¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, dezembro 31, 2009
 
O autor esquecido:
AMBROSE BIERCE



"Se elegemos viver entre bárbaros devemos suportar os bárbaros ruídos de suas bárbaras superstições, mas o imbecil que se senta e espera até a meia-noite para tocar um sino ou disparar um fuzil porque a terra chegou a um ponto determinado de sua órbita, deve ser considerado um inimigo da raça..."

 
FOSSE EU MILIONÁRIO...


Se há algo em que nunca apostei foi em loteria. Quer dizer, há séculos atrás, talvez tenha comprado algum décimo de bilhete, mais para ajudar o vendedor do que pensando em ganhar. Os jornais me dizem que o prêmio acumulado da Mega Sena especial da virada já está em R$ 130 milhões e pode chegar a R$ 140 milhões, segundo a Caixa Econômica Federal. O prêmio é recorde da Caixa em número de apostadores, 60 milhões, e em número de apostas, cerca de 180 milhões. É também o maior prêmio pago pelas loterias da Caixa até hoje, superando os R$ 64,9 milhões (que hoje seriam R$ 115 milhões) pagos em outubro de 1999.

Claro que isso suscita esperanças, esta virtude que mantém em pé boa parte dos brasileiros. E não só dos brasileiros. Na Espanha, por exemplo, Natal é o dia del gordo. El gordo é o prêmio maior da loteria espanhola. A cada fim de ano, há uma histeria nas casas lotéricas.

Estou fora disso tudo. Nem aposto. Ganhar o prêmio total para mim seria incomodação. Para começar, não poderia mais freqüentar meus botecos. Seria prisioneiro de meus seguranças. Teria ainda de providenciar segurança para meus parentes e pessoas que quero bem. Não, muito obrigado. Melhor ser remediado e poder andar pelas ruas sem maiores temores.

Com esse valor, dizem ainda os jornais, o premiado pode comprar 5.600 carros populares ou um condomínio de padrão médio com 700 apartamentos. Quanto a carros, eu não compraria nenhum, nem popular nem de luxo. Apartamentos, sim, mas não 700. Apenas três ou quatro.

Analistas consultados pelo UOL Economia recomendam investir o dinheiro. “A primeira coisa que deve ser feita é estudar. Contratar especialistas em vários ramos e estudar todas as possibilidades de investimento”, recomenda a economista Virene Matesco. Na opinião dela, pelo menos três meses são necessários para calcular a rentabilidade dos investimentos e planejá-lo. “O impulso pode atrapalhar o investidor”, diz.

Só o que faltava eu contratar uma equipe de economistas e estudar durante três meses o que fazer com a grana. A economista Myrian Lund sugere procurar um private bank, serviço bancário especializado para clientes que detêm quantias milionárias para investir. Ela informa que, geralmente, os gerentes de contas do private bank são especialistas em investimento. “Da mesma forma que, quando você fica doente, você deve procurar um médico para orientar com a medicação, quando você precisa investir, o mais indicado é procurar um profissional”.

Eu, que já me atrapalho com meus bancos mixurucas, não me imagino discutindo com gerentes de um banco para milionários. Aliás, ontem tive uma sensação de alívio extraordinária. Fechei uma de minhas contas. Saí leve do banco. São quilos de extratos que deixarei de receber por ano. Gostei tanto que acho que vou fechar outra.

Não aposto na sorte. Mas, se apostasse e fosse o infeliz contemplado, não consultaria especialista algum. Já falei disso. Compraria um apartamento em Paris, outro em Madri. Quem sabe uma casinha em Santorini e outra em alguma das ilhas Canárias. Mais um apartamento para a Primeira-Namorada, onde ela escolhesse. Desde que não fosse Oriente, países muçulmanos ou ex-socialistas, bem entendido. Nesses países, talvez até reservasse um pied-à-terre para algum de meus desafetos. Não me desagradaria oferecer moradia a algum deles em Cuba ou na Coréia do Norte. Desde que se comprometesse a ficar por lá pelo menos uns cinco anos. Ah! E mais uma casa confortável para minha fiel assessora de assuntos domésticos.

Para que tantos imóveis? - se perguntará o leitor. Bom, não seriam exatamente para mim. Estariam à disposição daqueles amigos e amigas que estimo e não têm condições de viajar. Dois meses em Paris para aquela amiga que sonha com Paris e nunca conseguiu chegar a Paris. Mais dois outros para apaixonados pela Espanha que nunca degustaram os encantos de Madri. Dois meses em Santorini para uma amiga que está estressada com uma tese sobre Erico Verissimo. Aquele porre de branco e azul talvez a induzisse a abandonar essa bobagem de doutorado em literatura. Mais outros tantos em Tenerife ou Lanzarote, para quem quiser conhecer algo insólito da Espanha. Não faria concurso. Meu critério seria presentear pessoas que me são próximas.

Reservaria talvez um décimo do prêmio – ou mesmo um quinto - para visitar meus hóspedes e passar algum tempo lá fora. Se algo sobrasse, financiaria estudos de jovens no Exterior, desde que encontrasse quem julgasse merecê-los. Pessoa alguma precisa de 140 milhões para viver bem.

Mas não se entusiasmem meus leitores. Não aposto em loterias. Prefiro viver de meu presente.

quarta-feira, dezembro 30, 2009
 
A ÁRDUA BUSCA
DE UM CELULAR



Não sou exatamente um homem contemporâneo. Há uma pilha de gadgets em nossos dias dos quais nem tenho conhecimento. Sem ir muito longe, ainda não me adaptei muito bem ao celular. É uma cultura que me desagrada. Às vezes vejo três ou quatro pessoas reunidas em uma mesa de bar, cada uma telefonando para uma outra que está longe dali. Ora, se é para falar com terceiros, por que se reunir? De minha parte, quando estou conversando com alguém, o que mais espero é que ninguém me interrompa.

Isso de celular em público é, a meu ver, nouveau-richisme de brasileiro. Nestes meus dias na Espanha, vi raros celulares na rua. Em bares, não lembro de ter visto nenhum. Em Paris – e a isto chamo de civilização – há restaurantes em que o celular é proibido.

Outra coisa que não entendo é porque certas pessoas precisam caminhar para falar ao celular. Mal o telefone chama, saem a caminhar pela calçada. Confesso que não entendo.

O aparelhinho entrou em minha vida por acaso. A Baixinha, por necessidades profissionais, comprou – acho que antes de 2000 – um Motorola Star TAC. Com sua partida, eu o herdei. Não iria jogá-lo fora. Mesmo assim, pouco o uso. Em geral, só o uso aos sábados e domingos, das 13h às 15h, quando estou em meu boteco, limpando a serpentina antes de começar os trabalhos da tarde. Estou em estado randômico, tentando ver com quem almoço. Combinado o almoço, desligo o celular. De vez em quando, fora de casa, eu o uso para chamar alguém. Não gosto de ser chamado em meu boteco. Só três pessoas têm meu número. Mas sabem que é praticamente inútil chamar-me, a não ser aos sábados e domingos, das 13h às 15h.

Meu Motorola terá mais de década. De tanto ver amigos com objetos de um design sofisticado, pensei atualizar-me um pouco. Meu aparelho, apesar de ser o must em seus dias, hoje tem um desenho jurássico. E mal cabe no bolso, este é o problema. Vou comprar um aparelhinho fininho, pensei, elegante, e que tenha as funções básicas de enviar e receber mensagens. Admiti até a idéia de uma câmera digital. Às vezes vivemos situações que bem merecem uma foto e estamos sem a máquina. Foto implica um chip e um cabo USB. Vá lá! Mas não pretendia nada mais que isso. E saí à cata de um novo celular.

Só encontrei aparelhos providos de Internet, MP3 player, jogos, rádio FM, identificador de chamadas por foto e outros babados. Como se eu precisasse ver a foto de quem me chama para saber de quem se trata. Por outro lado, deve fazer uns trinta ou mais anos que não ouço rádio. Tenho rádio em casa em meu DVD e jamais o acionei. MP3 não me interessa. Quando vou a um bar não é para ouvir música, mas para conversar. Ou ler. Me ofereciam ainda formatos de áudio e de vídeo, mais mil posições de memória. Só o que faltava eu ver vídeos na telinha de um celular. Quanto às posições de memória, me dou por contente se tenho dez amigos. Para que quero espaço para mil telefones?

Eu queria um aparelhinho só pra falar e, quem sabe, fotografar – digo aos balconistas. Ah, isso é difícil – me respondem. Se fotografa, tem Internet. Pelo jeito, estamos vivendo um socialismo às avessas. No mundo socialista, só existiam produtos de baixa qualidade – quando existiam. Nestes nossos dias, pelo menos no que a celulares diz respeito, só encontramos o haut de game.

Me resignei aos novos tempos. Compro o mais baratinho que achar, decidi. Se tiver algumas funções que dispenso, paciência. Que sobre e não falte. Fui então a uma loja da Claro. Filas antes de chegar ao balcão. Senha para entrar na fila. Topei. Tinha a tarde pela frente e queria comprar um celular. Nos balcões, casaizinhos felizes, que saíam com um pacotinho com um ar de quem havia finalmente chegado ao paraíso. Curiosamente, parece que as pessoas só compram celulares aos pares. Só havia casais na loja. Ou mãe e filha. Ou pai e filho. O único cliente destoante era eu, que pretendia comprar um celular sozinho.

Esperei meia hora. Comecei a considerar que era um desaforo, em um país que se pretende capitalista, esperar meia hora para comprar algo. Logo eu, que não entro em fila nem para comer. Sem falar que estava me nivelando àquela gente toda, desesperada para comprar algo no período natalino. Em todo caso, me concedi mais quinze minutos. Sem maiores perspectivas de ser atendido nesse prazo.

Neste quarto de hora, refleti: quando chegar ao balcão, o vendedor vai me propor um celular com dezenas de funções. Funções que dispenso. Vamos discutir uns vinte ou trinta minutos e vou acabar comprando um celular que vai me deixar com um laivo de desagrado. Vou pagar caro por isso. Vou sair daqui me julgando um idiota.

Foi quando lembrei de meu mastodôntico Star TAC. Quer saber de uma coisa? – disse eu a mim mesmo. O que eu quero tenho lá em casa. Fotografar a parte, era exatamente o que eu buscava. Joguei minha senha no lixo e voltei pra casa em paz comigo mesmo.

terça-feira, dezembro 29, 2009
 
ALGEMAS, A MELHOR SOLUÇÃO


Falava da decadência dos cruzeiros. A verdade é que, a cada dia que passa, está se tornando mais desconfortável viajar. Aeroportos como Heathrow e Barajas viraram cidades imensas. Os check-ins são centralizados e você jamais é enviado diretamente ao terminal de partida. Quatro ou mais horas já está se tornando o tempo normal entre sua chegada ao aeroporto e a entrada no avião, dependendo de seu destino.

Em boa parte, graças ao bin Laden. As precauções de segurança se tornaram excessivas e mesmo ridículas. Já me prometi jamais visitar país em que fosse preciso tirar os sapatos para entrar na área de embarque. Era coisa dos Estados Unidos e não tenho interesse algum em viajar para lá. Agora, na Espanha, com este meu perfil de terrorista suicida, tive de tirar os sapatos. E não havia como voltar. Não se atravessa o Atlântico de trem.

Levava um netbook na bolsa. Tive de tirá-lo da bolsa de mão. Pelo jeito, aquelas sofisticadas máquinas de detecção não conseguem identificar um netbook, se não estiver fora da bolsa. Tive de tirar também o cinto. Como havia perdido quatro quilos na viagem, minhas calças estavam frouxas. E lá fui eu rumo ao controle, de pés no chão, uma bandeja nas mãos com minhas tralhas e as calças quase caindo. Parece que a maquininha tampouco consegue distinguir entre uma fivela de cinto e uma bomba.

Isso sem falar de uma revista física após passar pelo controle. O funcionário nem se digna a falar. Com um gesto imperativo, o ordena a levantar as mãos ao alto, como a qualquer bandido, e passa a apalpá-lo. Para não encontrar nada, é claro. Afinal, as máquinas detectam até moedinhas de um euro.

Há uns três anos, viajando com duas amigas, vivi um impasse em Barcelona. Uma delas, chegada a um uísque, levava na bagagem de mão um Chivas pela metade. Não pode, disse o guardinha. Pelo jeito, não conseguia distinguir, a olho nu, um uísque de uma TNT. Ah, essa ele não ia levar. Peguei a garrafa, empinei-a com gosto e a passei a minhas amigas. A esvaziamos diante do guardinha, em quatro ou cinco goles.

O que me evocou um antigo filme, Meu ódio será tua herança, do Peckinpah. Em uma de suas cenas, os sete membros da quadrilha, a cavalo, empunham uma garrafa de uísque, que vai sendo sorvida em longos goles. Um deles, um mexicano, espera inquieto por sua vez. A garrafa vai passando de mão e mão e o conteúdo vai sumindo. Quando chega ao mexicano, não sobra sequer uma gota. Quando esvaziamos nosso Chivas, passei a garrafa vazia ao mexicano da ocasião. Agora você pode ficar com a garrafa.

Acabo de ler que, agora, no Brasil, você é revistado duas vezes antes de embarcar para os Estados Unidos. Uma pela Infraero e outra pela empresa de aviação. Mais ainda, você tem de tirar os sapatos no Brasil mesmo.

Precauções bobas, inúteis. Você não pode entrar a bordo com uma tesourinha, porque é considerada arma. E se entrar alguém treinado em artes marciais, sem tesourinha alguma? Não precisa nem ser faixa preta. Estes especialistas matam com as mãos ou com os pés, não precisam de arma alguma. Penso que, mais dia menos dia, os terroristas pensarão no assunto. Talvez até já estejam treinando taekwondo, karate, box tailandês. No fundo, a arrogância ianque, que impõe a todos os continentes precauções que de pouco ou de nada adiantam e só servem para atrapalhar a vida de quem viaja.

A al Qaeda virou franquia. Para qualquer idiota que queira 15 minutos de fama, basta acender um fósforo durante um vôo e depois declarar que é militante da al Qaeda. A al Qaeda não tem interesse algum em desautorizá-lo. Toda e qualquer bobagem serve a seu prestígio. Manter bin Laden vivo – ainda que vivo não esteja – serve tanto aos Estados Unidos como ao terror muçulmano. Para os Estados Unidos, é razão para manter sua política estúpida de segurança em vôos. Para os terroristas, é sempre uma espada pendendo sobre a cabeça do Ocidente.

Está se tornando cada vez mais desconfortável viajar, dizia. Agora, graças a um imbecil como esse tal de Umar Farouk Abdulmutallab, vai ficar ainda pior. Abdulmutallab, como de praxe, se declarou militante da al Qaeda. A imprensa toda caiu no conto do Abdul. No dia seguinte, os principais aeroportos do Ocidente estavam conturbados em função das medidas de segurança. Ora, segundo os serviços de segurança americanos, nada indica que o nigeriano tenha qualquer ligação com a organização terrorista.

Coerentes com sua política de estupidez, os americanos introduziram uma nova diretriz que proíbe aos passageiros de se levantar da cadeira uma hora antes da aterrissagem do avião. Logo na hora de fazer xixi, escovar os dentes, apanhar documentos. Proíbe também levar objetos sobre as pernas. Como se tais precauções pudessem impedir um terrorista de explodir um avião, desde que tenha consigo meios para tanto.

Os demais países do Ocidente, sempre servis aos ianques, certamente adotarão estas medidas inúteis. Até o dia em que dois ou três karatekas, de mãos limpas, façam estragos consideráveis em um vôo. Dia seguinte, os gênios da segurança certamente encontrarão a solução.

Todo passageiro entrará algemado nos aviões.

segunda-feira, dezembro 28, 2009
 
A DECADÊNCIA DOS CRUZEIROS:
NAVEGANDO COM NOSSA SENHORA



Já fiz cinco travessias do Atlântico em navio. Em outros tempos, quando não se falava em cruzeiros. A primeira vez foi em 71, em minha primeira viagem rumo ao anecúmeno. Não tinha prazo algum para chegar na Europa e achava muito sem graça voar apertado numa lata de sardinha. Sem falar que, na época, conforme a condição em que você viajava, a passagem era muito mais barata que uma passagem de avião. Considerando-se ainda que você desfrutava do conforto de um hotel, durante 14 ou 15 dias, com vinho e refeições embutidas no preço. Mais aquelas aventuras da terra de ninguém que é um navio, cidade temporária com umas duas mil pessoas longe de seus lares. Mais o “quente arfar das vibrações marinhas...” A viagem era sempre uma festa cheia de encontros inesperados.

Fiz quatro travessias no Eugenio C e uma no Augustus, hoje desarmados. Eram mais travessias que cruzeiro. Explico. Os navios transportavam pessoas que viajavam, jovens que iam estudar na Europa, imigrantes que voltavam a seus países, gente que tinha de deslocar-se de um continente a outro e podia dar-se ao luxo de navegar durante duas semanas. Havia quem utilizasse a travessia como turismo, mas estes eram raros. O clima no navio não era exatamente de cruzeiro. Em um cruzeiro, normalmente a pessoa sai de um porto e a ele volta. Numa travessia, há pessoas que viajam para não mais voltar. Há uma certa angústia pairando no ar, que torna os viajores mais receptivos ao contato com novas gentes. É viagem com tensões que não existem em um cruzeiro.

Uma vez no navio, a única coisa que você não quer é chegar. A bordo, a rotina é paradisíaca. Café da manhã, piscina, almoço, siesta, piscina, passeio pelo convés, janta e shows noturnos para quem quiser. Naquela época pré-internética, as únicas notícias que se recebia a bordo consistiam em algumas linhas impressas em um boletim de duas ou três páginas. Havia uma seleção do pessoal de bordo: só notícias boas. Nada sobre guerras, massacres, tragédias, quedas da Bolsa. Se o mundo tivesse acabado durante a travessia, você só tomaria conhecimento da catástrofe quando aportasse.

Chegar era sinônimo de problemas, com transporte, hotel, orientação, câmbio. Na época, cada país europeu tinha moeda diferente. Se isto soa como absurdo ao viajante contemporâneo, naqueles dias a primeira providência a se tomar em um porto ou aeroporto era trocar moeda. A moeda padrão era o dólar. Você tinha de trocá-los a cada país e cada troca significava alguma perda. Hoje, você se mune de euros ou travellers – que aliás já são obsoletos – ou de cartões de crédito. Mas não era disto que pretendia falar.

Viajar em primeira classe custava os olhos da cara. Mas você podia viajar em segunda. Se pretendesse um camarote individual, a viagem também sairia cara. A dois, já melhorava. Com quatro leitos, melhor ainda. Quanto mais alta a ponte, mais caro. Cabine externa custava mais, é claro. Mas em cabine você entra para dormir, não para contemplar o mar. Regra daqueles dias: descer da primeira classe para a segunda você podia. Da segunda para a primeira era proibido. Há muito não faço essas travessias, suponho que essa interdição besta não mais exista. Seja como for, tanto um estudante pobre como um milionário podiam viajar no mesmo barco.

Nunca gostei de bailes e shows, nunca entrei nos salões à noite. Procurava-os durante o dia para ler. Num deles encontrei uma sabra muito querida - ora ela estava alguns metros acima de mim, ora o contrário – de quem até hoje tenho saudades. Lembro também com carinho de uma amiga francesa, que não entendia as dimensões do Brasil. Entramos na costa brasileira perto de Recife e o navio demorava a chegar ao Rio. Ce pays ne finit jamais – se espantava a francesinha. Desceríamos em Buenos Aires e ainda tínhamos muita água sob a quilha.

Sempre procurei os desgarrados da viagem para conversar no convés durante a madrugada e fiz grandes amizades nessas travessias. Em função de um desses amigos, o poeta canarino Chano Sosa, acabei conhecendo as ilhas Canárias. Havia lugar para todo mundo, tanto para quem gostava das brincadeiras bobas de salão como para quem desejava encontrar interlocutores inteligentes. Um navio é muito grande.

Atualmente são bem maiores. Na época, eram raros na costa brasileira. Hoje, nos oferecem viagens quase todas as semanas. Aumentou também a clientela, agora estão ao alcance até da classe D. Com a invasão da brasileirada, as travessias já não são travessias. São cruzeiros. Reúnem basicamente turistas. Gente que vai e volta ao mesmo porto. Este tipo de viagem para mim perdeu a graça. Primeiro, porque não me sinto viajando quando ouço em torno a mim minha própria língua. Segundo, porque tais cruzeiros são destinados ao turismo em massa, isto é, atraem a mais medíocre espécie de viajante. Terceiro, porque adaptaram os cruzeiros ao gosto tupiniquim. No dia em que soube que Roberto Carlos cantava todas as noites em um desses barcos, prometi a mim mesmo: esse tipo de viagem nunca mais faço.

Pior ainda: leio na Folha de São Paulo de ontem que católicos estão organizando o 1º Cruzeiro Católico - Navegando com Nossa Senhora, com missa e show com um tal de padre Fábio de Melo. Parece que canta. Deve ser mais indigesto que o tal de Roberto Carlos. A intenção é cruzar os mares de Santos (SP) e Búzios (RJ), com parada no Rio de Janeiro, para "evangelizar por meio do turismo". Por até R$ 2.404, peregrinos embarcam, em fevereiro, para uma viagem de quatro dias no navio Grand Celebration, com capacidade para 1.800 pessoas e 600 tripulantes.

O 1º Cruzeiro Católico terá serviços como cabeleireiro, massagem, jogos, coquetel, internet e shows com o tal de padre, fenômeno da música católica. Bebidas alcoólicas estarão à venda, mas a base da programação será bem comportada, com direito a sessões de oração com a atriz Myrian Rios (não tenho idéia de quem seja), missas, cantos e confissões. E haja confessores. Porque os ares marinhos incitam ao pecado.

Aquela profissão de pobreza, até há pouco corrente entre os católicos, foi pras cucuias. “A viagem busca o lazer, mas com algo a mais. Nada impede que alguém vá a Jerusalém na primeira classe. O que vale é a fé", explica Otacílio de Melo Junior, sócio da CNS Viagens Religiosas e Peregrinações, que organiza o evento com apoio da Arquidiocese de Campinas. "É uma peregrinação. O projeto passou pelo crivo da igreja para a viagem não se banalizar. Vamos levar a fé a outros horizontes. E a igreja será o navio." Com o número de católicos mermando – e o dízimo também – melhor investir em outras áreas do mercado da fé.

É a decadência dos cruzeiros. Você não embarca em um barco. Embarca em um templo. Claro que logo adiante teremos o 1º Cruzeiro Evangélico, quem sabe o 1º Cruzeiro Neopentescostal. Navegando em nome do Senhor!

Desde há muito não freqüento navios que fazem a costa brasileira. Desde que os patrícios, com seus hábitos de classe média, vulgarizaram os cruzeiros. Quando estou com vontade de mar, vou pra Noruega, Alaska, Terra do Fogo, Mediterrâneo. Tudo, em qualquer paralelo ou meridiano, menos qualquer barco que passe aqui por perto.

domingo, dezembro 27, 2009
 
RELIGULOUS


Dois leitores me recomendam um filme-documentário que promete, Religulous, uma combinação das palavras "RELIGion" e "ridicULOUS". Também conhecido como Irreverence (no Brasil, Irreverente), é uma produção de 2008, com o ator e humorista Bill Maher e dirigido por Larry Charles. No filme, Bill Maher viaja a destinos religiosos, entrevista católicos, judeus e muçulmanos, entre outros credos e analisa com humor as diferentes perspectivas sobre a religião.

Pode ser encontrado na livraria Cultura, com legendas em inglês, em http://tinyurl.com/yglzlk9 . Está também disponível em cinco capítulos em
http://video.yahoo.com/watch/5844314/15292769

Dei um passeio na Web e descobri que a TVA o apresenta amanhã, segunda-feira, às 22:45h. Na sexta-feira, 1/jan às 5:15h e no sábado, 2/jan às 4:45h.

 
DEPUTADO CATÓLICO
QUER DECIDIR HORA
DE NOSSA MORTE



Já que o clima é natalino, adelante! Há uns dois ou três anos escrevi que jornalista não pode ser católico. Certas cândidas alminhas ficaram chocadas. Ora, há jornalistas que conhecem bastante o cristianismo, sabem o que é um dogma e têm ciência de todos os demais dogmas, conhecem o magistério da Igreja e a ele obedecem. São raros, mas existem. Este crente não pode ser jornalista. Católico sendo, terá de crer firmemente nos dogmas da virgindade de Maria, da ascensão de Maria aos Céus, na divindade do Cristo, na Santíssima Trindade, na transubstanciação da carne e outros menos prestigiosos. Obviamente, não podemos conferir credibilidade alguma a quem acredita em tais potocas.

Fui adiante. Manifestei minhas restrições a médicos católicos. Que são muitas, mas vou ater-me a uma ou duas. Claro que se eu precisar de um cirurgião, não vou me perguntar por sua fé, mas por sua competência. Mas em tratamentos continuados ou em casos extremos, o catolicismo vai interferir. Se eu optar por eutanásia - seja para mim, seja por vontade de pessoa próxima – o médico, se for católico, por coerência terá de se recusar à minha opção. Já aconteceu em minha família e o resultado foi desastroso, uma pessoa vivendo quatro anos como vegetal. Se não tiver a suprema ventura de morrer em acidente rápido, confesso que não quero esse tipo de médico perto de meu leito no hospital.

Avanço agora mais um pouco. Penso que deputado não pode ser católico. Y a las pruebas me remito.

O problema dos católicos é aquela intolerância de todo crente que julga seu deus ser o único. Foi o que chocou os romanos. Em um império onde todos os deuses eram bem-vindos, surge uma seita de fanáticos que nega todos os deuses e afirma que só o seu existe. Isto tem suas origens no judaísmo. Mas Jeová era o deus de Israel e exercia seu poder apenas sobre os seus. As interdições judias diziam respeito apenas aos judeus. Não queriam impô-las ao resto do mundo. Os deuses eram deuses de nações. Havia os deuses gregos, os romanos, os egípcios, os persas. O que os romanos não entendiam era aquele novo deus que surgia, que não pertencia a nação nenhuma e se pretendia deus de todas. A intolerância cristã era herança do judaísmo que, embora não se pretendesse religião universal, não admitia cisões. Moisés mandou degolar três mil dos seus só porque passaram a cultuar outro deus que não Jeová.

Esta discussão vai longe, tento resumir. Uma vez no poder, os cristãos impuseram sua religião como lei. O auge desta pretensão surge no século XII, quando a Igreja de Roma institui a Inquisição para perseguir os cátaros de Albi. Quem não aceitasse a ética ou dogmas católicos ia para a fogueira, não sem antes passar pela tortura. A Inquisição perdurou até 1834, na Espanha. O zelo da Igreja foi tamanho que chegou a queimar uma menina que mais tarde canonizou como santa.

Deputado não pode ser católico, dizia. Leio na Folha de São Paulo artigo do deputado federal Miguel Martini, membro da Renovação Carismática Católica, da bancada católica no Congresso. Afirma o deputado: “Legislar sobre a ortotanásia - que é o decorrer natural do processo de morte, sem intervenção de tratamento artificial que prolongue a vida vegetativa do paciente - pode abrir brechas para a aprovação da eutanásia no país. Por essa razão, somos contra uma lei a respeito desse tema”.

Martini cita o Código Canônico (nº 65): "Não se deve privar o paciente da consciência de si mesmo, sem motivo grave. Quando se aproxima a morte, as pessoas devem estar em condições de poder satisfazer as suas obrigações morais e familiares e devem sobretudo poder preparar-se com plena consciência para o encontro definitivo com Deus".

Ora, se o deputado, católico sendo, é contra a eutanásia, isto é problema que concerne apenas a ele e aos demais católicos. Isso de encontrar-se com deus também só diz respeito a crentes. Que o deputado seja contra a prática de eutanásia entre os de sua grei, entendo perfeitamente. Mas que não pretenda estender as exigências de sua fé a todos os cidadãos do país. Daí minhas restrições aos médicos católicos. Sou dono de minha vida. Se por qualquer razão quiser terminar minha vida amanhã, acabo com ela e fim de papo. Ninguém tem nada a ver com isso. Bem entendido, não tenho intenção alguma de terminar meus dias amanhã. O bom deus dos ateus tem sido generoso comigo e pretendo extrair da existência até a última gota.

Mas do futuro nada sabemos. Pode ser que logo adiante, em função de alguma doença incapacitante, eu prefira terminar mais cedo meus dias. É direito meu, ora bolas! Aí ocorrem dois momentos. Há um primeiro, em que tenho autonomia suficiente para decidir partir. Absurdo ser impedido por uma lei, só porque um deputado católico não aceita a eutanásia. O segundo momento é o pior, aquele em que o paciente sequer tem condições de decidir se quer morrer ou não. Dependerá então da decisão de seus familiares. Considero um gesto de caridade deixar morrer quem só consegue vegetar.

Enquanto estiver lúcido, salvo acidente ou doença letal, a hora de minha morte sou eu quem decido. Não admito que lei alguma me proíba de partir, se é meu desejo partir. E por essas razões considero que católicos devem ser mantidos longe do Legislativo.

Não só católicos, mas todo fanático que se pretenda dono da verdade.

 
SOBRE VIRGENS GRÁVIDAS


De Alex, recebo:

Olá Janer,

Como sempre, tem sido prazeroso, instigante e invejável (no sentido mesquinho até) lê-lo. "Invejo" sua viagem à Espanha e o natal divino em Skopje. E é inegável! A experiência máxima talvez seja uma mulher mostrar o quão católica ela é!

Acredite, sei muito o que é passear pelo Velho Mundo. E, claro, não pelo modo mais comum atualmente, as "15 capitais em 7 dias", mas sim tentando viver como um deles, utilizando-se dos serviços públicos, comendo onde eles comem, sentindo as dificuldades que eles sentem.

Mas falar das benesses e mazelas da Europa não é meu objetivo hoje. Gostaria de parabenizá-lo pela série de artigos "os deuses precursores". Quando descobri a questão mitológica de Jesus, há mais ou menos um ano, perguntei-me por que não há um barulho maior sobre isso. Percebi então que dizer que os fatos relevantes da vida de Jesus são um minestrone de fábulas mitológicas envolvendo deuses das culturas vizinhas é uma blasfêmia maior que duvidar publicamente da existência de Deus.

Gostaria também de fazer um pequeno complemento à serie de artigos. Curiosamente, a questão da semelhança da vida de Jesus com mitologia helênica (entre outras) é uma pedra no sapato do cristianismo desde... sempre.

Justino Mártir foi um dos primeiros defensores da teologia cristã, já no séc. II. No capítulo 21 de sua Primeira Apologia, endereçada ao Imperador Titus e ao seu filho Verissimus, Justino diz: "E quando dizemos também que a Palavra, que é o primogênito de Deus, foi concebido sem união sexual, e que Ele, Jesus Cristo, nosso Mestre, foi crucificado e morreu, e ressuscitou, e subiu aos céus, não propomos nada diferente do que vocês já acreditam a respeito daqueles a quem vocês estimam como sendo os filhos de Júpiter."

Posteriormente, Justino atribui tal coincidência à ação deliberada do demônio, que interferiu para que os mitos de outras culturas fossem semelhantes aos fatos verdadeiros da vida de Jesus. Os escritos de Justino estão disponíveis em http://earlychristianwritings.com/justin.html

Abraços,

Alex


Pois Alex, a denúncia é antiga. Parece que foi esquecida. Os não-cristãos da época já acusavam o cristianismo de plagiar os deuses pagãos. Trifón observou que o mistério da Encarnação, segundo o qual Maria ficara grávida do Espírito Santo sem deixar de ser virgem era similar ao de Dánae, a qual Júpiter possuiu convertido em chuva de ouro e ficou grávida sem perder a virgindade.

sábado, dezembro 26, 2009
 
HALAKHAH E MATRILINEARIDADE:
PATERNIDADE É QUESTÃO DE FÉ



Leitor me pergunta quando os judeus optaram pela matrilinearidade como critério para ser judeu. Quando, não saberia responder. Mas não é critério da Bíblia, e sim da Halakhah. Não é só nos Evangelhos que a linhagem do Cristo vem de varão a varão. Já está no Gênesis, nas genealogias de Adão, Noé, Cão, Jafé, Sem, Tera.

Halakhah é jurisprudência de rabinos, um ramo da literatura rabínica que trata das obrigações religiosas às quais devem se submeter os judeus, tanto em suas relações com seu próximo como em suas relações com Deus. Engloba praticamente todos os aspectos da existência: o nascimento e o casamento, as alegrias e sofrimentos, a agricultura e o comércio, a ética e a teologia. Recorro a meu fiel Dictionnaire Encyclopédique du Judaïsme.

Os religiosos do Talmud que lançaram os fundamentos da Halakhah postulavam a existência de duas leis: a lei escrita tal como estava no Pentateuco, e a lei oral, transmitida de mestre a discípulo. Admitia-se, a título de artigo de fé, que a lei oral havia sido revelada a Moisés ao mesmo tempo que a lei escrita. Se a lei escrita ordenava: “tu não trabalharás no shabat”, a lei oral tinha por objetivo definir com precisão quais tipos de trabalho constituíam uma violação deste mandamento. É o que chamaríamos hoje, em termos laicos, de regulamentação de uma lei.

É a partir da Halakhah que surge a controvérsia da patrilinearidade. Ou matrilinearidade, conforme o ângulo do qual observarmos. Pois nos textos bíblicos, as genealogias são sempre masculinas. Segundo a lei oral judaica, “teu filho, nascido de umamulher israelita é chamado teu filho, mas teu filho nascido de uma mulher pagã não é chamado teu filho”. Assim, uma criança nascida de uma mãe judia é considerada como judeu independentemente da religião de seu pai ou do grau de observância ou conhecimento do judaísmo pela criança. No entanto, a criança nascida de um pai judeu e de uma mãe não-judia não é reconhecida como judeu, independentemente de sua prática ou conhecimento do judaísmo.

Sigo ainda meu fiel dicionário. Este critério tradicional para determinar a condição judia de uma criança foi posta em questão pelo judaísmo reformado e pelo reconstrucionismo. Em 1982, o movimento reformista adotou o princípio da descendência patrilinear como critério de judaicidade. Segundo este ponto de vista, o filho de um matrimônio misto entre um pai judeu e uma mãe não-judia, educado como judeu e observando os deveres do ciclo da vida judia, é considerado judeu sem ter obrigação de submeter-se à conversão. Uma criança nascida de uma mãe judia, sem consideração da religião do pai, é igualmente tida como judia. O movimento reconstrucionista adotou o princípio da descendência patrilinear em 1983.

Em resposta, a Assembléia rabínica do judaísmo conservador reafirmou, em maio de 1984, sua aceitação da exclusiva descendência matrilinear como fator determinante da judaicidade de uma criança. Da mesma forma, o judaísmo ortodoxo, seguindo a Halakhah, reconhece unicamente a descendência matrilinear.

Sábios sacerdotes, que há milênios perceberam que paternidade é uma questão de fé. Comentei, em crônica passada, a afirmação do professor de teologia e ciências da religião Fernando Altemeyer, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), de que “a ascendência entre os judeus vem de mãe, não de pai”. Pelo jeito, de tanto lidar com teologias, assumiu o judaísmo rabínico.

Pois esta ascendência matrilinear da Bíblia não consta.

 
SOBRE KAREN ARMSTRONG


Do Marcelo Pereira, recebo:

Caro Janer,

Como vai?

Acompanho desde há muito seu blog. É sempre com prazer que leio seus textos, seja pela independência e agudeza intelectual, seja pela crítica mordaz e estilo.

Também sou um interessado em mitos e outras questões que você aborda, como por exemplo o atraso do mundo islâmico, em grande parte devido ao ambiente cultural estagnado e apodrecido por uma religião em estado medieval.

Leio em seu texto de 19/12/2009, "Os deuses precursores (I): JEZEUS CRISTNA", que você fala de "livros que não encontramos aqui" e cita Los Orígenes del Fundamentalismo en el Judaísmo, el Cristianismo y el Islam, da Karen Armstrong.

Permita-me uma correção: este livro já foi lançado aqui no Bananão pela Cia das Letras entre 2000 e 2001 com o título Em Nome de Deus - O fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no judaísmo. Li-o naquela época e realmente é muito esclarecedor. Abriu portas para que eu entendesse o tema e procurasse outras e variadas leituras. Tenho uma biblioteca razoável a respeito. Santa Amazon!

Da mesma autora também li Breve história de um mito, também pela editado pela Cia das Letras. A Karen Armstrong tem umas posições meio discutíveis em relação aos problemas políticos envolvendo o fundamentalismo, em especial na Europa, mas dos livros se aproveita muita coisa.

No mais, desejo-lhe um ótimo 2010 e que continue a nos presentear com seus ótimos escritos.

Um abraço,

Marcelo Pereira

 
ISTOÉ ENTREVISTA VIGARISTA


De André Bastos, recebo:

Caro Janer.

Muito bom o artigo de hoje (ontem). Mas você podia ter usado um argumento muito forte contra a escritora de A Vida Mística de Jesus. Ela é uma charlatã que afirma ser capaz de se comunicar com os mortos e saber a temperatura do céu- de acordo com seus ensinamentos, animais de estimação também vão para o céu. Já cometeu várias gafes em rede nacional e, mesmo assim, tornou-se uma escritora de best-sellers. Estou repassando uns links sobre esta charlatã. Veja os vídeos disponíveis no skepdic e no youtube. Depois as pessoas perguntam porque sou meio misantropo. Que faço com esta humanidade cretina? Eles precisam de ópio.

http://www.skepdic.com/medium.html

http://en.wikipedia.org/wiki/Silvia_browne

Vídeo:

http://www.youtube.com/watch?v=hRc4LkBRjIc

sexta-feira, dezembro 25, 2009
 
O ILUSTRE TEÓLOGO NÃO LEU
NEM O PRIMEIRO EVANGELHO



Nos finais de ano, o planeta dorme. Exceto algum acidente aéreo, nada de relevante acontece. As grandes revistas nacionais, por falta de assunto, dedicam páginas e mais páginas a um tema recorrente, a Bíblia ou o nascimento de Cristo. A Veja destes dias finais de 2009 dedica sua capa à Bíblia, que “começou a ser escrita há mais de 3 000 anos, e desde seu início se revelou um livro sem rival no poder de moldar culturas e civilizações. Essa força permanece inesgotável: ler a Bíblia é essencial para entender o mundo do qual viemos e em que vivemos hoje”. Até aí, nada contra.

Considero difícil entender, pelo menos o Ocidente , sem a leitura do Livro. Ocorre que a reportagem resvala para uma análise anódina da Bíblia, que não leva em conta os mais recentes estudos sobre a história daqueles dias. Sem nenhum espírito crítico, o redator praticamente assume como fatos históricos os mitos bíblicos. Ao falar sobre a passagem de Jesus sobre a Terra, o redator grafa: “sobre Sua missão”. Assim com maiúscula. Ora, isto é coisa de crente. De uma revista como Veja, espera-se um jornalismo isento. Fez jornalismo de pregador.

Esqueceu ainda o redator de dizer que a Bíblia – e particularmente o Antigo Testamento – defende uma legislação de bárbaros, onde imperam o genocídio, o massacre de povos inteiros, de homens, mulheres e crianças, a vendeta, a lei de talião, a lapidação. De minha parte, desconheço livro mais sanguinolento. A reportagem só pode ter sido escrita por alguém que jamais leu com atenção a Bíblia. Mas se até ilustres teólogos proferem bobagens, que se pode esperar de um jornalista?

A Istoé, repisando o velho tema, reproduz grossa bobagem, proferida por um dos mais reputados teólogos tupiniquins. Vamos ao texto:

Sylvia Browne, americana autora do best seller “A Vida Mística de Jesus”, é taxativa: “Tanto José quanto Maria provinham de famílias judias nobres e prósperas, de sorte que Jesus nasceu em uma estalagem e não em um estábulo, rodeado de animais”, diz. “José, de família real, não podia ser pobre – era um artesão especializado.” A afirmação de Sylvia é contestada por Fernando Altemeyer, professor de teologia e ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). “Afirmar que a ascendência nobre de José garantiria o bem-estar da família não faz sentido”, argumenta. Ele lembra que Davi é do ano 1000 a.C. e em um milênio sua fortuna certamente teria se dispersado. “Fora que a ascendência entre os judeus vem de mãe, não de pai”, explica.

Ora, Don Fernando, seria de supor-se que um professor de teologia e ciências da religião tenha algum dia lido os Evangelhos. Parece que não. Hoje, a ascendência entre os judeus pode vir de mãe. Antes não era assim. Y a las pruebas me remito. Lá está, em Mateus:

Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão. A Abraão nasceu Isaque; a Isaque nasceu Jacó; a Jacó nasceram Judá e seus irmãos; a Judá nasceram, de Tamar, Farés e Zará; a Farés nasceu Esrom; a Esrom nasceu Arão; a Arão nasceu Aminadabe; a Aminadabe nasceu Nasom; a Nasom nasceu Salmom; a Salmom nasceu, de Raabe, Booz; a Booz nasceu, de Rute, Obede; a Obede nasceu Jessé; e a Jessé nasceu o rei Davi. A Davi nasceu Salomão da que fora mulher de Urias; a Salomão nasceu Roboão; a Roboão nasceu Abias; a Abias nasceu Asafe; a Asafe nasceu Josafá; a Josafá nasceu Jorão; a Jorão nasceu Ozias; a Ozias nasceu Joatão; a Joatão nasceu Acaz; a Acaz nasceu Ezequias; a Ezequias nasceu Manassés; a Manassés nasceu Amom; a Amom nasceu Josias; a Josias nasceram Jeconias e seus irmãos, no tempo da deportação para Babilônia. Depois da deportação para Babilônia nasceu a Jeconias, Salatiel; a Salatiel nasceu Zorobabel; a Zorobabel nasceu Abiúde; a Abiúde nasceu Eliaquim; a Eliaquim nasceu Azor; a Azor nasceu Sadoque; a Sadoque nasceu Aquim; a Aquim nasceu Eliúde; a Eliúde nasceu Eleazar; a Eleazar nasceu Matã; a Matã nasceu Jacó; e a Jacó nasceu José, marido de Maria, da qual nasceu JESUS, que se chama Cristo.

Onde tem mãe nesta árvore genealógica? Não vejo nenhuma. Recomendo ao ilustre teólogo ler pelo menos o relato de Mateus. Quando nem um professor de teologia e ciências da religião parece ter lido o primeiro evangelho, pouco podemos esperar de jornalistas.

quinta-feira, dezembro 24, 2009
 
NATAL DIVINO EM SKOPJE,
GRAÇAS AO CONSTANTINO



Faz tempo, pelo menos umas três décadas. (Que horror, como passam rápido as décadas!) Já falei de uma amiga peoniana, encontrada às margens do Sena, a quem dediquei minha tese. Em verdade era iugoslava, naqueles tempos em que existia a Iugoslávia. Macedônia, mais precisamente. Eu a chamava de peoniene chérie, um pouco em homenagem a Alexandre, que nascera naquelas terras e era tão cabeça-dura como ela.

Tivemos grandes desacertos em nossos primeiros encontros. É que naquelas plagas, como em boa parte do universo eslavo, quando alguém quer dizer sim balança a cabeça horizontalmente. E quando quer dizer não, a balança na vertical. Eu propunha coisas que muito agradariam a nós dois e lá vinha aquele gesto hostil de negativa. Desde o convite para uma ópera até propostas mais singelas, sem maiores galas. Até que este bruto ocidental chegasse ao entendimento, passaram-se uma ou duas semanas.

Era comunista e líder das juventudes comunistas macedônias. Diante de tantas negativas – enfim, o que a mim pareciam negativas – disse-lhe ao telefone: estás me parecendo católica. Ela respondeu de bate-pronto: então vem cá, vou te mostrar quem é católica. Fui. Mostrou. Decididamente, não era.

Estudávamos literatura na Sorbonne Nouvelle. Terminados seus dias de Paris, ela voltou pra Macedônia. Uma vez lá, me convidou para passar o Natal chez elle. Fui correndo. Desci pela Itália e atravessei o Adriático, rumo à peoniana adorada. No barco de Bari a Dubrovnik, tive uma percepção do que me esperava. Conversava com uma dálmata, ela não entendia o que fazia um brasileiro ir até a Macedônia. É que tenho uma amiga em Skopje. Ma – disse a dálmata – sono tutti teste dure. Bom, disso eu sabia, se sabia! No 24 de dezembro, lá estava eu, batendo à sua porta. Ela, perplexa. Mas... não te convidei para o Natal? Exato. Estou aqui. Mas ainda não é Natal. Bom, mas mais algumas horas e será.

Não seria. Natal lá é no seis de janeiro. Enfim, foi um de meus melhores natais. Emendei o Natal ocidental com o oriental. Doze dias comemorando com gosto o nascimento do judeu aquele. In dubio, pro nós. Só alguns anos mais tarde, quando comecei a interessar-me pelos estudos de História, fiquei sabendo que aqueles dias tão lindos, dos quais até hoje não esqueço, me foram proporcionados por ... Constantino, imperador há 17 séculos atrás, que passou para a História como o primeiro imperador romano cristão.

A comemoração do nascimento de Cristo no 25 de dezembro se celebrou pela primeira vez em 336, em Roma, em pleno império de Constantino, que morreu no ano seguinte, para cobrir a festa pagã conhecida como natalis solis invicti, celebrada no solstício de inverno. Como celebrados foram na mesma data os nascimentos do deus hindu Agni, do persa Mitra e do egípcio Osiris. O 25 de dezembro, em Roma, era a festa de Mitra, o deus persa da luz, cultuado por Diocleciano, que inspirou a gregos e troianos a adoração de Febo e Apolo. O leitor já deve ter visto em gravuras aquela auréola que cerca a cabeça de Cristo, Maria e dos santos. Aquilo nada mais é senão o deus sol, sobreposto pelas novas deidades. Os antigos entendiam de iconografia.

A lenda da conversão de Constantino é bastante conhecida. Duas visões o teriam convencido de que Cristo lhe daria a vitória se se convertesse à nova religião. Na primeira delas, às vésperas da batalha Saxa Rubia, em outubro de 312, ele teria visto no céu, em meio às nuvens, a imagem da cruz e uma voz que lhe disse: In hoc signo vinces - com este sinal vencerás. De fato, venceu a batalha, mas não a guerra. Esta foi vencida dias depois. Antes de atravessar a ponte Milvio sobre o rio Tibre, para poder chegar ao centro de Roma, ouviu de novo a voz. Que lhe ordenou remover a águia imperial dos escudos romanos, colocando um outro símbolo no seu lugar. O imperador passou então a afixar nos escudos as letras X e P, que eram as iniciais gregas de Cristo. Seus inimigos foram derrotados e o líder destes, Maxêncio, pereceu afogado no Tibre.

Pura potoca, é claro, já que vozes vindas do céu não vencem batalhas. Recurso de sacerdote para convencer o populacho. A verdade é que, apesar de ter sido o primeiro imperador cristão, Constantino não levava muita fé na nova religião. Seus propósitos eram políticos: queria unificar o império, dividido pela crença em vários deuses. Agradou-lhe aquele novo deus que surgia, que não pertencia a nenhuma nação e ao mesmo tempo pretendia ser o deus de todas. Para ter um império grande, precisava de um deus grande. Maior que todos, de preferência. Apesar de ter assumido a nova seita como religião oficial, não assumiu a intolerância típica dos cristãos, que pretendiam que seu deus fosse o único.

Segundo os historiadores, Constantino, além de construir basílicas cristãs, mandou erigir templos pagãos. Além de escutar os augúrios do clero cristão, escutou os dos áuspices e hierofantes, presidiu o concílio de Nicéia e venerou a estátua da deusa Fortuna. É por pressão sua que se cria nessa época o dogma da Santíssima Trindade. Ao ver que o cristianismo estava resvalando rumo ao politeísmo, com a história do Pai, Filho e Espírito Santo, o imperador manipulou as discordâncias teológicas existentes entre Arius (Cristo é um ser criado) e Atanásio (Cristo é igual e eterno como seu Pai) e coagiu os bispos do império a assumir a doutrina de Atanásio. “Adoramos um só Deus em Trindade… O Pai é Deus, o Filho é Deus, e o Espírito Santo é Deus; e contudo eles não são três deuses, mas um só Deus”. O que deve ter dado origem, séculos depois, àquele aparelho de som da Gradiente, o três-em-um. O aparelho da Gradiente sumiu do mercado. O três-em-um do Atanásio continua tendo muita demanda. Mas isto já é outra história.

A intriga ainda vai longe. Arius foi condenado e exilado. Dois dos bispos que votaram a favor de Arius também foram exilados. Os escritos de Arius foram destruídos. Mais adiante, Constantino reabilitou os arianistas e denunciou o grupo de Atanásio. Arius voltou do exílio e Atanásio foi banido. Humores da época.

Em suma, todo o poder de Roma deriva de um imperador que, para fortalecer seu império, assumiu o cristianismo como religião de Estado. Embora abomine a Igreja e papistas, tenho de admitir que Constantino, sem querer, me proporcionou o mais prolongado e prazeroso Natal de meus dias.

quarta-feira, dezembro 23, 2009
 
JUDEU NÃO CONDENA
GENOCIDAS JUDEUS



Leio nos jornais que o Congresso Judeu Mundial (CJM) considerou "inoportuno e prematuro" o projeto do Vaticano de beatificar Pio XII, papa de 1939 a 1958 que é acusado de omissão durante a perseguição aos judeus na Segunda Guerra Mundial. No sábado passado, Bento XVI nomeou Pio XII e João Paulo II como "veneráveis", o que abre caminho para beatificação e possível canonização. Segundo Ronald Lauder, o presidente do CJM, "enquanto se mantenham fechados os arquivos do papa Pio XII datados do período crucial de 1939 a 1945 e não haja um consenso sobre sua ação - ou inação - ante a perseguição de milhões de judeus durante o Holocausto, uma beatificação é inoportuna e prematura". Lauder considera ainda que "embora seja de competência única da Igreja Católica decidir a quem se outorgam as honrarias religiosas, há grande preocupação sobre o papel político do papa Pio XII durante a Segunda Guerra Mundial que não deveria ser ignorado".

Ora, Pio XII é um santo homem, se comparado a outros papas, que foram devassos, assassinos e torturadores. Pio XII foi apenas omisso, como omissos foram muitos outros chefes de Estado ante a matança de judeus por Hitler. Há uma história que gosto de contar e recontar, já que ninguém a conta.

Era uma bela tarde do ano da graça de 1385. Sua Santidade o papa Urbano VI passeava inquieto pelos jardins do castelo de Nocera, na Itália. Por mais que aguçasse os ouvidos, não ouvia a música que gostaria de ouvir. Naquele ano, seis cardeais foram acusados de conspirar contra Sua Santidade. Que, incontinenti, os jogou numa cisterna do castelo em que habitava. A cisterna era tão estreita que o cardeal di Sangro, grande e corpulento, não podia nem mesmo se espichar. Foram aplicados a estes infortunados todos os métodos postos em honra pela Inquisição.

Quando se tratou do cardeal de Veneza, Sua Santidade confiou o trabalho sujo a um antigo pirata, que ele havia nomeado prior da Ordem de São João, na Sicília, com a ordem de aplicar a tortura à vítima até que o papa ouvisse seus berros. O suplício durou desde a manhã até a hora da janta. Durante este tempo, Sua Santidade passeava no jardim, sobre a janela da câmara de tortura, lendo seu breviário em alta voz, de maneira que o som de sua voz lembrasse ao executor as ordens que ele lhe havia dado. Mas foi em vão que o pirata apelou aos recursos da polé e do cavalete. Embora a vítima fosse idosa e enferma, só foi possível extrair dela um único grito: "Cristo sofreu por nós".

Se Lauder quer impedir a canonização de Pio XII, melhor pedisse antes a cassação de São Luís do hagiológio católico. Nos primórdios do século XIII, Luís IX de França ordenou a expulsão de todos os judeus envolvidos em actividades de usura e assim pôde confiscar as riquezas destes para financiar os seus projectos. Não contente de roubar dos judeus seus bens, em 1242, ordenou a queima dos exemplares do Talmud em Paris. Foi ainda nazista avant la lettre quando, em 1269, seguindo uma recomendação do Quarto Concílio de Latrão, de 1215, impôs aos judeus a obrigatoriedade de usarem sinais vestimentares distintivos. Para os homens, uma estrela amarela ao peito. Para as mulheres um chapéu especial. A intenção era identificar os judeus para evitar relações entre eles e católicos. É hoje santo da Igreja e mais conhecido como São Luís. Foi, sem dúvida alguma, um santo homem.

Mas não é preciso revisar a história da igreja de Roma para buscar assassinos e torturadores. Eles estão lá no livro sagrado do judaísmo. Para começar, Moisés, o guia e libertador dos judeus, mandou degolar três mil dos seus. E nunca vi autoridade alguma de Israel condenando este gesto de Moisés. Aliás, foi este mesmo santo líder que matou todos os reis de Madián - Evi, Requem, Sur, Jur e Rebá - mais Balaam, filho de Beor e todos os varões madianitas.

O levita de Efraim partiu uma concubina em doze pedaços e os enviou a doze tribos. O santo rei Davi mandou matar um de seus generais, Urias, para ficar com Betsabá, sua mulher. Isso sem falar que entregou a vida de setenta mil homens a Jeová, como castigo por ter organizado um censo não aprovado por Jeová. O rei Asa, de Judá, massacrou um milhão de etíopes com o apoio de Jeová. Israel entrou na cidade de Jericó, matando homens e mulheres, crianças e velhos, bois, cordeiros e burros, sob as ordens de Jeová. Foi o mesmo Israel que assassinou todo o povo amalecita, por ordem de Jeová.

Foi este mesmo Jeová que mandou separar 32 mil virgens madianitas feitas prisioneiras - para uso dos israelitas, é claro - após ter assassinado todas as que não eram virgens. Absalão, filho do santo rei Davi, violentou dez mulheres em praça pública, como sinal de enfrentamento com seu pai. Amnon, outro filho de Davi, estuprou Tamar, sua irmã.

O sábio rei Salomão forçou à escravidão todos os que não eram israelitas para construir o famoso templo de Jerusalém. O Altíssimo permitiu que Josué matasse três mil hebreus, só porque um deles ficou com parte do botim saqueado por Josué e sua horda de assassinos. Jehú mandou degolar 42 homens na cisterna de Bet-Equed. Moab Ehud mandou matar dez mil homens na montanha de Efraim. O santo profeta Elias mandou degolar 450 sacerdotes de Baal. Foi ainda Jeová quem ordenou a matança de 24 mil israelitas, só porque estes coabitavam com as mulheres de Moab.

Jamais li texto de rabino ou autor judeu condenando os massacres de Moisés, Davi ou Josué, todos executados por ordem – ou com a complacência – de Jeová. Pelo contrário, os veneram como santos patriarcas. Que autoridade têm os filhos de Israel para condenar a humana covardia de um papa que, bem ou mal, não roubou os bens dos judeus, nem teve suas mãos manchadas com sangue?

terça-feira, dezembro 22, 2009
 
SÓ NÃO MUDA O HOMENZINHO


Leio no New York Times reportagem de Laura M. Holson, na qual a repórter propõe uma questão obsoleta:

“Há uma pergunta que vem à mente de qualquer pessoa que tenha enviado recentemente uma mensagem de texto por celular enquanto traía seu cônjuge: onde é que eu estava com a cabeça? As mensagens de texto são o novo batom no colarinho, ou a fatura do cartão de crédito largada por aí. Instantâneas e aparentemente casuais, elas podem ser a confissão de um caso clandestino por parte de quem esquece que tudo que é digital deixa pegadas”.

Isto teria ficado óbvio neste mês, quando uma mulher que diz ter tido um caso com Tiger Woods afirmou a uma publicação de celebridades que o golfista lhe mandara mensagens românticas via SMS, algumas das quais foram publicadas. Alguns políticos americanos já haviam caído nessa armadilha, como Kwame Kilpatrick, ex-prefeito de Detroit, preso depois da divulgação de mensagens picantes a uma assessora, e o senador John Ensign, cujo caso com uma ex-funcionária foi confirmado por um SMS incriminador.

Para começar, nunca tive idéia de quem fosse o tal de Tiger Woods, só agora ouço falar dele. Se desconheço até os ídolos do futebol, imaginem os do golfe. Por outro lado, pasmem meus leitores: em pleno século XXI, jamais enviei um SMS e nem sei como se faz. Uso um celular que tem mais de dez anos – e só o uso aos sábados e domingos, das 13 às 15 horas – e nem sei se o aparelhinho pode enviar tais mensagens. Preciso consultar alguma criança para descobrir.

Mas... se enviasse SMS, não teria preocupação alguma que tais mensagens fossem tornadas públicas. Nada do que digo ou escrevo é criminoso ou passível de ação penal. Em meus anos de Paris, mantive longa correspondência com minhas namoradas. Como minhas cartas constituam uma espécie de crônica daqueles dias, fiz uma cópia carbono de todas elas. Sou tempo do papel carbono, não sei se as novas gerações sabem do que se trata. Não tinha computador nem email naqueles dias, apenas uma Lettera 22 e dependia dos bons – ou maus – ofícios dos correios.

Esta correspondência – como também as respostas – permaneceu sempre em minhas estantes ou baús, ao alcance de minha mulher. Suponho que ela não leu estas cartas, eram muitas. Minha correspondência ativa, daqueles dias, terá umas trezentas páginas. Mais as respostas. No entanto, se as leu, tanto faz como tanto fez, porque dela nada escondi.

Continua a repórter do NYT: “Ao contrário de eras anteriores, quando um namorico poderia ser suspeitado, mas não confirmado, hoje em dia as mensagens de texto são a prova. Advogados especializados em divórcios dizem estar vendo no último ano um aumento de casos em que um cônjuge traído apresenta SMSs para demonstrar que seu parceiro se desgarrou. A Associação Americana dos Advogados começou a promover recentemente seminários sobre como usar provas eletrônicas – mensagens de texto, histórico de navegação e redes sociais. E a Suprema Corte dos EUA aceitou, em 15 de dezembro, decidir se um órgão policial da Califórnia violou os direitos constitucionais à privacidade de um funcionário ao inspecionar mensagens pessoais enviadas e recebidas num pager do governo”.

Cônjuge traído? A repórter me dá a impressão de estar falando sobre a Idade Média, quando uma mulher ia para a fogueira se dormisse com outro que não o marido. Ou dos tempos bíblicos, quando era lapidada. A propósito, a última Veja nos traz uma reportagem de capa muito superficial sobre a Bíblia, indigna de um grande veículo nacional. (Pelo jeito, a redação do artigo foi confiada a jovens, que ainda não leram o Livro). O texto comenta a atitude de um nova-iorquino, um tal de A.J. Jacobs. Escritor e jornalista, decidiu que, por 387 dias, viveria estritamente de acordo com os ditames da Bíblia, dos mais conhecidos aos mais obscuros.

Interrogado sobre qual foi a situação mais extraordinária daquele período, respondeu o bobalhão: “Foi cumprir o mandamento bíblico de apedrejar os adúlteros. Você há de entender que isso não combina muito com a Manhattan dos dias de hoje. Acabei usando seixos, aquelas pedrinhas de cascalho, bem miudinhas, de modo que ninguém saísse ferido”.

Ora, na Bíblia as adúlteras não são apedrejadas com pedrinhas de cascalho, bem miudinhas. Mas com pedras que matam. O objetivo é matar. Se Jacobs quisesse seguir os preceitos bíblicos, teria de ir até o fim do que é prescrito no Livro. A propósito, aqueles tempos eram até mais liberais. Os patriarcas tinham várias mulheres. Salomão tinha setecentas, isso sem falar nas trezentas concubinas. Suponho que não seria alvo de ação alguma se alguém interceptasse eventuais SMSs – se na época existissem – enviados a qualquer uma delas.

Vivemos em época em que toda a mídia, desde a impressa à televisiva, incita à infidelidade. Jornais pretensamente sérios – vide, entre nós, Folha e Estadão – anunciam abertamente prostitutas e prostitutos, especificando suas habilidades. Cinema e televisão louvam o adultério e triângulos, quadrados e até pentágonos amorosos. O casamento convencional, aquele em que os cônjuges se comprometiam à fidelidade, hoje talvez só exista em cidades do interior, e isso porque nessas cidades a vigilância é maior sobre cada cidadão.

Segundo a reportagem, numa recente pesquisa com 2.300 adultos sobre suas redes sociais, o Projeto Pew da Internet e da Vida Americana descobriu que 12% diziam já ter se arrependido de ter compartilhado certas informações on-line. Lee Rainie, diretor do projeto, argumenta que isso é sinal de uma mudança cultural geral, na qual as pessoas se tornam cada vez mais descuidadas no que tange a revelar informações pessoais.

O que a repórter está afirmando, no fundo, é que as pessoas devem ter mais cuidado ao mentir, para bem preservar suas mentiras. Que as pessoas mintam, em certas circunstâncias, para preservar seus empregos ou segurança, até que entendo. O que não entendo é como se possa mentir à pessoa que divide comigo meu teto, minha cama, meu sono.

Estou pensando em comprar um celular mais contemporâneo. Talvez até aprenda a enviar SMSs. Não me preocupa de forma alguma que a Justiça queira bisbilhotar minhas mensagens. Sintam-se os senhores juízes à vontade.

Vivemos um século no mínimo curioso. Voamos de um continente a outro em poucas horas, nos comunicamos em tempo real com pessoas de qualquer latitude, temos enciclopédias em nossos computadores ao alcance de um clique, cartas fazem parte de um passado já distante. O homem foi à Lua, enviou sondas além do sistema solar e está perscrutando os confins do universo com olhos eletrônicos. Hoje, em segundos, enviamos texto, imagens e sons para qualquer pessoa em qualquer geografia, conversamos face a face pelo Skype, coisa que há uns vinte anos só víamos em filmes de ficção científica. O planetinha se tornou pequeno e as comunicações se tornaram instantâneas.

O mundo mudou, e rapidamente. Só não muda o homenzinho que usufrui desta tecnologia toda.

segunda-feira, dezembro 21, 2009
 
Os deuses precursores (III):
OSÍRIS, DIONISOS E SERAPIS



Ana Martos vai adiante e envereda pela mitologia egípcia. Os Textos das Pirâmides mostram que Osíris oferece seu corpo como pão de vida e seu sangue como vinho. “Tu és o pai e a mãe dos homens que vivem de teu sopro, comem a carne de teu corpo e bebem teu sangue. O que come tua carne e bebe teu sangue viverá eternamente”.

Os gregos identificaram Osíris com Dionisos, o deus encarnado, o salvador, filho de Deus, nascido de uma mulher mortal, em um 25 de dezembro, em uma cova humilde onde pastores o adoraram. Osíris Dionisos oferecia a seus seguidores o renascimento para a vida eterna mediante a imersão ritual na água. Em sua vida terrena converteu a água em vinho durante uma cerimônia nupcial. Entrou triunfalmente na cidade montado em um asno, enquanto as pessoas brandiam palmas. Morreu na Páscoa (na primavera) pelos pecados do mundo, desceu aos infernos e ressuscitou no terceiro dia para ascender glorioso à sua morada celestial, de onde descerá ao final dos tempos para julgar os homens bons e os maus. Dionisos, como Baco e, em alguns cultos, Orfeu, foi crucificado pelos pecadores, mas não em uma cruz de dor, senão em uma cruz de salvação, porque a cruz é símbolo e totem de muitos povos. Sua morte e ressurreição se celebravam com um ágape ritual com pão e vinho que simbolizavam sua carne.

A conversão do pão e do vinho em carne e sangue do deus era um ritual tão popular que Cícero, cético, chegou a protestar em De natura deorum e a perguntar se alguém podia estar tão louco para acreditar que o que ingeria era a carne e o sangue de um deus.

O culto a Osiris se ampliou e se aperfeiçoou durante o período helenístico, no qual o Egito esteve governado pelos gregos, para configurar uma nova divindade cuja morte e ressurreição assegurava vida eterna a seus fiéis. Unindo todas estas facetas, Ptolomeu I proclamou a religião de Serapis no Egito como religião oficial imposta, não espontânea como a de Isis ou Adonis, mas mantendo a tolerância em relação a outros deuses e outras religiões. Serapis era a união de Osiris e Apis, dois deuses egípcios que naquela época já incorporavam os aspectos do deus grego Dionisos, pelo que se proclamou Redentor filho da Trindade egípcia.

Serapis nasceu de mãe virgem no solstício de inverno, morrendo no equinócio da primavera para ressuscitar no terceiro dia. Não escapou de ameaças de morte, o que obrigou sua mãe, a virgem Isis, a fugir com o filho, montada em um asno. Isso sem falar da imagem de Orfeos Bakkikos, a primeira que se conhece de um deus crucificado, utilizada nos mistérios órficos e dionisíacos celebrados no Mediterrâneo... desde o século VI antes da era cristã.

Conhecemos essa história, não? É a do cara aquele que nasceu num 25 de dezembro de mãe virgem, foi anunciado por anjos, curou enfermos e leprosos, fez andar os paralíticos, devolveu a visão aos cegos, transformou água em vinho e ressuscitou mortos. Sua doutrina falava de bondade, de ajudar e amar-se mutuamente e de socorrer os frágeis e inválidos. Ensinou que é preciso amar aos demais como a si mesmo, que é melhor devolver bem por mal e que a melhor forma de viver é praticar a caridade e todas as virtudes. Desafiou os sacerdotes de sua época, foi crucificado, morto e sepultado e ao terceiro dia ressurgiu dos mortos.

Se alguém ainda acha que isto não é ficção de hábeis sacerdotes, que se vai fazer?

domingo, dezembro 20, 2009
 
Os deuses precursores (II):
AGNI E MITRA



Continuo a relação dos mitos compilada por Ana Martos. Segundo a autora, encontramos mais um mito precursor nos Veda, os livros sagrados da Índia revelados pelo próprio Brahma e compilados por Vyasa, que datam do século XIV antes de nossa era. Traduzo.

Agni nasceu no 25 de dezembro, solstício de inverno, tendo sido sua vinda anunciada ao mundo por uma estrela no firmamento. Desde então, quando reaparece, os sacerdotes anunciam a boa nova ao povo e repetem o rito do descobrimento do fogo, esfregando os lenhos cruzados, até que surge a chispa como uma criatura celestial que colocam sobre palhas para que prenda fogo. Os sacerdotes levam até o berço de palha uma vaca que leva a manteiga e um asno que leva o soma, um licor alcoólico de cor dourada, com os quais alimentam a pequena chama, à qual chamam criatura.

No ritual, os sacerdotes lhe oferecem pão e vinho e cada fiel recebe uma pequena partícula da oferenda, que contém parte do corpo de Agni, nome que se transformou em Agnus, cordeiro em latim, no contato com o povo romano. O cordeiro que se oferece a Deus como vítima propiciatória pela redenção dos homens, o cordeiro de Deus, Agnus Dei.

O nome de Agni significa “unção”, que em grego se diz “cristnos”, de onde procede “cristo”, o “ungido”, o Messias judeu e cristão dito em grego, porque em hebraico se diz mashiakh, que se translitera como messias. Os dois lenhos cruzados são a cruz onde se gera o fogo, o Sol, que é a origem do deus segundo o dogma ariano de uma trindade composta pelo Sol, pai celeste; o fogo, encarnação do Sol e o espírito, sopro de ar que acende a chama.

Nos conta a autora que a Índia teve um outro deus, não tão importante, mas que passou ao panteão persa – e depois ao romano – com todas as características de um deus principal. Seu nome era Mitra, também chamado o Senhor, e fez nascer com suas flechas a fonte eterna do batismo, já na Pérsia. Nasceu de mãe virgem, em um 25 de dezembro, a festa mais importante da religião dos magos persas. Seu nascimento foi anunciado por uma estrela que apareceu no Oriente e os magos acudiram a adorá-lo, levando-lhe perfumes, ouro e mirra. Mitra morreu no equinócio da primavera, em março, para ressuscitar triunfante no terceiro dia.

Na religião mitraica, que primeiro foi hindu, logo persa e finalmente foi adotada por Roma como religião oficial, Mitra, que originalmente foi o ministro principal do deus Ormuz, venceu o touro que simbolizava a vida, arrastou-o a uma cova e lá o degolou para beber seu sangue, porque de seu sangue surgiu a vida e de sua carne se originaram todos os animais e todas as plantas. Por isso, Mitra se converteu em criador do universo e, ao mesmo tempo, em mediador entre Ormuz e o ser humano.

Os ritos de iniciação nos mistérios de Mitra incluíam batizar o neófito com sangue de touro sacrificado em um lugar mais elevado, de onde o sangue manava para banhar o iniciado. A iniciação começava com o batismo e terminava com a comunhão, em que se consumia a carne do touro com água, pão e vinho. O pão e o vinho se consagravam previamente com uma fórmula mística que os converteria em corpo e sangue do deus. O culto de Agni surgiu 1400 anos antes de nossa era.

Qualquer semelhança com aquela outra história não é mera coincidência.

sábado, dezembro 19, 2009
 
Os deuses precursores (I):
JEZEUS CRISTNA



Desta última viagem, voltei com alguns livros daqueles que não encontramos aqui. Destaco dois. De Karen Armstrong, minha teóloga predileta, Los Orígenes del Fundamentalismo en el Judaísmo, el Cristianismo y el Islam. Armstrong, eu a conheço desde há muito e tenho boa parte de suas obras em minha biblioteca. O outro livro foi Pablo de Tarso, ¿Apóstol o Hereje?, de autora espanhola que desconhecia, Ana Martos. Apesar de alguns lapsos, como falar da existência de três reis magos na Bíblia – o Livro fala apenas de magos, jamais diz que são reis e muito menos que são três – Martos faz importantes reflexões sobre as origens do cristianismo e sobre a heresia de Paulo.

Para começar, segundo a autora, os poemas e livros sagrados hindus, que narram o mito do primeiro casal que desobedeceu e foi expulso do paraíso terrenal do Ceilão, afirmam que Brahma finalmente os perdoou, mas que, posto que era um deus, conhecia de sobra a natureza humana e soube de antemão que continuariam pecando e ofendendo-o, porque o mal já havia entrado no mundo e não era fácil tirá-lo dali. Por isso, decidiu enviar Vischnu, a segunda pessoa da Trindade, para que se encarnasse no ventre de mulher mortal e redimisse o gênero humano do mal e da morte eterna. Vischnu se encarna mais de uma vez. Sua oitava reencarnação foi Cristna, e a nona, Buda. 3500 anos antes de nossa era, Cristna nasceu de mãe virgem, tendo sido profetizada sua vinda ao mundo pelos livros santos. Acho que o leitor já conhece história semelhante.

Adelante! A concepção da mãe de Cristna foi marcada pelo divino. Vischnu apareceu em sonhos a uma mulher justa e boa chamada Lakmy, que esperava um filho, advertindo-a que daria luz a uma filha, que seria eleita por Deus para ser mãe do futuro redentor do mundo. A criança deveria chamar-se Devanaguy e não deveria conhecer varão, mas permanecer virgem e entregue à oração.

Anos depois, Cristna foi concebido milagrosamente durante uma cena mística, na qual Devanaguy entrou em êxtase enquanto orava fervorosamente, ofuscada pela luz e esplendor do espírito divino que se encarnou em seu ventre. Mas Rausa, tirano e tio de Devanaguy, foi advertido em sonhos de que a criança que nasceria de sua sobrinha o destronaria algum dia e a encerrou em uma torre.

Nove meses depois chegou o momento esperado do parto e, ao primeiro gemido de dor da parturiente, um forte vendaval a elevou milagrosamente e a transportou até a cova do pastor Nauda, onde nasceu um menino a quem deram o nome de Cristna.

Todos os pastores acudiram a adorá-lo e a atender a mãe e o filho, mas Rausa soube que a criança havia nascido fora de sua prisão e, enfurecido, mandou degolar todos os meninos que tivessem nascido naquela noite. Devanaguy recebeu a advertência celestial e fugiu com o menino para colocá-la a salvo da degola, quando os soldados do tirano se aproximavam perigosamente.

Passaram-se os anos e Cristna, a criança celestial, cumpriu dezesseis. Chegou então o momento de abandonar a proteção materna para percorrer a Índia e predicar uma nova moral. Uma moral que a todos impactou, porque se atreveu a proclamar a igualdade entre os homens e inclusive, com coragem, entre as castas hindus, algo que ninguém até então havia sido capaz de mencionar. E não só isso, mas também pôs em destaque a hipocrisia dos sacerdotes brâmanes, o que lhe valeu sua ira e suas contínuas perseguições.

Quando foi necessário, Cristna realizou o milagre de curar enfermos e leprosos, fazer andar os paralíticos, devolver a visão aos cegos e inclusive ressuscitar os mortos. Muita gente o seguiu porque sua doutrina falava de bondade, de ajudar e amar-se mutuamente e de socorrer os frágeis e inválidos. Ensinou que é preciso amar aos demais como a si mesmo, que é melhor devolver bem por mal e que a melhor forma de viver é praticar a caridade e todas as virtudes.

Disse ter vindo ao mundo para redimir os homens do pecado de seus primeiros pais, rodeou-se de discípulos que continuariam seu trabalho e ensinou sua doutrina através de parábolas. Certa ocasião, Cristna teve de repreender o principal de seus discípulos, Ardjuna, por sua escassa fé, já que ele e outros seguidores entraram em pânico quando sentiram aproximar-se os esbirros do tirano. Mas Cristna soube infundir neles novo ânimo, mostrando-se com todo seu divino resplendor da segunda pessoa da Trindade divina. Após sua transfiguração, seus discípulos começaram a chamar-lhe Jezeus, que significa “nascido da essência divina”.

Quando soube que havia chegado sua hora, retirou-se a um lugar para rezar, proibindo a seus discípulos que o seguissem. Submergiu no rio Gânges e logo ajoelhou-se às suas margens, recostando-se a uma árvore e esperando sua morte. Enquanto rezava, chegaram os soldados do tirano e os esbirros dos sacerdotes e um deles feriu-o com uma flecha. Para que terminasse de morrer, o dependuraram em uma árvore para que o devorassem os animais selvagens.

Seus discípulos o procuraram ansiosos quando souberam de sua morte e correram para apanhar seus restos, mas nada encontraram porque o filho de Deus havia ressuscitado e voltado aos céus.

Isto aconteceu 3500 anos antes de nossa era. Qualquer semelhança com aquela outra história não é mera coincidência. Continuo amanhã o relato feito por Ana Martos sobre os demais mitos anteriores ao cristianismo.

sexta-feira, dezembro 18, 2009
 
AOS GIGOLÔS DO GAUCHISMO


Parece que andei ofendendo, em crônica passada, sedizentes brios gaúchos. Digo sedizentes, porque não entendo como gaúcha a cultura dos CTGs. Escreve um leitor: “Agora, é inegável que, pelo bem ou pelo mal, o MTG (Movimento de Tradições Gaúchas) nos seus primórdios resgatou um pedaço da cultura que ia pro lixo, massacrado pelo american way of life (ainda bem que a Coca-Cola ficou). Falar mal dele neste aspecto é também questionar a manutenção dos costumes judaicos, ou alemães (a bandinha, o joelho de porco), ou os baianos com seus rituais etc e tal”.

Cultura que ia pro lixo, massacrada pelo american way of life umas ovas. O país todo continua sendo massacrado pelo american way of life, independentemente de CTGs. Quantos aos costumes judaicos ou alemães, estes sempre existiram. Os costumes atribuídos aos gaúchos pelos cetegistas são fictícios, nunca existiram. A começar pelas ditas danças gaúchas, que foram criadas por publicitários e gigolôs do gauchismo. Defender uma cultura e nela acreditar é uma coisa. Outra coisa é acreditar em ficções, como se realidade fossem. O problema do cetegismo é que, além de mitificar o gaúcho, gera prebendas pagas pelo contribuinte. No fundo, uma velha conhecida nossa. A corrupção, sob capa de defesa das tradições.

Há quem alegue: “Tendo o sr. estudado muito e usufruindo de bolsas internacionais a custo do estado...” Sim, recebi bolsas de estudo - não de Estado - na Espanha e na França. Sem Capes nem CNPq. Dependesse do Brasil, jamais estudaria no Exterior. Nunca fui parasita deste país, onde para ser parasita é preciso ser subserviente e ter pistolão. As bolsas que recebi, não tiveram recomendações de ninguém. Foram decorrências de meu currículo. Fui convidado por Madri e Paris para lá estudar. Do Estado brasileiro, jamais ganhei um centavo. Nem pedi. Jamais onerei o contribuinte brasileiro.

Quanto ao mais, nasci no campo, entre homens do campo, vacas, ovelhas e cavalos. Tudo que faz um homem do campo minhas mãos fizeram, desde carnear ovelha e trançar laço, a castrar terneiros e caçar perdizes em mundéus. Só não tive o prazer de domar um potro, saí muito cedo de meus pagos. E não reconheço como gaúchos essa gente que se fantasia de gaúcho para ir a bailes nos CTGs. São bobalhões urbanos, que se pretendem gaúchos, mas do campo nada conhecem. Não existe gaúcho no asfalto. Não existe gaúcho sem campo.

Curiosamente, lá onde nasci, nos pagos de Ponche Verde, Três Vendas e Upamaruty, ninguém se jacta de ser gaúcho. Gaúchos se pretendem seres urbanos, que nasceram em meio a carros e edifícios, brincando de Batman em corredores de prédios e comendo em churrascarias às quais um gaúcho - falo do verdadeiro - jamais teria acesso. Ser "gaúcho", hoje, custa caro. A começar pelas pilchas. Sem dinheiro, pobre diabo algum consegue ser sócio de CTG. Pra começar, o que ainda resta do gaúcho sequer teria plata para comprar as botas.

Se os donos da cultura no Rio Grande do Sul quiseram um dia chamar de gaúchos os rio-grandenses, nunca houve lei que os impedisse disto. É o homem quem nomeia as coisas, já dizia Platão em Crátilo. As coisas nascem - ou são criadas, descobertas ou inventadas - e em seu ser habita, desde a origem, o inadequado nome que as assinala e distingue das demais. No Uruguai e Argentina, onde há muito mais gaúchos que no Brasil todo, nunca se cometeu esta tolice. Porque uruguaios e argentinos nunca mitificaram o gaúcho.

Não é por acaso que vem de lá o melhor da poesia gauchesca, de autores como Bartolomé Hidalgo (Un gaucho de la Guardia del Monte), Hilario Ascasubi (Santos Vega, el Payador), Estanislao del Campo (Fausto), Antonio Lussich (Los tres gauchos orientales), José Hernández (Martín Fierro), Esteban Echeverría (La Cautiva), Bartolomé Mitre (Armonías de la pampa), Serafim J. Garcia (Tacuruses), Elias Regules (Tapera). Aliás, seria interessante saber se algum dos pretensos defensores do cetegismo ainda sabe o que é um tacuru. Ou um tuco-tuco.

Já no Rio Grande do Sul, que adotou a palavra como gentílico, era preciso enfeitar o personagem. Afinal, não fica bem assumir-se como marginal, ladrão de gado ou degolador. Tenho minhas próprias definições e tampouco há lei que me impeça disto. Só concebo o gaúcho na pampa, entre vacas e cavalos. Gaúcho de asfalto não existe. O que existe no asfalto são palhaços de CTG.

Há quem argumente: “Parece que não é Janer x contestadores, mas uma briga íntima de Janer Cosmopolita x Janer do Ponche Verde". Ora, o Janer cosmopolita é o mesmo do Ponche Verde. Embora hoje não consiga mais viver no campo, prezo muito os pagos de minha infância. Como já dizia Sócrates, a vida no campo é interessante, mas os amigos estão em Atenas. Nasci em campo aberto, o horizonte a léguas de distância, tive minha infância embalada pelo mar verde de alhos-bravos em dias de minuano e até hoje não esqueço o sabor salobre da água de cacimba.

Um dia bati na marca e saí a camperear por este mundo velho sem fronteiras, sempre acompanhado pela lembrança de meus dias de criança. Em Paris ou Estocolmo, em Madri ou Berlim, nunca deixei de ser o “guri do Canário”, como me chamavam. Tentei traduzir isto em Ponche Verde, romance que começa em Paris e termina naqueles pagos. Não vejo conflito algum em ter nascido no campo e depois ter conhecido o planetinha.

Conheço não pouca gente que renega sua infância. Jamais reneguei a minha e dela muito me orgulho. O que estou afirmando é apenas que CTGs são farsas que nada têm a ver com o gaúcho. Ou com o que resta dele, porque o gaúcho mesmo há muito é finado.

Não falta também quem use uma argumentação ad hominem. Se assim escrevo, é porque sou velho e ranzinza. Bom, não posso dizer que sou exatamente jovem, já passei dos 60. Mas me considero mais jovem que muitos jovens. Se assim fosse, então nasci velho e ranzinza. Y a las pruebas me remito. Reproduzo abaixo crônica publicada há 32 anos, onde eu denunciava o caráter de gigolôs do gauchismo de rábulas que, na época, se pretendiam folcloristas.

 
AOS BACHARÉIS-FOLCLORISTAS *


Falta quem estude e pesquise o folclore, declarou Antônio Augusto Fagundes a este jornal, porque os salários não atraem. E estes salários que não atraem, diz ainda Antônio, o augusto, chefe do Departamento Cultural do Instituto Gaúcho de Tradição e Folclore, oscilam entre Cr$ 7 mil e 9 mil mensais. Pelo que concluímos que Antônio Augusto Fagundes, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, é um abnegado para sujeitar-se a tão baixos salários. Ou proverá seu sustento com a advocacia, pesquisando folclore como bico? Se assim for, me candidato aqui e agora para estudar e pesquisar folclore, pois afinal sete ou nove mil sempre serão bem-vindos a meus bolsos, afinal a caipirinha já está valendo o preço de uma garrafa de cachaça.

Mas desde já encaro com pessimismo minha candidatura a folclorista, pois Antônio, o augusto, diz que os salários não atraem “os poucos especialistas que poderiam trabalhar no setor”. Como cronista, sou um especialista em generalidades e não propriamente em folclore. Em todo caso, não seria demais perguntar que é um especialista em folclore. Será um profissional que cursou a Faculdade de Folclore? Suspeito que não, afinal tal faculdade sequer existe. Será um profissional que fez um cursinho de “Folclore ao Alcance de Todos” com os folcloristas do Instituto? É possível. Neste caso, com quem fizeram o cursinho os atuais professores do cursinho? Por raciocínios deste tipo, até perdi minha crença em Deus, me falavam que toda causa tinha efeito e só Deus era a causa não-causada, e essa não engoli.

Ou para ser folclorista é necessário ser bacharel e gostar das coisas do pago? Se é assim¸ ouso encarar com otimismo minha candidatura a folclorista. De meus pagos, gosto que me pelo, e também sou bacharel em Direito. Tenho diploma, um pergaminho muito bonito por sinal, só não preguei em minhas paredes porque não combinam muito com a cor do papel. Tenho até mesmo um anel que um tio me deu, que já me foi de grande valia. Como a incidência de advogados por metro quadrado é muito grande em Porto Alegre, me recusei a entrar no baile. E muitas vezes botei o anelzinho no prego para pagar aluguel. Que mais não fosse, lá estava melhor guardado que em minhas gavetas. Mas falava de folclore.

Ou, para ser folclorista, será necessário conhecer os costumes e tradições do pago? Se assim for, já me considero aceito pelo Instituto, e juro que não reclamarei dos sete ou nove mil. Me criei nos campos de Upamaruty e Ponche Verde, corri penca e pialei gado, castrei touro e assei nas brasas seus documentos. Tranças de três ou de oito para mim não têm mistérios, também sei tirar lonca e pelar tento. Leio que o Instituto do Folclore está planejando um caderno sobre pandorga e já ofereço meus préstimos: quando guri fiz muita pandorga com taquara de bambu e papel celofane. Faz tempo que não me cai uma taba nas mãos, mas é só acostumar o braço e clavo suerte na volta-e-meia. Ou duas-e-meia, como pedirem.

Que mais será necessário para ser especialista em folclore? Conhecimentos sobre nossa História e Literatura? Também os tenho. Será necessário fazer concurso para ser folclorista? Faço, o salário me parece bom. Será necessário ser amigo dos atuais folcloristas para ser folclorista? Me considerem os folcloristas, daqui pra frente, o mais generoso amigo.

Sou candidato, meu caro Antônio Augusto, à boca, digo, ao cargo de folclorista. Não ignoro os conselhos do viejo Vizcacha:

A naides tengás envidia,
Es muy triste el envidiar,
Cuando veas a otro ganar,
A estorbarlo no te metas –
Cada lechón en su teta,
Es el modo de mamar.


Sei disso. Mas como, ao que tudo indica, estão sobrando algumas tetas, também quero mamar.

* Porto Alegre, Folha da Manhã, 29/08/1977

quarta-feira, dezembro 16, 2009
 
NADA DE NOVO SOB O SOL


Há Estados interferindo na legislação de outros Estados. Nestes dias em que estive na Espanha, Baltasar Garzón, o famigerado juiz espanhol, pretendeu julgar os familiares de Pinochet por supostos crimes cometidos ... no Chile. A impressão que o magistrado deixa é que a Espanha se arroga o direito de julgar atos em qualquer país do mundo. Isto não é novo. Nos anos 90, um cidadão francês foi condenado por crime que teria cometido... na Tailândia. Só que na Tailândia não era crime. Comentei isto há quase dez anos.

Amnon Chemouil, funcionário dos transportes públicos franceses, descobriu em 92 a praia de Pataya, na Tailândia, para onde voltou em 93 e 94. Na terceira viagem, em companhia de um turista suíço, Viktor Michel, decidiu iniciar-se na pedofilia. Viktor trouxe-lhe uma menina de 11 anos, que praticou uma felação em Chemouil, pelo preço módico de 125 francos. Até aí, nada fora do previsível. É internacionalmente sabido que o Estado tailandês tolera tais práticas, daí boa parte do afluxo turístico àquele país. O suíço, que além de pedófilo era voyeur, filmou a cena. De volta ao mundo europeu, Chemouil recebeu do amigo suíço uma cópia do vídeo, para sua coleção. E aqui começam os problemas do funcionário.

Anos depois, em uma revista no apartamento de Viktor, a polícia suíça encontrou o vídeo e enviou uma cópia do mesmo à gendarmeria francesa. Chemouil foi detido e levado ante um tribunal parisiense, que o acusava de transgredir o código penal francês de 94, pelo crime de violação sexual de menor. Além do mais, uma lei aprovada em 17 de junho de 1998, autoriza os tribunais franceses a julgar as "agressões sexuais cometidas no estrangeiro", mesmo quando os fatos imputados ao acusado não sejam considerados delitos no país onde foram cometidos.

Claro que a França jamais condenaria um cidadão francês que fosse a Cuba – como vão – para curtir os encantos de uma jinetera a preço de baguete. Nem a Alemanha condenaria os Fritz que vêm ao Brasil em busca das celebradas mulatas do Rio e Bahia. Quanto à Tailândia, é crime. Mesmo que lá não seja crime.

Na ocasião, o escritor peruano Vargas Llosa, em artigo para El País, afirmou que o precedente estabelecido pela França é impecável, pois uma democracia moderna não pode aceitar que, saltadas as fronteiras nacionais, seus cidadãos possam ser exonerados de responsabilidade legal e delinqüem alegremente porque, no país estrangeiro, não existem normas jurídicas que proíbam aquele delito. (...) Os legisladores franceses decidiram estender a jurisdição das leis e códigos a esta sociedade globalizada de nosso tempo, o que permitiu assentar um precedente e um exemplo, como ocorreu, já não no campo dos delitos sexuais, mas no dos crimes contra a humanidade, com o general Pinochet na Espanha e Inglaterra.

O lúcido Vargas Llosa parece ter-se imbuído da arrogância européia, que se julga no direito de julgar um chileno por crimes cometidos no Chile, mas jamais ousaria pedir a cabeça de um Clinton ou Blair pelo bombardeio de populações civis na Iugoslávia. Diga-se de passagem, Barack Obama acaba de receber um Nobel da Paz por seus bombardeios no Afeganistão.

Por uma lei de 1998, Amnon Chemouil foi condenado na França a sete anos de prisão. Por um fato ocorrido em 1994, na Tailândia. Não é preciso ser versado em Direito, para entender-se que tal atitude gera uma insegurança total no campo dos atos humanos. Ora, no artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, lemos: "Ninguém será condenado por ações ou omissões que, no momento de sua prática, não constituíam ato delituoso à face do direito nacional ou internacional".

Tenho comentado, ao longo destas crônicas, uma outra tendência cada vez mais em moda em nossos dias, a de criar diferentes legislações para os cidadãos pertencentes a um mesmo Estado. No Brasil, negro vale por dois brancos em vestibular, índio pode espancar mulheres e matar crianças, desmatar e exportar mogno, o MST pode invadir propriedades e próprios federais, demolir laboratórios e culturas transgênicas. Se um outro cidadão que não pertence a estas tribos fizer o mesmo, cai sobre ele todo o rigor da lei.

Na Europa, os muçulmanos reivindicam o direito a práticas que na Europa constituem crime, como a ablação do clitóris e a poligamia. Na Alemanha, citando o Corão, a juíza Christa Datz-Winter, de Frankfurt, negou o pedido de divórcio feito por uma mulher muçulmana que se queixava da violência do marido. A juíza declarou que os dois vieram de um "ambiente cultural marroquino em que não é incomum um homem exercer um direito de castigo corporal sobre sua esposa". Se um alemão bate em sua mulher, estão estabelecidas as condições para o divórcio e para a punição do marido. Muçulmano pode bater à vontade.

Costumo afirmar que quando em um Estado há duas ou mais legislações, então há dois ou mais Estados. Falei em “tendência cada vez mais em moda em nossos dias”. Me corrijo. Isto não vem de nossos dias. Há dois mil anos, uma seita de fanáticos já tinha a mesma pretensão.

Celso, nobre romano, autor de Discurso Verídico, que foi queimado pela Igreja e do qual só temos notícia pela contestação de Orígenes em Contra Celso, em sua época já acusava os cristãos de rebeldes contra a ordem estabelecida. Se se negavam a participar na vida pública e civil, isto equivalia a estabelecer um Estado dentro do Estado, com normas e costumes próprios, mas distintos aos do Império. Se se contentassem em anunciar um deus novo, isto pouco importava aos romanos. Mais deuses, menos deuses, tanto faz como tanto fez. Ocorre que se empenhavam em denegrir os deuses do país que os acolhia.

Como dizia o Koelet, nada de novo sob o sol.

terça-feira, dezembro 15, 2009
 
SOBRE ESPANHA


Foram dias dos mais agradáveis, cansaço à parte. Já não tenho vinte anos e a Primeira-Namorada queria ver tudo. Ora, tudo é algo que nunca conseguimos ver. Pessoalmente, me contento com partes. Em minha primeira incursão pela Europa, lá no início dos 70, eu ainda tinha essa pretensão de ver tudo. Claro que não vi. Mas revirei o continente de sul a norte e de leste a oeste. Comecei por Lisboa, subi à Espanha, fui para o Reino Unido, segui por Bélgica e Holanda, Dinamarca e Suécia, voltei pela Alemanha rumo a Paris e desci até a Itália. Não me arrependo. Para se ter uma idéia geral da Europa é um bom projeto. Mas é bom que se tenha pernas para tanto. Em minha primeira viagem, em Barcelona, subi Montjuich a pé. Quem conhece o pedaço, tem idéia de meu feito.

Hoje, meu parâmetro de juventude é subir Toledo a pé. Em um dos filmes dos Monty Python, um profeta entre tantos que infestavam as margens do Jordão nos primeiros anos da era cristã, anuncia: “e chegarão os dias em que os homens esquecerão onde puseram os pequenos objetos”. (Cito de memória). Sim, esses dias chegarão. Mas minha concepção de apocalipse é um tanto distinta. Chegará o dia em que não conseguirei mais subir Toledo a pé. Será o fim dos tempos. Por enquanto, ainda não chegou. Enquanto não chega, visitamos aquela catedral magnífica que me faz chorar. Mais o Aurélio, é claro, restaurante onde imperam as perdizes toledanas, o cochinillo e o cordero lechal.

De Madri, fomos também para Segóvia. Questão de mostrar à Primeira o aqueduto. E também a Meson de Candido. Mais um cochinillo regado a bom Rioja.

Hoje, sou mais seletivo. Escolho apenas dois ou três países, de preferência um ao lado do outro. Nesta última viagem, preferi um só, Espanha. (Com uma perna em Portugal, para sentir o cheiro de Lisboa). O fato é que em um mês na Espanha pouco ou nada se vê. Oito dias para Madri, sete para Barcelona, quatro para Tenerife, cinco para Lanzarote. E três dias finais em Lisboa, que mais não seja para ouvir um fado e tomar uma ginjinha.

Foi bom. Em Madri, já na chegada, fui tomar um chinchón no Oriente, um de meus cafés prediletos. Oriente porque fica em frente ao Palácio Real, que está no Ocidente. Revisitei o Sobrino de Botín, destino obrigatório em Madri. E também o Gijón, café que sempre me impediu de chegar à Biblioteca Nacional, em meus dias de Complutense. Fica no Paseo de Recoletos, rua que separa o bar da biblioteca. Nunca consegui atravessá-la. Ficava no Gijón. Ou no El Espejo, uns cem metros adiante.

Revisitei meus museus prediletos, os del Jamón. Lá não tem quadros nem velharias. As paredes e o teto são revestidos por presuntos. Neles come-se bem e bastante barato, coisa de dez euros por entrada, prato principal e sobremesa. Tentei visitar um daqueles museus antigos que juntam velharias, o Thyssen-Bornemisza. 48 salas. Lá pela 15ª, desisti. Deixei a Primeira-Namorada visitando as salas e fui ler jornais nos bancos dos corredores. São tantas as pinturas que a memória não guarda. Então, de que me adianta vê-las? Decididamente, não tenho mais paciência para museus.

Ainda em Madri, visitei um restaurante à primeira vista atraente, La Favorita. Nele, os garçons são estudantes de música que interpretam óperas. Quanto às árias, tudo bem. Naquele dia, um tenor e uma soprano nos renderam momentos divinos. Terminamos a noite com um “Libiamo”, da Traviata, cantado pelos cantores e pelo público. Mas... olhando melhor, tenor e soprano estavam fantasiados de garçons. Eles não serviam. Até aí tudo bem. Não insisto em ser servido pela Violetta nem pelo Alfredo. O problema foi a comida. Fria e ruim. Que fazer senão compensar no vinho? O saldo, diria, foi positivo.

Mais a indefectível visita ao Venencia, boteco na Calle de Etchegaray, onde só se toma jerez. Imperdível, com o teto e paredes pretas pelo mofo do tempo. É um dos botecos que mais me agrada em toda a Europa.

Mais Barcelona, cada vez mais linda. Aquela Barcelona onde, um dia, ingênuo, subi o Montjuich a pé. Agora – e nas últimas vezes – fui de teleférico. Barrio Gotico, Paseo de Colón, Paseo Marítimo, Barceloneta, Los Caracoles, el Salamanca, Mi Burrito y Yo. Mais Montserrat, monastério a uma hora de trem da capital catalã . Montanha soberba, foi considerada por Goethe um dos lugares mais aprazíveis do mundo. Passei uma tarde lá. Mas considero que o melhor deve ser passar uma noite. Com luar e estrelas, Monserrat deve ser um grande momento na vida de qualquer viajor. Fica para a próxima.

De Barcelona, fomos para Tenerife, ilha onde impera o Teide, um vulcão ainda ativo. Na geografia do Teide, região árida e sem vegetação alguma, pura lava, você se sente percorrendo a lua. De Tenerife, fomos para Lanzarote, ilha espanhola na costa do Marrocos. Aí o jogo é mais duro. 300 vulcões, metade deles ativos. Eles conseguem extrair vinho da lava. Os vinhedos são formados por semicírculos de pedra. Em cada um há uma vinha, plantada na lava. Como praticamente não chove na ilha, põe-se em torno à vinha picón, cinza de vulcão, para absorver a umidade noturna. Os semicírculos de pedra servem para proteger a planta dos ventos da África. E da lava se extrai o vinho. Haja vontade de beber.

Em Timanfaia, a região mais quente da ilha, há um restaurante, onde as carnes são assadas no calor dos vulcões. Dois quilômetros abaixo do restaurante há um veio de lava. Uma fissura sobe até a superfície, onde se construiu uma espécie de bocal de poço. O churrasco que se come é assado pela lava.

Foram dias de muita música e muito vinho. Flamenco e sardana em Barcelona, folias em Lanzarote e fado em Lisboa. A sardana, dança catalã, é algo muito particular. Uma orquestrinha se posta em frente à catedral, pessoas vão se aproximando e de repente está todo mundo dançando. Gente que nunca se viu se dá as mãos e passam a saltitar em círculos concêntricos. Considero a sardana talvez a maior manifestação espontânea de confraternização e afeto entre pessoas de todos os quadrantes, que jamais se viram e, por uma boa hora, dançam como se fossem velhos conhecidos.

Prometi escrever algo sobre a última viagem. Mas vivemos em dias de Internet. Melhor ver a viagem do que ler sobre ela. As fotos estão todas devidamente legendadas e posicionadas em um mapa mundi, obra da Primeira. Estão em duas pastas:

Espanha: http://www.flickr.com/photos/isapgm/sets/72157622850414052/

Lisboa: http://www.flickr.com/photos/isapgm/sets/72157622976926706/

Também se pode navegar por nome de cidade, a partir das tags.

Exemplo: Segovia - http://www.flickr.com/photos/isapgm/tags/segovia/

Bom passeio, leitor!

segunda-feira, dezembro 14, 2009
 
SÃO PAULO RECONHECE BANTUSTÕES


Em 1996, quando Michael Jackson gravou um clipe favela Santa Marta, em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro, houve um certo escândalo na imprensa nacional. Foi preciso negociar com os traficantes locais para poder gravar no morro. O governo carioca ficou irritado por considerar que isso era uma publicidade negativa para a cidade.

Isso em 96, há treze anos. Hoje, há um turismo organizado nas favelas, para europeu ver, que depende da autorização não da autoridade policial, mas de traficantes. Autorização que dá mais segurança ao turista que do que a autorização do Estado. Pois o Estado há muito não manda nas favelas. Quem manda são os traficantes. Os traficantes oferecem mais segurança que qualquer polícia. Se antes o Estado hesitava em reconhecer este poder, hoje tornou-se mais realista: reconhece-o abertamente.

Leio no Estadão: "Para fazer o cadastro dos moradores das 16 favelas às margens do Córrego Água Espraiada, na zona sul de São Paulo, 65 laptops passam informações em tempo real para uma central na Secretaria Municipal de Habitação. Cartões magnéticos com dados detalhados e fotos das famílias são confeccionados para certificar a propriedade das moradias. Tanta tecnologia de nada adiantaria, contudo, se o batalhão de 240 assistentes sociais e pesquisadores não tivesse jogo de cintura para estabelecer uma relação de confiança com líderes comunitários e para obter o respaldo de traficantes locais - que garantem a segurança dos trabalhos".

O Estado aceita um novo interlocutor, o traficante. Ou seja, há – e desde há muito - um poder paralelo nas favelas. Pelo que leio, é a primeira vez que um jornal admite a existência deste poder. Poder que tem mais poder que o Estado. E nisto estamos. São Paulo reconhece a existência de bantustões no Brasil.

sábado, dezembro 12, 2009
 
ABAIXO A HISTÓRIA E A GEOGRAFIA!


Fiz muitas escolhas erradas na vida. Nasci no campo, só fui conhecer cidade aos dez anos, nunca tive mestre que me orientasse. Tive de ser meu próprio mestre e assim sendo cometi não poucos equívocos. Um deles, diria, foi ter feito Filosofia. Filosofia, desculpem-me os filósofos, não passa de palpites. Um pensador diz: o mundo é assim e vai pra lá. Surge um outro e diz: o mundo é assado e vai pra cá. As filosofias, fundamentadas na razão, se derrubam umas às outras e nenhuma é perene. Já a literatura, que com a razão pouco ou nada tem a ver, consegue mais perenidade.

Se leio hoje a República ou o Fédon, de Platão, tenho de dar grandes descontos ao saber da época. Mas A Arte de Amar, de Ovídio, escrito no início da era cristã, conserva hoje todo o frescor dos dias em que foi concebido. “Retira o grão de areia do seio da bela, mesmo que não haja grão algum no seio dela”. Isto é eterno.

Mesmo assim, cometi um outro equívoco, o de ensinar literatura. Literatura não se ensina. Literatura se lê e estamos conversados. Ocorre que, um belo dia, querendo desfrutar de Paris, postulei uma bolsa na França. Pedi a bolsa na área de Letras, área que conhecia bem. E a ganhei. Sem jamais ter pretendido o magistério, acabei fazendo um doutorado em Letras Francesas e Comparadas. Minha pretensão não era ser professor. Mas apenas curtir os vinhos e queijos, a cultura e as mulheres que Paris me oferecia. E assim foi. Voltei com um título na mão (mas não o diploma, já explico) e acabei lecionando literatura por quatro anos na UFSC, Santa Catarina, o que foi certamente o período mais vazio de minha vida.

Ah, estudei também Direito. Ontem ainda, uma colega de curso me lembrava que hoje comemoram-se quarenta anos de nossa formatura. Horror! Como passam rápido as décadas. Foi outra errância minha. Não direi que Direito seja um curso inútil. Mas não me servia. Pra começar, não suporto usar gravata. Continuando, mais do que usar gravata, detesto chamar alguém de Meritíssimo. Meus diplomas hoje mofam em algum canudo perdido em meus arquivos. Exceto o de Dr. em Letras. Havia tanta burocracia para apanhar o diploma, que acabei por deixá-lo lá por Paris mesmo.

Enfim, o magistério em literatura não foi tão inútil. Naqueles dias, ganhava bem e tive o lazer suficiente para escrever um romance, Ponche Verde, onde escrevi, na voz de um personagem:

"Quarenta anos, pois. Sem filho, sem livro, sem árvore. Bons propósitos os alimentara por quatro décadas, mas de bons propósitos Paris transbordava há séculos e era aquele bordel. Como um bordel também estava sua cabeça quando chegou au bord’elle, la Seine, que agora estaria correndo com tanta mansidão mas sempre debitando toneladas de sangue em seu curso. Agora, vendo seu passado do alto da torre Eiffel, conseguira unificar algumas linhas. No direito buscara a justiça. Não a encontrando lá, fora perguntar à Filosofia. Os pensadores haviam permanecido silentes e tivera de estudar História para entender a Filosofia. Descobria agora que sem a Geografia jamais entenderia a História et le voilà, o erudito, careca e enregelado em meio à avara primavera berlinense, com ar mais abestalhado que aquele orangotango".

Meu personagem – uma hipóstase de mim mesmo – descobrira um pouco tarde que sem conhecer geografia ou história ninguém entende o mundo em que vive. Mas, que sabemos da vida quando temos quinze ou dezesseis anos? Hoje, não leio mais ficções – posso até reler as que mais me tocaram – e só tenho lido ensaios históricos, particularmente sobre religiões.

Assim sendo, é com perplexidade que leio na edição do Le Monde de hoje que, naquela França onde descobri que sem história ou geografia não conseguimos entender o mundo, foi suprimido no secundário o ensino de história e geografia. Diz Luc Chatel, ministro francês da Educação: “Os alunos não farão história em cursos terminais, mas atualmente eles também não fazem francês e não tenho a impressão de que eles sejam iletrados”. É um ministro da Educação que afirma que tanto o estudo da língua vernácula como o de história ou geografia são perfeitamente dispensáveis. Se Lula dissesse isto, seria coerente. Mas ouvir isto da boca de um ministro francês é no mínimo chocante.

Chocante, mas nem tanto incoerente. Estudar história significa tomar conhecimento dos horrores que uma igreja, ainda hoje influente, cometeu na França e na Europa. Dos horrores cometidos pelos revolucionários de 79. Das barbaridades perpetradas por Napoleão, um dos vultos mais cultuados na história da França. Dos crimes do comunismo, dos quais foram cúmplices boa parte dos intelectuais franceses, a começar pelo stalinista Sartre. Dizia Norodom Sihanouk, príncipe do Camboja: “os jovens cambojanos, se tivesse de mandá-los estudar no Exterior, mandaria para Moscou. De Paris, eles voltam comunistas.”

Ainda no Le Monde, alguém que se assina como Mika, “simple citoyen”, se pergunta: “Em uma época onde se vê a falta de curiosidade da mais jovem fatia da população, a necessidade de uma identidade nacional, porque atacar esta matéria? A história-geografia é a meu ver uma das matérias-chave da educação. Para começar porque ela é necessária socialmente. Conhecer seu passado, descobrir a formação das civilizações, a criação dos diversos sistemas políticos, é também conhecer a si mesmo, é descobrir como o mundo no qual se vive chegou a ser como é. Que é o comunismo? Que é a república? Que é o conflito israelo-palestino? Aliás, o que é Israel? De onde vem a democracia. E, finalmente, a democracia é o quê?”.

Perguntas incômodas. Ao que tudo indica, ao ministro francês da Educação, estas perguntas não têm importância alguma. É espantoso constatar que, na França de Renan e Voltaire, de Montaigne e Balzac, uma autoridade tome uma atitude que nem os países dominados pelo stalinismo ousaram tomar.

E se na França hoje não mais se estuda história ou geografia, podemos confiar que mais dia menos dia a moda chega até nós.