¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, março 21, 2009
 
PAPA NA ÁFRICA TROCA
SEIS POR MEIA DÚZIA



Aconteceu em 87, em Madri. Eu assistia a uma aula de cultura espanhola no Instituto de Cooperación Iberoamericana (ICI), ministrada por um professor extremamente cioso de sua hispanidade. Alguém falou da cultura francesa e ele foi fulminante: “Ustedes saben cual es número de brujas, videntes y cartomantes que hay en Francia? Y después ellos se pretienden herederos de la razón cartesiana”.

Não pude deixar de dar meu pitaco:

- Pero, Profesor, en vuestra España tán moderna y llena de luces, son millones los que creen en un Diós nacido de una palomita!

Silêncio constrangedor na aula. Ele ficou perplexo, quase apoplético, mudou de assunto e continuou falando como se nada tivesse ouvido. Me ocorre esta lembrança a propósito da visita de Sua Santidade a Angola. Quero mudar de assunto, mas o homem não me deixa.

Do alto de seu autismo e de sua condição de vice-deus, pediu aos católicos da África que combatam a superstição, a bruxaria e os maus espíritos existentes em regiões da África. E que ofereçam o Evangelho às pessoas “desorientadas, que vivem no terror”. Não sei se Bento notou, mas está concitando os angolanos a uma guerra religiosa. Bruxaria e maus espíritos fazem parte dos cultos animistas. Em nome de uma religião supostamente superior, o papa pede a todo um continente que não mais acreditem em Epilipilia, o deus da caça das florestas equatoriais, nem em Kaggen, outra entidade superior dos bosquímanos e também deus da caça, nem em Gaub, representante das forças do mal, nem em Tsui-Goab, demiurgo e chefe do povo, senhor do raio e das chuvas, que faz as plantas crescer. Muito menos em Nzambi-Karunga, deus dos hereros angolanos, senhor do tempo e mestre dos infernos, para angolanos e namíbios. Quer que os zulus esqueçam Unkulunkulu, que os zagas deixem de venerar Ruwa, que os bantus abandonem Mulunga.

Que verdades oferece sua santidade em troca das superstições africanas? Nada mais que outras superstições adotadas pela Europa: a crença numa mãe virgem, num homem que é deus, que ressuscitou dos mortos, as promessas de vida eterna e de um paraíso inexistente ou, na pior das hipóteses, no fogo lento do purgatório ou no fogo eterno dos infernos. Está trocando seis por meia dúzia. Às pessoas “desorientadas, que vivem no terror”, oferece o terror do castigo eterno.

Mas sobre o melhor ainda não contei. Joseph Ratzinger está preocupado com o sacrifício dos meninos de rua considerados bruxos. Logo quem! O cardeal e ex-prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, sucessora do Santo Ofício. Se em nossos dias alguém ainda não lembra do que seja o Santo Ofício, explico. Era a denominação popular, na Idade Média, da Santa Inquisição, criada pela Igreja Católica Apostólica de Roma. Que levou à fogueira milhares de pessoas – em geral mulheres – acusadas de bruxaria. A instituição foi inclusive adotada de bom grado pelos protestantes. Bento bem que podia escolher tema menos espinhoso e constrangedor para seu périplo pelo continente negro.

Não há idéia precisa do número de mulheres acusadas de bruxaria que foram queimadas pela Igreja na Idade Média. Segundo Henry Charles Lea – autor do excelente Histoire de l’Inquisition au Moyen Âge – não se queimava mais bruxas individualmente. Eram queimadas aos magotes, tanto por católicos como por protestantes. Um bispo de Genebra queimou quinhentas em três meses. Média de mais de cinco por dia. Um outro bispo de Bamberg, seiscentas. Um bispo de Würzbourg, novecentas. Oitocentas foram condenadas de uma só vez pelo Senado de Savóia.

Um tratado jurídico escrito por Frei Nicolau Emérico (1320 – 1399), da Ordem dos Pregadores e grande Inquisidor de Aragão, intitulado O Manual dos Inquisidores, regulamentava a tortura para obter confissões de hereges e bruxas. Uma outra obra, de autoria dos dominicanos Heinrich Kramer e Jacobus Sprenger, o Malleus Maleficarum (Martelo dos Bruxos), dedicava-se exclusivamente aos crimes de bruxaria. Se em nossos dias a tortura é escondida nos porões das ditaduras, naqueles radiosos dias do Medievo era regulamentada publicamente por autoridades eclesiásticas.

Muitos eram os métodos para descobrir se uma mulher era bruxa. Os mais populares eram as chamadas ordálias, ou juízos de Deus. Eram de uma simplicidade e eficácia extraordinárias. A acusada era amarrada pelos braços e pernas e jogada num rio. Se não afundasse, era óbvio que era feiticeira: a água, elemento puro, não aceitava a bruxa, elemento impuro. Era então enviada à fogueira. Se afundasse, era porque a água, elemento puro a considerava também pura. Morria afogada. Mas pelo menos sua alma estava salva.

Uma outra ordália era carregar nas mãos, de um ponto a outro, por uma distância de cerca de dez metros, um ferro em brasa. Se a infeliz tivesse as mãos queimadas, era óbvio que era bruxa ou herege. Se não as queimasse, ficava claro que era inocente.

A Igreja já se desculpou – com quase quatro séculos de atraso, é verdade – pela condenação de Galileu Galilei. Mas jamais se desculpou pelas atrocidades da Inquisição. Pedir perdão seria igual a condenar dezenas de papas e isto o Vaticano jamais fez nem jamais fará. Ratzinger, herdeiro e guardião da tradição inquisitorial, preocupa-se em Angola com o sacrifício de meninos acusados de bruxaria.

Haja cinismo e falta de tato.