¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, junho 19, 2009
 
UNIVERSIDADES (II)


Comecei fazendo Direito e Filosofia, simultaneamente. Direito em Santa Maria e Filosofia em Porto Alegre. Filosofia porque pretendia – ingênuo atroz – descobrir a tal de Verdade. Direito, porque estava ciente do velho refrão latino, primum vivere, deinde philosophare. Primeiro viver, depois filosofar. Com a Filosofia, pensava eu então, entendo o mundo. Com o Direito sobrevivo. Não deu nem uma nem outra. Gostei de estudar os filósofos gregos e até mesmo os da Escolástica e Patrística, se é que estes podem chamar-se de filósofos. Depois, a Filosofia se tornou mais ou menos ininteligível. O cogito cartesiano sempre me soou como uma solene bobagem. Duvidar da própria vida e apoiar-se na dúvida para ter certeza de que existo? Isto só passa se dito por um francês. Fosse dito por um pedritense, seria o palhaço da cidade. Ou andou bebendo demais.

Tive dois professores na Filosofia que me foram úteis. Leônidas Xausa, de Ciências Políticas, e Dagmar Pedroso, de Lógica. Xausa me introduziu na filosofia política de Platão, Pedroso na lógica de Aristóteles e mesmo na dos estóicos e megáricos. Os demais, pura perda de tempo. O mais prestigioso professor do curso da URGS era Gerd Bornheim. Para ele, filosofia era apenas um pretexto para viajar da dialética platônica à dialética marxista, como se uma tivesse algo a ver com a outra. Gerd foi um embuste bem sucedido. Como dominava o francês e o alemão, suas aulas não passavam de monótonas leituras das masturbações intelectuais de Hegel, Sartre, Husserl e Heidegger. Foi meu professor durante quatro anos. Durante quatro anos dormi em suas aulas e chegava a roncar no fundo da sala. Para escândalo da Baixinha, que me cutucava nas costelas para acordar.

Enfim, devo algo a Bornheim. Graças a ele, abandonei definitivamente os estudos de Filosofia. A epifania ocorreu quando ele afirmou: “o objeto da Filosofia, hoje, é buscar o objeto da Filosofia”. Chega, disse eu para mim mesmo. E mergulhei na literatura, que pelo menos não estava preocupada com o objeto da literatura. Minhas veleidades filosóficas terminaram no terceiro ano do curso. Fui até o final para quem ninguém dissesse, quando eu criticasse a Filosofia, que a criticava por não ter conseguido terminar o curso.

Em Direito, as primeiras disciplinas foram importantes. Filosofia do Direito, Direito Constitucional, Civil, Penal. Entendi como funcionava um Estado de Direito. Quando cheguei ao direito adjetivo, Processo Penal, Processo Civil, me pareceu estar lendo Kafka. Desde logo senti que não suportaria ganhar minha vida discutindo arabescos colaterais. Por outro lado, nunca me acostumei ao terno e gravata. Quer dizer, se quisesse sustentar-me sem violentar a mim mesmo, teria de buscar o pão por outras vias. Certa vez, em uma discussão em aula, citei Kafka. O professor me perguntou: é aluno desta faculdade?

Minhas veleidades jurídicas terminaram também no terceiro ano do curso. Fui até o final para quem ninguém dissesse, quando eu criticasse o Direito, que o criticava por não ter conseguido terminar o curso.

Com dois canudos inúteis na mão – inúteis pelo menos para mim – tive de trabalhar como vendedor de enciclopédias e contador de perfumes e dentifrícios nas farmácias e supermercados, para ganhar meu pão. Até o dia em que se abriu uma brecha no jornalismo. Fosse obrigatório o diploma naqueles dias, hoje certamente eu seria mais desses seres amargurados com a própria vida. Com todas as restrições que hoje faço ao jornalismo, foi profissão onde consegui navegar sem maiores desconfortos.