¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, agosto 19, 2009
 
NO CANTA QUIEN TIENE GANAS


Mal o Supremo Tribunal Federal extinguiu uma excrescência jurídica tipicamente nossa, a exigência de diploma para o exercício do jornalismo, um outro diploma surge na república das regulamentações, o de escritor. Mais uma vez, imitamos o que de pior se faz nos Primeiro Mundo. No caso, nos Estados Unidos, onde surgiram os cursos de “creative writing”. Leio na última edição do caderno “Mais!”, da Folha de São Paulo:

“O Brasil vive a emergência de um movimento literário: o dos escritores com diploma de autor. Centros culturais com lotação esgotada e professores particulares com fila de espera caracterizam a vicejante versão brasileira da disciplina "creative writing" das universidades norte-americanas”.

Mais um pouco e teremos os sindicatos de escritores exigindo diploma para o exercício do ofício. Chegamos à paradoxal situação em que você, sem ter escrito livro algum, pode intitular-se escritor, afinal tem diploma para tanto. Um como os tais de ecólogos, que julgam ser suficiente passar por um curso universitário para intitularem-se ecólogos. Ou como os filósofos contemporâneos, que julgam bastar fazer um curso de Filosofia para intitularem-se filósofos. É pretensão desmedida.

Em meus dias de Paris, quando fui matricular-me na Sorbonne Nouvelle (Paris III), a secretária, ao ver meu currículo, logo foi me titulando: “Ah! Vous êtes philosophe!” Mais non, Mademoiselle – respondi – eu apenas fiz um curso de Filosofia. Filósofo, a meu ver, é quem cria uma filosofia. Da mesma forma, concluí curso de Direito. Mas jamais me intitulei advogado, afinal nunca advoguei.

Como os escritores diplomados brotarão como cogumelos após a chuva com o tal de diploma de escritor, é claro que não terão lugar no mercado, já que hoje nem mesmo quem escreve bem consegue ser publicado. Aliás, ocorre o contrário. É publicado aos milhões quem escreve mal, vide Paulo Coelho. Não é de duvidar que surjam movimentos reivindicando cotas para escritores diplomados nos cursos de Letras, redações de jornais, estúdios de televisão, departamentos de editoras.

Escritor é quem escreve. E mais: quem escreve bem, acrescento. Apesar de imortal da Academia de Letras, este antro que abriga ou abrigou Amados, Darcys Ribeiros, Sarneys, Conys et caterva, não confiro a Paulo Coelho a condição de escritor. Venda quanto quiser, seja traduzido em quantas línguas for, para mim não passa de um escrevinhador. Como escrevinhadores são todos esses autores de best-sellers, sempre presentes nas vitrines das livrarias das grandes redes, que só buscam satisfazer os baixos instintos do homem medíocre.

Os grandes escritores que a humanidade nos legou nunca fizeram curso para escritor. Desde Platão ou Luciano de Samosatra a Cervantes, Dostoievski, Swift. Ou, se quisermos ser mais contemporâneos, Karin Boye, Orwell, Kloester, Camilo José Cela ou Ernesto Sábato. Cervantes e Dostoievski escreveram no cárcere. Swift era deão. Sábato era físico nuclear. Orwell e Kloester lutaram na Guerra Civil Espanhola. Orwell recebeu um tiro no pescoço numa trincheira, por ser muito alto e estar sempre com a cabeça exposta. Kloester foi condenado à morte e só foi salvo graças à grita internacional. Cela, por sua vez, foi soldado de Franco. Fernando Pessoa era contador. José Hernández foi fazendeiro, guerrilheiro e senador da República.

Parêntese: quando Camilo José Cela esteve em Porto Alegre para receber um doutorado Honoris Causa pela PUC, na cerimônia oficial foi ladeado por um velho comunista gaúcho, o Carlos Jorge Appel. Na saída, interpelei-o: quem diria? Tu participando de uma homenagem a um falangista? Sem jeito, nem me respondeu. Um prêmio Nobel faz amizades inusitadas.

Cervantes, aliás, era soldado de profissão. Terminou seus dias como coletor de impostos. No prólogo a Novelas Ejemplares, Cervantes lamenta seus dentes, ni menudos ni crecidos, porque no tiene sino seis y esos mal acondicionados y peor puestos, porque no tienen correspondencia los unos con los otros. Também glorifica sua mão perdida em Lepanto, herida que, aunque parece fea, él la tiene por hermosa, por haberla cobrado en la más memorable y alta ocasión que vieron los passados siglos ni esperan ver nos venideros.

Ali está o homem, mutilado pela vida mas inteiro e orgulhoso de seus feitos. Na batalha de Lepanto, lutando contra os turcos, foi ferido e perdeu os movimentos da mão esquerda. Durante cinco anos, foi escravo de um bei em Argel. Na Espanha, foi preso por questões relacionadas à cobrança de impostos. Morreu na miséria. Antes de morrer, ciente da grandeza de sua obra, Cervantes dirá de Cervantes:

Tú, que en la naval dura palestra
perdiste el movimiento de la mano
izquierda, para gloria de la diestra!


A palavra palestra, aqui, tem o sentido original grego: luta, batalha. Imaginemos que poderia produzir este manchego, que foi soldado e viajor, se tivesse se diplomado como escritor nalguma faculdade em Alcalá de Henares.

Enfim, estamos em terras brasilícas. Machado, considerado o pai da literatura nacional, era funcionário público. Seus filhos parecem querer o mesmo conforto. Com uma diferença: se outorgam o título de escritores mesmo sem ter escrito livro algum. Basta o diploma. Não vai demorar muito e teremos mestres escritores e doutores escritores.

Claro que para isso terão de submeter-se a uma banca e a um método. E quem ousar escrever sem passar pelo freio do método, arriscará incorrer em exercício ilegal da profissão. Como ocorreu com os jornalistas, por quatro décadas, por um ato da ditadura militar.

Sou mais Fierro:

No canta quien tiene ganas,
sino quien sabe cantar.