¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, dezembro 24, 2009
 
NATAL DIVINO EM SKOPJE,
GRAÇAS AO CONSTANTINO



Faz tempo, pelo menos umas três décadas. (Que horror, como passam rápido as décadas!) Já falei de uma amiga peoniana, encontrada às margens do Sena, a quem dediquei minha tese. Em verdade era iugoslava, naqueles tempos em que existia a Iugoslávia. Macedônia, mais precisamente. Eu a chamava de peoniene chérie, um pouco em homenagem a Alexandre, que nascera naquelas terras e era tão cabeça-dura como ela.

Tivemos grandes desacertos em nossos primeiros encontros. É que naquelas plagas, como em boa parte do universo eslavo, quando alguém quer dizer sim balança a cabeça horizontalmente. E quando quer dizer não, a balança na vertical. Eu propunha coisas que muito agradariam a nós dois e lá vinha aquele gesto hostil de negativa. Desde o convite para uma ópera até propostas mais singelas, sem maiores galas. Até que este bruto ocidental chegasse ao entendimento, passaram-se uma ou duas semanas.

Era comunista e líder das juventudes comunistas macedônias. Diante de tantas negativas – enfim, o que a mim pareciam negativas – disse-lhe ao telefone: estás me parecendo católica. Ela respondeu de bate-pronto: então vem cá, vou te mostrar quem é católica. Fui. Mostrou. Decididamente, não era.

Estudávamos literatura na Sorbonne Nouvelle. Terminados seus dias de Paris, ela voltou pra Macedônia. Uma vez lá, me convidou para passar o Natal chez elle. Fui correndo. Desci pela Itália e atravessei o Adriático, rumo à peoniana adorada. No barco de Bari a Dubrovnik, tive uma percepção do que me esperava. Conversava com uma dálmata, ela não entendia o que fazia um brasileiro ir até a Macedônia. É que tenho uma amiga em Skopje. Ma – disse a dálmata – sono tutti teste dure. Bom, disso eu sabia, se sabia! No 24 de dezembro, lá estava eu, batendo à sua porta. Ela, perplexa. Mas... não te convidei para o Natal? Exato. Estou aqui. Mas ainda não é Natal. Bom, mas mais algumas horas e será.

Não seria. Natal lá é no seis de janeiro. Enfim, foi um de meus melhores natais. Emendei o Natal ocidental com o oriental. Doze dias comemorando com gosto o nascimento do judeu aquele. In dubio, pro nós. Só alguns anos mais tarde, quando comecei a interessar-me pelos estudos de História, fiquei sabendo que aqueles dias tão lindos, dos quais até hoje não esqueço, me foram proporcionados por ... Constantino, imperador há 17 séculos atrás, que passou para a História como o primeiro imperador romano cristão.

A comemoração do nascimento de Cristo no 25 de dezembro se celebrou pela primeira vez em 336, em Roma, em pleno império de Constantino, que morreu no ano seguinte, para cobrir a festa pagã conhecida como natalis solis invicti, celebrada no solstício de inverno. Como celebrados foram na mesma data os nascimentos do deus hindu Agni, do persa Mitra e do egípcio Osiris. O 25 de dezembro, em Roma, era a festa de Mitra, o deus persa da luz, cultuado por Diocleciano, que inspirou a gregos e troianos a adoração de Febo e Apolo. O leitor já deve ter visto em gravuras aquela auréola que cerca a cabeça de Cristo, Maria e dos santos. Aquilo nada mais é senão o deus sol, sobreposto pelas novas deidades. Os antigos entendiam de iconografia.

A lenda da conversão de Constantino é bastante conhecida. Duas visões o teriam convencido de que Cristo lhe daria a vitória se se convertesse à nova religião. Na primeira delas, às vésperas da batalha Saxa Rubia, em outubro de 312, ele teria visto no céu, em meio às nuvens, a imagem da cruz e uma voz que lhe disse: In hoc signo vinces - com este sinal vencerás. De fato, venceu a batalha, mas não a guerra. Esta foi vencida dias depois. Antes de atravessar a ponte Milvio sobre o rio Tibre, para poder chegar ao centro de Roma, ouviu de novo a voz. Que lhe ordenou remover a águia imperial dos escudos romanos, colocando um outro símbolo no seu lugar. O imperador passou então a afixar nos escudos as letras X e P, que eram as iniciais gregas de Cristo. Seus inimigos foram derrotados e o líder destes, Maxêncio, pereceu afogado no Tibre.

Pura potoca, é claro, já que vozes vindas do céu não vencem batalhas. Recurso de sacerdote para convencer o populacho. A verdade é que, apesar de ter sido o primeiro imperador cristão, Constantino não levava muita fé na nova religião. Seus propósitos eram políticos: queria unificar o império, dividido pela crença em vários deuses. Agradou-lhe aquele novo deus que surgia, que não pertencia a nenhuma nação e ao mesmo tempo pretendia ser o deus de todas. Para ter um império grande, precisava de um deus grande. Maior que todos, de preferência. Apesar de ter assumido a nova seita como religião oficial, não assumiu a intolerância típica dos cristãos, que pretendiam que seu deus fosse o único.

Segundo os historiadores, Constantino, além de construir basílicas cristãs, mandou erigir templos pagãos. Além de escutar os augúrios do clero cristão, escutou os dos áuspices e hierofantes, presidiu o concílio de Nicéia e venerou a estátua da deusa Fortuna. É por pressão sua que se cria nessa época o dogma da Santíssima Trindade. Ao ver que o cristianismo estava resvalando rumo ao politeísmo, com a história do Pai, Filho e Espírito Santo, o imperador manipulou as discordâncias teológicas existentes entre Arius (Cristo é um ser criado) e Atanásio (Cristo é igual e eterno como seu Pai) e coagiu os bispos do império a assumir a doutrina de Atanásio. “Adoramos um só Deus em Trindade… O Pai é Deus, o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus; e contudo eles não são três deuses, mas um só Deus”. O que deve ter dado origem, séculos depois, àquele aparelho de som da Gradiente, o três-em-um. O aparelho da Gradiente sumiu do mercado. O três-em-um do Atanásio continua tendo muita demanda. Mas isto já é outra história.

A intriga ainda vai longe. Arius foi condenado e exilado. Dois dos bispos que votaram a favor de Arius também foram exilados. Os escritos de Arius foram destruídos. Mais adiante, Constantino reabilitou os arianistas e denunciou o grupo de Atanásio. Arius voltou do exílio e Atanásio foi banido. Humores da época.

Em suma, todo o poder de Roma deriva de um imperador que, para fortalecer seu império, assumiu o cristianismo como religião de Estado. Embora abomine a Igreja e papistas, tenho de admitir que Constantino, sem querer, me proporcionou o mais prolongado e prazeroso Natal de meus dias.