iniciou nos estudos bíblicos. Eu já havia lido a Bíblia de ponta a ponta, foi quando perdi minha fé. Mas não a conhecia a fundo, Para meu espanto, Dyonélio tinha sempre uma bíblia aberta em um atril, ao pé de sua biblioteca. Lá pelas tantas, me chamava junto ao atril, abria o Livro ao acaso e começava a guiar-me pelas trilhas da Judéia e Palestina. Apanhava então um tomo da História das Origens do Cristianismo, de Renan, e saíamos a viajar por aqueles tempos d’antanho.

Caminhava com entusiasmo pelas ruas de Porto Alegre, apoiado em uma bengala. “Velho que não anda, desanda”, gostava de dizer. Muitas vezes o acompanhei pela Rua da Praia e pela Borges de Medeiros, onde morava. Difícil entender como homem tão culto e generoso era comunista. Que o fosse em sua juventude, era inteligível. Nasceu em 1895 e tinha 22 anos em 1917. Qual jovem, no início do século, não se entusiasmou pela Revolução Comunista?

O problema é que Dyonélio testemunhou as purgas de 1936 e obviamente teve notícias dos gulags, das denúncias de Kravchenko em 1949, e do discurso de Kruschev no XX Congresso do PCUS, em 1956, quando este acusou Stalin de genocídio e denunciou o culto da personalidade que o cercava. Mas fé é fé. Fale a um católico da gema sobre os massacres que Jeová ordenou a seu povo eleito. Ele não vai acreditar. Ou, se acreditar, dirá que Jeová teve boas razões para tanto.

O mesmo ocorria, penso, com o Dyonélio. Jamais consegui questioná-lo, ele fugia ao debate. Segundo me consta, morreu stalinista convicto. Nunca consegui abordar o assunto com ele. “Não vou dar argumentos para os homens” – defendia-se. O que me faz suspeitar que de algo já sabia.

Seja como for, foi um dos comunistas que admirei e do qual tenho as melhores lembranças.

 
FARTURA EM CUBA
ESTÁ POR ACABAR



Mais de 70% dos cubanos vivem sob o sistema de racionamento, em vigor desde 1962, quando nasceram. Uma caderneta – libreta, como se diz por lá – garante a cada cubano, por mês:

- 3,5 quilos de arroz. Ou seja, 116 gramas por dia.
- 2,5 quilos de açúcar. O que me parece demais. Aqui em casa, não tenho sequer um grama de açúcar por mês. Nem por ano. Coisas da monocultura. A propósito, uma amiga petista reclamava outro dia que o Lula quer transformar o Brasil num grande canavial. Bom... mas e Cuba? – perguntei. Ela reagiu: estou falando do Brasil. Quando falo do Brasil tu sempre vens com essas comparações. Isto é, comparar não pode.
- meio quilo de feijão.Quer dizer, 16,66666... gramas por dia. Dá dízima periódica.
- 230 gramas de azeite. Dízima periódica de novo. 7,66666... gramas por dia.
- dez ovos. Coincidência, mais uma dízima. 0,333333... ovo por dia.
- 460 gramas de espaguete. De novo: 15,333333... gramas por dia.
- 230 gramas de picadinho de soja. Outra dízima: 7,666666... por dia.
- 115 gramas de café. Mais uma vez: 3,8333333... por dia.
- um pão por dia. Finalmente uma unidade. Se você tiver três filhos, divida-o em cinco pedacinhos.

No país da dízima periódica, o salário médio é de 415 pesos, o que dá uns 33 reais por mês. Um mendigo no Brasil que consiga juntar cinco reais por dia, ganha cinco vezes mais que um médico em Cuba. A caderneta mal dá para doze dias. Papel higiênico, ni pensar. Para isso existe o vibrante matutino nacional, o Granma.

Mas essa fartura toda vai acabar. Leio no El País que, em meio à atual crise, a libreta se tornou um fardo por demais pesado para o governo de Raúl Castro (o irmão daquele outro), que tenta organizar um modelo de economia ”sustentável” baseado na lógica dos números e não em sonhos impossíveis.

Cuba importa mais de 80% dos alimentos que consome. Ou seja, o tal de socialismo dos Castro não consegue sequer alimentar os cubanos. Nas atuais circunstâncias, a subvenção dos produtos da libreta significa um custo e 800 milhões de dólares para o Estado. A conta não fecha.

Desde que assumiu formalmente o poder, em 24 de fevereiro de 2008, Raulito tem declarado que a libreta de racionamento, da mesma forma que outras “gratuidades e subsídios milionários” – imagine! – são irracionais e insustentáveis. “País nenhum pode gastar indefinidamente mais do que o que recebe” – disse em várias oportunidades.

Qualquer dia, acabam redescobrindo a América.

sábado, outubro 17, 2009
 
MEUS AMIGOS MARXISTAS (I)


Todo comunista é um canalha, escrevi ontem. Ou desinformado. Tive bons amigos entre eles, apesar de nossas diferenças intelectuais. Um deles, foi amigo de adolescência, nasceu nos mesmos campos que eu e mantivemos uma relação de uns bons quarenta anos. Nadamos juntos no mesmo rio, nos dias de adolescência, fomos parceiros de grandes polêmicas lá pelos quinze anos de idade. Escrevíamos num jornalzinho estudantil, o Pirilampo. Certo dia, escrevemos um artigo onde defendíamos a tese de que, para fazer a reforma agrária, não era necessário mexer na Constituição, já que ela estava prevista na Carta Magna.

Nossa! Escândalo em Dom Pedrito. O Ponche Verde, o vibrante hebdomadário local – se me é permissível a expressão – nos tachou de comunistas. Exigimos direito de resposta, que nos foi concedido. Mas nosso artigo foi prudentemente cercado por outros três, um deles de autoria do Dr. Márcio Bazan, latinista emérito, daqueles que escrevia mais em latim do que em português. Um outro era de João Bosco Dihl, nosso professor de português. Exigimos tréplica. E a salpicamos com alguns data venias, mais uns quousque tandems e latinórios outros em nossa tréplica. Ninguém entendia na cidade aquela erudição de adolescentes. Só a entendeu o padre Chico, sacerdote alemão professor de matemática.

- Eu sei. Focês lerram as páchinas finais do Aurrélio.

Acertou na mosca. O Aurélio daqueles dias tinha várias citações latinas ao final do tomo. Já o professor de português levou uma paulada severa. Em seu artigo, ousou empregar um pronome oblíquo no início da frase. Até hoje não esqueço nossa resposta ao final do artigo:

- Admoestamos ao ínclito mestre da língua vernácula que as mais elementares regras gramaticológicas coarctam o emprego do pronome oblíquo nos proêmios de uma frase.

Eram dias em que nossas mães queimaram nossas bibliotecas incipientes. Não por censura, mas por temor aos militares. Em verdade, não havia razão para tanto. Mas mãe é mãe. Não gostavam de nos ver reunidos discutindo filosofia. Íamos então para a praça General Osório, naqueles dias pré-televisivos, quando ainda se fazia o footing. Mas as noites de Dom Pedrito, quando fustigadas pelo minuano, são gélidas. O recurso era o bar do Santinho, onde continuávamos discutindo nossas concepções de homem e de mundo. Mas o Santinho fechava lá pelas dez. O último recurso era o bordel.

Visitávamos as moças para continuar discutindo filosofia. Por um lado, tínhamos medo de mulher, constituam um mistério que a gente ainda não conhecia. Por outro, mal tínhamos dinheiro para uma cervejinha. Lembro que uma delas era uma defensora efusiva da reforma agrária. Mas nós, como diria Sartre, éramos uma paixão inútil. Com o passar dos dias, colocaram uma atalaia na janela. Mal surgíamos na esquina, fechavam a casa. “Lá vêm os filósofos, dali não sai grana alguma”.

Mas divago. Tudo isto para falar de um de meus parceiros, comunista desde jovem. Fez guerrilha, pegou quatro anos de prisão militar. Eu, anticomunista desde minha adolescência, me orgulhava de cultivar sua convivência. Vivíamos nas antípodas. Mas havia algo maior, acima de qualquer ideologia, um sentimento muito caro a gaúchos – falo de gaúchos de verdade, não de gaúchos de asfalto – a amizade. Este sentimento estava acima de qualquer filosofia. Fizemos ginásio no mesmo colégio em Dom Pedrito, científico no mesmo colégio em Santa Maria, Filosofia na mesma faculdade em Porto Alegre. Quando fui para Paris, ele, com sua pena já cumprida, veio para São Paulo. Mantivemos longa correspondência entre Paris e São Paulo.

Depois, vim para cá. Um churrasco com chimarrão, pelo menos uma vez por mês. Constituía para mim sumo prazer conversar com ele. Tínhamos um linguajar comum de fronteira, conhecíamos aqueles personagens todos lá da Linha Divisória entre Uruguai e Brasil, era algo como voltar aos pagos e à infância. O que me aprazia em nossa relação era que o modo de pensar não nos separava. A amizade pairava sobre as ideologias.

Bueno, vai daí que o homem, depois de velho, decidiu fazer um doutorado na USP. Sempre critiquei os doutorandos carecas, mas dei um desconto para meu amigo. Aconteceu então o inesperado. Uma vez titulado, afastou-se completamente de mim. Virou PhDeus. Quarenta anos de boa amizade foram jogados ao lixo, em função de um papelucho de doutorado de um curso medíocre.

Paciência! Este foi um dos bons amigos marxistas que tive. Continuarei com outros.

sexta-feira, outubro 16, 2009
 
COMUNISMO: A MENTIRA
COMO SEGUNDA PELE



Discutíamos sobre Mercedes Sosa. Discordância nenhuma quanto à beleza de sua voz. Eu dizia a meu interlocutor, falando a propósito de La Negra, que todo comunista é um canalha. (Em verdade, usei outra palavra). Considero que, em um comunista, a mentira é uma segunda natureza. Ou segunda pele, como quisermos. Ele sugeriu-me que desenvolvesse melhor o assunto.

Ora, é mais ou menos que tenho escrito ao longo de toda minha vida. E desde muito antes da queda do Muro. Hoje, vinte anos após a queda, dezoito anos após a implosão da União Soviética, surgem cá e lá madalenas arrependidas fazendo mea culpa. Fizeram carreira e fortuna montados no comunismo e hoje posam como libertários. Minhas restrições ao marxismo são desde quando me conheço por gente. Lá pelos quinze ou dezesseis, recebi de presente o Curso de Filosofia, do Georges Politzer. Em verdade, tratava-se de um curso de marxismo. Os comunistas sempre confundiram ideologia com filosofia. O livro até pode ser primário, mas dá uma boa idéia da miséria intelectual da doutrina. Eu já tinha alguns anos de leituras de história da Filosofia e o marxismo me pareceu uma resposta por demais rude ao intelecto humano.

Naquela época, eu não tinha – e, exceto os comunistas, ninguém mais tinha – uma idéia precisa dos crimes do comunismo. Hoje, nós a temos. Le Livre Noir du Communisme (Stéphane Courtois et allia), enumera os cem milhões de cadáveres feitos pelos comunistas no século passado. As 846 páginas do livro tornam o relato cansativo. Basta, a meu ver, um resumo: URSS — 20 milhões de mortos; China — 65 milhões; Vietnã — 1 milhão; Coréia do Norte — 2 milhões; Cambodja — 2 milhões; Europa do Leste — 1 milhão; América Latina — 150 mil; África — 1,7 milhão, Afeganistão — 1,5 milhão; movimento comunista internacional e PCs fora do poder — uma dezena de milhar de mortos.

Vamos a mais alguns feitos do comunismo, relacionados no livro supra:

- fuzilamento de dezenas de milhares de reféns ou de pessoas aprisionadas sem julgamento e massacre de centenas de milhares de operários e camponeses rebelados entre 1918 e 1922;
- epidemia de fome de 1922, provocando a morte de cinco milhões de pessoas;
- extermínio e deportação dos cossacos do Don em 1920;
- assassinato de dezenas de milhares de pessoas nos campos de concentração entre 1918 e 1930;
- extermínio de aproximadamente 690 mil pessoas por ocasião da Grande Purga de 1937-1938;
- deportação de dois milhões de kulaks em 1930-1932;
- destruição pela fome provocada e não socorrida de seis milhões de ucranianos em 1932-1933;
- deportação de centenas de milhares de poloneses, ucranianos, bálticos, moldavos e bessárabes em 1939-1941, e depois em 1944-1945;
- deportação de alemães do Volga em 1941;
- deportação e abandono os tártaros da Criméia em 1944;
- deportação e abandono dos chechenos em 1944;
- deportação e abandono dos inguches em 1944;
- deportação e liquidação das populações urbanas do Camboja entre 1975 e 1978;
- lenta destruição dos tibetanos pelos chineses após 1950.

E por aí vai. Na China atual, em prosa e verso cantada por seu desenvolvimento econômico, continua sendo cultuado o mais operoso assassino de todos os séculos, Mao Tse Tung. Suas estátuas, onipresentes, são visitadas por milhões de turistas. Na Rússia, Putin quer restabelecer o culto a Stalin. Não por acaso, Yevgeny Dzhugashvili, neto do tirano, está processando a Novaya Gazeta, por ter afirmado que Stalin pessoalmente ordenou a morte de cidadãos soviéticos. Para o neto do vovô, o artigo seria mentiroso. Ele quer uma indenização e um pedido de desculpas do jornal. O artigo publica documentos secretos com ordens de assassinatos com a assinatura do próprio Stalin. Mas o Yevgeny Dzhugashvili afirma que seu avô nunca ordenou diretamente nenhuma morte. Sua pretensão foi negada por um tribunal judiciário.

Ou seja: quem quiser cultuar Mao, Stalin – ou Ceaucescu, ou Pol Pot ou Kim Il Sung ou Fidel Castro – tem de negar os milhões de cadáveres que estes senhores produziram. Não há como buscar virtudes nos regimes comunistas sem mentir.

Todo comunista é, antes de tudo, um mentiroso. O espantoso é que ainda hoje a imprensa lhes dê espaço para mentir.

quinta-feira, outubro 15, 2009
 
IN MEMORIAM DOM ANTONIO


Morreu ontem, aos 82 anos, Dom Antonio Cheuiche, bispo emérito de Porto Alegre. Foi um de meus raros bons professores, no Curso de Filosofia da UFRGS. Fiz dois anos de Filosofia da Arte com frei Cheuiche. Homem de uma erudição extraordinária, cursou teologia em Burgos, na Espanha, e fez filosofia e letras pela Universidade de Madri. Licenciou-se em Filosofia pela Universidade Complutense e fez curso de especialização em Freiburg am Breisgau, na Alemanha, mais um curso de alemão na Universidade de Viena. De certa forma reduzia a cultura à pintura. Muito antes de ter trinta horas de aula no Prado, eu já conhecia boa parte do acervo do museu. Mais tarde, descobri porque. Cheuíche, em seus dias de jovem em Madri, havia sido guia de turistas no Prado.

Estudantes de Filosofia, não entendíamos como um homem culto podia crer em Deus. Perguntei um dia a frei Cheuíche: e se um dia você descobrir que Deus não existe? “Aí minha vida perderá todo sentido” – respondeu-me.

Homem corajoso, de uma dignidade comparável a fray Luís de León, quando a ditadura militar expurgou uma boa dezena de professores do curso de Filosofia, Cheuiche se demitiu em solidariedade a seus colegas. Saí de Porto Alegre, fui correr mundo, e perdi contato com Dom Antonio. Certa vez, de volta a meus pagos, passando pelo Palácio Piratini, eu o ouvi arengando em uma missa em praça pública, no melhor estilo da Teologia da Libertação.

Foi um momento triste. O homem se havia rendido à guerrilha comuno-católica. Seja como for, não posso deixar de render tributo ao excelente professor que tive.

quarta-feira, outubro 14, 2009
 
COLOMBO NAQUELAS FUNDURAS


Com a crise em Honduras, desfechada pela tentativa de golpe de Manuel Zelaya, o nome daquele pequeno país caribenho está presente todos os dias nas páginas dos jornais. O que me lembra um pouco a sina de Dom Pedrito. Como me dizia um amigo, “Dom Pedrito só sai na imprensa da capital quando tem enchente”. Volto a Honduras. Nos habituamos a ler a palavra como se ela nada significasse além do nome de um país.

Leio no Estadão:

“Ponto mais delicado da crise política em Honduras, a restituição do presidente deposto Manuel Zelaya deve ser debatida hoje, quando representantes do líder deposto e do governo de facto de Roberto Micheletti reunirem-se na mesa de negociação para dar continuidade ao diálogo. A "negociação de Guaymuras", como foi batizada a discussão entre os opositores hondurenhos, havia sido iniciada na sexta-feira”.

E por que Guaymuras? O redator não explica. Antigas tradições hispânicas contam que Cristóvão Colombo, durante sua última viagem, assistiu a uma missa no atual território hondurenho, até então chamado Guaymuras. Ao partir, assestou a proa de sua nave rumo ao leste. Logo foi castigado por um dos fortes ciclones que costumam açoitar aquela região na segunda metade de cada ano e a nave esteve perto de sossobrar. Quando o tempo amainou, sem ter causado maiores danos ao barco, o descobridor da América teria exclamado:

- Gracias a Dios que hemos escapado de aquellas honduras.

A frase consagrou o atual nome das antigas Guaymuras.

 
LONGA É A JORNADA
DE UM ANALFABETO
ATÉ O ENTENDIMENTO



Mas um dia eles acabam chegando lá. Escrevi outro dia que com o exercício do poder, algo Lula deve ter entendido. Pois não é que o homem acaba de enunciar uma frase de grande sabedoria? Leio na coluna de Fernando de Barros e Silva, na Folha de São Paulo:

"Não tem nenhum outro grande líder. No Brasil hoje - e esse é um dado triste para o Brasil -, a única figura de dimensão nacional sou eu". Quem fala é Lula. Está num jatinho que vai de Macapá a Belém, a cinco dias do segundo turno das eleições de 2002. A cena faz parte de Entreatos, o documentário dos bastidores da campanha petista, dirigido por João Moreira Salles e lançado em 2004.

Sabedoria profunda. Tristeza profunda. E vergonha também profunda.

 
O PODER NEFASTO DA CNBB


De um bom amigo dos dias de Porto Alegre, o Jomar Martins, recebo esta sua entrevista com o advogado André Falleiro Garcia.


P – Em que momento a Igreja Católica resolveu encampar as chamadas ‘‘lutas sociais’’ no Brasil?

André Falleiro Garcia - Até praticamente o final da década de 40, predominava no ambiente religioso brasileiro o catolicismo conservador. A ortodoxia doutrinária era uma característica generalizada que ainda se notava no clero e nas associações religiosas de leigos. A grande controvérsia que houve na Ação Católica, em 1943, serviu como freio para impedir o avanço do esquerdismo. Mas, em 1952, foi fundada a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Teve como primeiro secretário-geral Dom Helder Câmara (falecido em 1999), que era então bispo auxiliar do Rio de Janeiro. Este prelado, de fato, mereceu ser chamado de “Arcebispo Vermelho”. Os anos 50 foram marcados pela intensa fermentação do esquerdismo – no clero e nas associações dirigidas por leigos – promovida pela CNBB e Dom Helder Câmara. De modo que, em 1960, a esquerda católica já estava articulada e pronta para a atuação pública direcionada às ditas “demandas sociais”. Em toda a década de 50, houve acirrada polêmica nos meios católicos. A esquerda católica foi, então, fortemente combatida no plano ideológico. Vale citar a atuação do movimento de leigos ligados ao jornal Catolicismo, dirigidos por Plínio Corrêa de Oliveira. Nesta luta, também se destacaram o bispo de Campos (RJ), Dom Antônio de Castro Mayer, e o de Jacarezinho (RJ), Dom Geraldo de Proença Sigaud. Todos travaram uma calorosa polêmica com os agrorreformistas católicos. Quando estalou a campanha agrorreformista no Brasil, no início dos anos 60, este grupo, por meio dos dois bispos, um líder católico leigo e um economista, lançaram o livro Reforma Agrária – Questão de Consciência. Era o contraponto no mundo católico.

P — Houve um fato marcante, considerado divisor de águas?

R – Sim. Há um fato simbólico que pode ser considerado como o início da atuação pública da esquerda católica. De forma bombástica, em 5 de dezembro de 1960, numa transmissão coletiva, as TVs Tupi, Paulista e Record entraram em cadeia para levar a São Paulo e ao Brasil um pronunciamento da mais alta importância, favorável à reforma agrária a ser aplicada no Estado. Participaram e fizeram uso da palavra Dom Helder Câmara, secretário-geral da CNBB, e mais seis bispos. Sob os holofotes da mídia televisiva, Dom Helder leu trechos da Declaração dos Arcebispos e Bispos presentes à Reunião das Províncias Eclesiásticas de São Paulo. De fato, todo o episcopado paulista tinha acabado de se reunir, sob a presidência do cardeal-arcebispo de São Paulo, Dom Carlos Carmelo de Vasconcelos Motta, e havia estudado o Projeto de Revisão Agrária (Projeto de Lei nº 154/60 e seu Substitutivo). Tal projeto fora proposto pelo governador democrata-cristão do Estado de São Paulo, Carvalho Pinto. Os bispos, nessa Declaração, diziam que se sentiam felizes de poder afirmar que se tratava de um projeto de lei de reforma agrária “inspirado nos princípios da doutrina social da Igreja”. Mencionavam a Carta Pastoral Coletiva dos Cardeais, Arcebispos e Bispos do Brasil, de 1951, em que havia um longo trecho sobre reforma agrária, que começava dizendo: “A Igreja não tem o direito de ser indiferente à reforma agrária”. E também citavam outro pronunciamento de todo o Episcopado do Brasil, feito em 1958, sobre a reforma agrária. A meu ver, foi o espetaculoso pronunciamento destes bispos, em 1960, assistido na TV por milhões de pessoas, que marcou o início da ação pública, em larga escala, da esquerda católica engajada na promoção de uma vasta campanha agrorreformista.

P - O Partido Comunista Brasileiro é o pioneiro da reivindicação da reforma agrária no Brasil, desde os anos 20 do século passado. O que levou a CNBB, desde a sua fundação, a abraçar esta causa revolucionária comunista?

R - Seria forçado e não corresponderia à realidade brasileira afirmar, simplesmente, que o Partido Comunista (PC) se infiltrou na Igreja Católica e a dominou. Afinal, o PC brasileiro sempre foi um anão, uma coisa liliputiana mesmo. O que se passou, de certo modo, foi o contrário. A força propulsora da esquerda é que proveio do setor católico. Foi significativa a participação católica para a formação do Partido dos Trabalhadores (PT) e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). As Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), nos anos 80, possuíam oitenta mil núcleos e arregimentavam um milhão e meio de ativistas. É a origem de incontáveis ativistas que se engajaram nas “causas sociais”. A Igreja Católica entrou na luta revolucionária, porque houve uma infiltração do esquerdismo em seu interior. O clero esquerdista reuniu leigos e organizou movimentos sociais, os quais, por sua vez, promoveram a agitação social. E essa infiltração ideológica não pode ser atribuída exclusivamente ao PC. Na realidade, desde os anos 50, seminaristas e sacerdotes novos iam à Europa fazer cursos e completar sua formação religiosa. Em geral, voltavam convencidos das idéias esquerdistas. E aqui começavam a colocar em prática os novos métodos de ação apreendidos no exterior. Não se pode desconsiderar, entretanto, a possibilidade de certa infiltração propriamente comunista na Igreja.

P – O apoio da CNBB a invasões e depredações a propriedades privadas não é imoral, considerando que a Igreja se assenta sobre valores elevados de conduta?

R – Estes atos são imorais por dupla razão. Primeiro, por violar dois mandamentos sagrados do Decálogo: não roubarás; não cobiçarás as coisas alheias. E, em segundo, por violar frontalmente o instituto da propriedade privada, que o estado democrático de direito protege, conforme previsão constitucional. Assim, é moralmente condenável o ataque a propriedades privadas, feito por grupos do MST e seus congêneres. O apoio que recebem da Igreja, por meio da Comissão Pastoral da Terra (CPT), não legitima moralmente estas invasões. É imoral toda a contribuição que a CPT proporciona para o esbulho das propriedades dos particulares. Como, aliás, também é imoral a desapropriação confiscatória, feita pelo Estado brasileiro, a preço vil e com finalidades socialistas. Sob o ponto de vista da moral cristã, conforme a tradicional doutrina social católica, todos os que executam ou apóiam ações contra os legítimos proprietários cometem pecado mortal. Os que se apossam de terras por esse meio imoral não podem ser absolvidos em confissão, se não as restituem aos seus legítimos donos.

P – A Igreja assume, então, um esforço deliberado de minar o instituto da propriedade privada?

R – Eu não diria que toda a Igreja trilha este caminho. Mas é verdade que os maus pastores estão minando o direito de propriedade em nosso país. E isso é muito grave. Não fossem estes, os ditos “movimentos sociais” (MST, Quilombolas, Indigenistas, Ambientalistas) perderiam o melhor do seu dinamismo. Para compreender o que acontece no interior da Igreja, seria preciso levar em conta que ela passa por um processo de autodemolição, conforme alertou o Papa Paulo VI já nos anos 70. Esta crise penetrou nas estruturas da Igreja Católica em todas as nações onde está instalada. Talvez o maior fator de promoção da autodemolição no Brasil seja a CNBB. Cada bispo, em sua diocese, presta contas e está diretamente ligado ao chefe da Igreja, o Papa. Este sistema se revelou o mais apropriado ao longo de quase dois mil anos. Mas, nos anos 50, houve uma mudança na gestão que afetou os pilares da hierarquia: foram criadas as Conferências Episcopais, órgãos colegiados representativos da classe. A CNBB, criada em 1952, não faz parte da hierarquia da Igreja, mas age como se fosse a chefia de fato da Igreja Católica no Brasil. Com isso, usurpa a autoridade dos bispos e exerce sobre eles um férreo controle de opinião e de ação. Ademais, a CNBB -- por meio de seu órgão que cuida da questão indígena (o Conselho Indigenista Missionário-CIMI) e do que trata da questão agrária (a CPT) -- faz o papel de acelerador da revolução socialista no Brasil. Logo, a Igreja Católica, numa primeira leitura, não está toda ela comprometida com estes crimes. Na agitação agrária, estão engajados a CNBB, com seus braços de agitação social, e alguns bispos marcadamente esquerdistas

P - O sr. pode citar um exemplo de como age a CNBB?

R – Exemplos não faltam. Na questão indígena, o aborto e o infanticídio são promovidos nas tribos sob o olhar complacente dos agentes do CIMI. Mas vamos pegar o caso recente da menina de Alagoinha (PE), que foi estuprada pelo padrasto e engravidou de gêmeos. O arcebispo de Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, anunciou publicamente que o Código Canônico previa a pena de excomunhão automática para todos os envolvidos. Excetuou, apenas, a criança de nove anos, por imaturidade. Em seguida, manifestou-se o cardeal Giovanni Battista Re, titular da Congregação para os Bispos do Vaticano e presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina, que considerou como “justa a excomunhão de quem provoca um aborto”. Até aí, nota-se a coragem do arcebispo de Recife, apoiada pelo cardeal romano, que também fez a defesa da cultura da vida. Não bastasse a estrondosa campanha midiática que sobreveio logo em seguida contra Dom José Sobrinho, também a CNBB encarregou-se de demolir o posicionamento dele. Por meio de seu secretário-geral, bispo Dom Dimas Lara Barbosa, a CNBB desautorizou a iniciativa do arcebispo de Recife e Olinda de anunciar a excomunhão. A CNBB atuou como se fosse a chefia da Igreja Católica no Brasil. Assim, desacreditou D. José Sobrinho. Em última análise, prevaleceu a impunidade: não ficam excomungados os envolvidos no aborto dos gêmeos. E, em mais um lance autodemolidor, entrou no jogo outro bispo do Vaticano, Dom Rino Fisichella, presidente da Pontifícia Academia para a Vida. Este, ao invés de condenar a cultura da morte, como seria sua obrigação, também desautorizou e desacreditou Dom José Sobrinho. Assim, acredito que a extinção deste órgão representativo eclesiástico seria uma medida oportuna e salutar, indispensável para que a Igreja Católica vença a grave crise que a aflige.

P - O Vaticano tem conhecimento da situação? Apóia este viés revolucionário?

R - O Vaticano tem conhecimento da situação. Chegou a tomar uma atitude, embora tímida, há alguns anos, em relação ao ex-frei Leonardo Boff. Houve também pronunciamentos de João Paulo II a este respeito em Puebla (México). Mas não há, desde o Concílio Vaticano II (outubro de 1962 a dezembro de 1965), infelizmente, uma voz clara e unívoca na Igreja, a respeito da questão socialista e comunista, como nos tempos de Leão XIII, S. Pio X, Pio XI e Pio XII. No plano doutrinário, houve a rejeição do marxismo na encíclica Centesimus Annus, de João Paulo II, editada em maio de 1991. Contudo, no plano prático, nota-se a contradição e a incoerência. Por exemplo: em 1974, o cardeal Agostino Casaroli, então Secretário de Estado do Vaticano, numa visita a Cuba, fez um pronunciamento que levava os católicos a não mais se oporem ao comunismo. Mais recentemente, já no pontificado de Bento XVI, o atual Secretário de Estado, cardeal Tarcísio Bertone, também numa visita a Cuba, emitiu declarações semelhantes às que fez o cardeal Casaroli. O que se observa é que dentro da Igreja Católica há um entrechoque de opiniões. Estas divergências envolvem tanto prelados quanto leigos. Os que discordam da política eclesial de aproximação e favorecimento do socialismo e do comunismo podem, de modo legítimo, se afirmar em estado de resistência.