¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, julho 05, 2008
 
CAMPEREANDO PELOS PAGOS DOS HIBERBÓREOS



Leitores, perdão!

Vou ausentar-me, por não poucos dias, deste espaço. Ano passado, prometi à Primeira Namorada o sol da meia-noite. Estou cumprindo. Julho é o último mês em que eu viajaria à Europa. Estação alta, preços também. Temperaturas idem. Mas, se quero o sol da meia-noite, só em julho. Para onde vou, o calor não atrapalha. Será o verão boreal. Posso contar até com zero grau. Com sorte, até mesmo neve.

Subirei pelo litoral da Noruega, navegando pela Hurtigruten até Tromsø, e volto por Estocolmo, onde vivi meus dias de loucura juvenil. Até hoje não entendo muito bem como fui parar lá. Ou melhor, entendo. A Suécia era tida como uma versão terrenal do paraíso. Onde habitavam as adoráveis louras nórdicas. Ora, a idéia das adoráveis louras nórdicas me puxava fortemente. Atraído pelo mito, deixei no Brasil minha adorável loura gaúcha. Um ano depois, voltei aos braços dela. Chorando. As nórdicas constituíam um atrativo tão poderoso que nem me dei conta que vivi um ano em um país onde era proibido beber nos bares.

Sofro sempre que volto a Estocolmo. Foram dias de muitos sonhos. Giovanni Papini, escritor italiano morto em 1956 – que bem merece ser revisitado - tem um conto belíssimo, “O homem que não pode ser imperador”. Papini começa xingando quem o lê:

Leitor, quem quer que sejas, queria neste momento ter-te aqui, cara a cara, e cravar meus olhos nos teus, estreitar tuas mãos nas minhas e dizer-te em voz baixa: acreditas que vives, que vives de verdade, profundamente, inteiramente? Tua vida te parece tão bela e grande como a sonhaste nos dias ardentes da juventude?

E ainda mais baixo, simplesmente queria perguntar-te: tiveste uma juventude? Sentiste em ti, dentro de tuas entranhas, em teu sangue, algo que fermentava, que fervia, que se agitava, que tremia, que queria sair, derramar-se, inundar o mundo como um lago de chamas?

Sentiste algum dia, depois de alguma hora de inquietude, depois de um grande crepúsculo, depois dos versos de um poeta, sentiste que eras tu, tu em pessoa, o primeiro homem, o descobridor da vida, o descobridor do mundo? Não te pareceu mísera esta vida, e não te pareceu pequeno o mundo? Não desejaste a morte por amor à vida? Não experimentaste a avidez de Alexandre ante o céu distante?

Isto gostaria de pedir-te, vil leitor, homenzinho esquálido que estás lendo estas páginas, escutando as palpitações de uma vida alheia, porque não sabes realizar atos, porque não sabes viver por tua conta. Não te parece vil, covarde, covardíssima, a ação que estás cometendo? Uma cadeira te sustenta, à tua frente há papéis costurados, nesses papéis há signos pretos e tua alma sorri ou geme, vê ou entrevê, à medida que os signos vão despertando à força tuas imagens sonolentas. E tu crêes viver, creio, lendo livros. (...) Falo precisamente para ti e quisera ter-te frente a mim, para que sentisses na cara o cálido alento de meu desprezo. Eu te desprezo, leitor, te desprezo por uma razão terrível, por uma razão odiosa, dolorosa: me pareço muito contigo, sou quase como tu, leitor, talvez eu seja tu...


Quando jovem, fui esse vil leitor. Lia muito e pouco vivia. Sou filho de camponeses. Vivi meus primeiros dez anos no campo, sem conhecer cidade. Até hoje me sinto um pouco camponês. Ocorre que eu vivia junto a uma fronteira. Nasci a uns quinhentos metros do Uruguai, junto à Linha Divisória, onde marcos de concreto marcam os limites do país. A Linha coincidia com o horizonte. Desde criança, tive a noção que depois do horizonte estava o desconhecido. De légua em légua, havia um marco maior, o Marco Grande. No caso, o Marco Grande dos Moreiras, meu clã. Meu pai me erguia nos ombros e fazia-me subir no topo do marco. Me virava para o oriente e dizia: “Meu filho, fala para os homens do Uruguai”. Aí eu dava meia-volta e a ordem era outra: “Fala, meu filho, com os homens do Brasil”.

Me criei olhando para o anecúmeno. As fronteiras geram dois tipos de homem. Um, o nacionalista atroz, que sempre acha que seu país é o melhor. Outro, aquele que acha que não é bem assim e quer olhar o outro lado do mundo. Sou este segundo. Minha primeira viagem foi do Upamaruty, distrito rural de Livramento, a Dom Pedrito. Tinha dez anos e fui de bicicleta, por dez léguas de areia e barro. Decepção. As cidades, talvez por influência de contos infantis, eu as imaginava todas douradas e esplendorosas, com castelos e torres. Dom Pedrito era cinza, lhana, sem torres nem castelos. Mas pouco parei por lá. Fui depois a Porto Alegre, naqueles dias em que existiam trens. Gostava de ir até o último vagão, me sentava no estribo que dava para os trilhos e os via juntaram-se na distância. Dizem que paralelas não se encontram nem no infinito. Mentira. Eu as vi se encontrando.

Ranchos de beira de ferrovia iam passando e eu matutava: como pode alguém viver eternamente ao lado de trens que passam, sem ter a ambição de um dia viajar?

Continuei minha busca pelas cidades esplendorosas. Claro que Porto Alegre não era uma delas. Acabei caindo em Estocolmo, nesta cidade para a qual hoje volto saudoso. Cheguei em dezembro, em pleno inverno boreal. Nada de luminosidade, mas pelo menos lá estavam as torres e castelos. Jovem e arrogante como todo jovem, me senti como que conquistando o mundo. Vivia numa capital das mais sofisticadas do Ocidente e havia deixado para trás o infame Terceiro Mundo. Na chegada, me pareceu estar em Plutão, sensação que não me desagradou. Dos trópicos, eu só queria distância. Lá por fevereiro ou março, o sol resolveu dar o ar de sua graça. As suecas, nas praças e paradas de ônibus, abriam suas blusas, fechavam os olhos e expunham os peitos ao sol. Não por acaso, há um monumento em Estocolmo, o soldyrkare (o adorador do sol).

Havia um porém. Ou melhor, dois poréns. Não sei bem qual foi o primeiro ou o segundo. Por um lado, os hiperbóreos me queriam como lavador de pratos ou algo por el estilo. De outro, se eu havia deixado o Terceiro Mundo, também deixara nele a mulher que adorava. Naquelas noites hibernais e claras – a neve ilumina – eu permanecia estático na janela de meu quarto, olhando o vazio e o silêncio e sofrendo mortalmente a ausência de minha Baixinha. Certo dia, um amigo boliviano chamou-me à razão: Sos un boludo, che! En Brasil hay una mujer que te quiere. Que haces en esta tierra de hombres tristes?

Voltei. Já contei, mas conto de novo. Na Suécia, fui contaminado por um mal nórdico, crônico e sem cura, a resfeber. Febre de viagens. Quem um dia bota o pé nas encruzilhadas deste vasto mundo, não consegue parar mais. Continuei minha busca de cidades esplendorosas. Fui para Paris. Tinha trinta anos.

Lá, fui acometido de uma dura epifania. Aos trinta, Napoleão já tinha conquistado o Egito. Alexandre havia conquistado o Oriente. Quanto a mim, sequer conseguira organizar meu exército. Volto a Papini:

Um dia, um homem pegou suas roupas, envolveu-se numa capa e saiu de casa, rumo aos país do Leste, para conquistar o mundo. Estava cheio de pensamentos. Seu coração era maior que o mundo. E pensava: conquistarei um reino tão vasto, que os correios encanecerão antes de chegar a seus confins para levar minhas mensagens. Conquistarei um tesouro tão grande, que um dia poderei encher um lago de moedas de outro, se quiser. Gozarei brancas mulheres em camas da cor do mar. Derrubarei inimigos terríveis, nas montanhas, com o fogo de meu olhar. Hoje sou um homem pequeno e pobre, e só uma capa me cobre, mas meus pensamentos são magníficos e quero chegar a ser senhor de tudo que existe e dono de tudo que vive.

Este homem foi a uma cidade e quando anunciou que queria ser rei e conduzir os homens à guerra para conquistar um grande reinado, todos riram a seu redor. Pensou então em castigar aquela cidade quando fosse poderoso e se dirigiu a uma outra, onde lhe aconteceu o mesmo. E assim andou por todo o mundo, e em todos os países riam-se dele e lhe davam dinheiro, tomando-o por um louco mendigo. Finalmente, um dia se encontrou diante de sua casa.

Nada havia mudado: só suas sandálias estavam gastas, sua capa cheia de buracos e seus cabelos se haviam tornado brancos. Entrou em casa e pensou: ‘Ninguém quis seguir-me. Não tive força para erguer sequer um só exército. Não conquistei nem mesmo um tesouro. Nunca serei, ao que tudo indica, dono do mundo.

Pôs-se então a meditar sobre sua sorte e permaneceu melancólico durante vários dias. Mas certa manhã – era março e nos prados já surgiam as primeiras flores amarelas – despertou alegre e disse a si mesmo: Finalmente compreendi meu destino. Estive cego ao sair a conquistar o domínio do mundo. O que acreditava ser isso não é o verdadeiro, o real, o mundo supremo, senão o mundo das aparências, dos sentidos, do engano. É o mundo do arado e do mercador. O mundo verdadeiro só se descobre no pensamento, e eu posso ser dono dele quando quiser desde que busque em mim, no mais profundo de mim mesmo. E aquele homem – não esqueçam – foi o pai de todos os poetas, o pai de todos os metafísicos, o pai de todos os sonhadores. Ele fundou a dinastia daqueles que, não possuindo um pedaço do mundo real, fabricam para si mesmos a cada dia cem pequenos mundos de alento, de pó e de barro. E tu – leitor – e eu, e todos nossos companheiros, somos os últimos descendentes do homem que não pode ser imperador.


Não que eu quisesse ser imperador. Este projeto não estava em minha mente de camponês. Tampouco considero que o mundo que vi seja miragem. Mas... um país é lindo quando nele existe a quem amamos. Como o personagem de Papini, não conquistei o mundo. Mas sim algo mais importante que o mundo, a mulher que me acompanhou por quatro décadas. E por outras tantas acompanharia, se ela não tivesse partido.

Vou rever, nos próximos dias, meus dias de jovem. Quero mostrar à Primeira Namorada a Karlaplan, aquela praça belíssima onde um dia morei. De paisagem cambiante, era hirta de neve no inverno, plena de verde no verão, florida na primavera e dourada no outono. Skansen, ilha onde eu chegava como aquele judeu, caminhando sobre as águas. Era inverno e o mar estava congelado. Kungsträdgarden – o Jardim do Rei, em língua de gente – onde um dia reencontrei uma namorada que há anos havia deixado em Porto Alegre. Gamla Stan – a Cidade Velha – onde chorei naqueles botecos centenários, abraçado a suecas e finlandesas, lembrando da mulher querida que ficara no Sul.

Voltarei por Paris, questão de revisitar aqueles bares onde um dia fui feliz. Não que não o seja hoje. Mas o correr dos anos nos faz olhar com nostalgia os dias de juventude. Será uma viagem mais no tempo que na geografia. Navegarei por mares sem internet. Conto com a compreensão de quem me lê.

PS - Por uma pane na rede no dia da partida de São Paulo, não pude postar esta crônica. Em verdade, já estou em Oslo. Cheguei com uma temperatura inusitada, 27 graus. A cidade está orgiaca. Mais animada, eu até diria, que Madri ou Barcelona. Conto na volta.