¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, fevereiro 18, 2008
 
O PODER DAS INTERPRETAÇÕES



Acabei de ler um belo estudo sobre a Bíblia, que se intitula precisamente A Bíblia, da teóloga Karen Armstrong. A autora remexe nas camadas mais profundas do Pentateuco e agora passei a entender porque Jeová ora se chama Jeová, ora se chama Eloim. Os extratos mais antigos do Pentateuco – ou Torá, para os judeus – teria duas vertentes: um épico sulista de Judá que os estudiosos chamam de J, porque seus autores sempre chamavam seu Deus de Jeová, e uma saga do norte conhecida como E, porque esses historiadores preferiam o título mais formal de Eloim. Mais tarde essas duas histórias distintas foram combinadas por um editor para formar a história única que constituiu a espinha dorsal da Bíblia hebraica.

O livro de Armstrong é leitura fundamental para quem queira entender o Livro a fundo. Recomendo vivamente. Dele se deduz, por exemplo, que o próprio Jeová acreditava em outros deuses, obviedade que choca muito crente. É só em Isaías que Jeová passa a se considerar único. “Sou Jeová, inigualável. Não há nenhum outro deus além de mim”.

Cito Armstrong:

“Tanto J como E tinham, por exemplo, concepções de Deus muito diferentes. J usava imagens antropomórficas que causariam embaraço a exegetas posteriores. Jeová passeia pelo jardim do Éden como um potentado do Oriente Médio, fecha a porta da Arca de Noé, irrita-se e muda de idéia. Contudo, em E havia uma concepção mais transcendente de Eloim, que mal “fala”, preferindo enviar um anjo como seu mensageiro. A religião israelita posterior iria se tornar profundamente monoteísta, convencida de que Jeová era o único Deus. Mas nem J nem E eram monoteístas. Originalmente, Jeová fora membro da Assembléia Divina dos “santos”, que El, o poderoso deus de Canaã, havia presidido com sua consorte Aserá, e Jeová era o santo de Israel. No século VIII, Jeová havia expulsado El da Assembléia Divina e reinava sobre uma multidão de “santos”, guerreiros do exército celeste. Nenhum dos outros deuses podia se igualar a Jeová na fidelidade a seu povo. Nisso ele não tinha pares, não tinha rivais. Mas a Bíblia mostra que até a destruição do templo por Nabucodonosor, em 586, os israelitas também adoraram grande número de outras divindades”.

Um dos momentos do livro que mais me surpreendeu foi a revelação da exegese rabínica da midrash, na qual o significado de um texto não é evidente em si mesmo. O exegeta tinha de ir a sua procura, porque cada vez que um judeu se confrontava com a palavra de Deus na Escritura, ela significava algo diferente. A Escritura era inesgotável. Os rabinos gostavam de salientar que o rei Salomão usara três mil parábolas para ilustrar cada versículo da Torá e podia dar 1.005 interpretações de cada parábola - o que signficava que havia três milhões e 15 possíveis exposições de cada unidade da Escritura. Quer dizer, se a Bíblia diz isto, você pode perfeitamente interpretar como sendo aquilo. Cada rabino, uma sentença.

Vejamos este singelo versículo do Gênesis: "Porque o meu anjo irá adiante de ti, e te introduzirá na terra dos amorreus, dos heteus, dos perizeus, dos cananeus, dos heveus e dos jebuseus; e eu os aniquilarei".

Um bom especialista na midrash talvez pudesse chegar legitimamente à conclusão que Jeová recomendara enviar beijos e flores aos amorreus, aos heteus, aos perizeus, aos cananeus, aos heveus e aos jebuseus.

Esta orgia interpretativa contaminou inclusive os cristãos. Orígenes, por exemplo, nunca se deixou levar pelo sentido literal dos textos bíblicos. Abraão prostitui Sara para receber mordomias de faraó? Nada disso. Para Orígenes, Abraão queria partilhar a extraordinária virtude de Sara.

Da mesma forma, quando Sulamita diz: “Beije-me ele com os beijos da sua boca; porque melhor é o seu amor do que o vinho”, por favor, ninguém imagine que se trata de uma poema erótico. É apenas uma imagem do amor de Cristo por sua Igreja.