¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

sexta-feira, novembro 30, 2007
 
SOBRE A EXTRAORDINÁRIA CAPACIDADE
DE SÍNTESE DO SUPREMO APEDEUTA




Em visita às favelas da zona sul do Rio de Janeiro, o Supremo Apedeuta foi rápido no sofisma: "Rico quando mora em morro é chique. Pobre na favela é vergonha. Vamos mudar isso."

Ouviu o galo cantar mas não sabe onde. Não é que pobre na favela seja vergonha. Pobreza é vergonha em qualquer parte do mundo. Além disto, as favelas ostentam uma vergonha a mais, a de serem territórios livres para o tráfico. De constituírem verdadeiros Estados dentro do Estado, sobre os quais não mais se exerce a autoridade do governo central. Nem mesmo do governo estadual e muito menos do governo municipal.

Brasileiro que um dia passou pela Costa Amalfitana tem uma estranha sensação de déjà-vu. Cidades como Positano, Amalfi, Ravelo, belíssimas e de alto padrão de vida, têm a mesma estrutura vertical de nossas favelas. Com uma diferença: lá só mora quem é rico. Serão certamente as mais caras cidades da Itália. Não é que rico seja chique quando mora no morro. Ser rico é ser chique. Seja no morro, seja no asfalto.

Em seu português arrevesado, continuou o Apedeuta: "Houve um tempo em que favela era uma coisa poética. Quem não lembra da Saudosa Maloca? Quem não lembra de Barracão de Zinco. Mas, hoje, favela, embora more uma maioria de pessoas honestas e trabalhadores, pelas dificuldades geográficas e pela degradação, a gente percebe que as favelas mais violentas são reprodutoras de mais violência, de jovens que não têm oportunidade".

Não disse água sobre o grande drama das favelas, o das drogas. Não é que a favela fosse poética nos tempos da Saudosa Maloca. Por um lado, o morro não estava tomado pelas drogas. Por outro, no mundo das artes nunca faltou quem gostasse de poetizar a miséria. Quem cantava as virtudes do barracão de zinco nunca morou em um barracão de zinco.

Lula tem uma grande virtude, a capacidade de síntese. Em pequenas frases, consegue sintetizar uma montanha de bobagens. Isso não é para qualquer um.

 
UMA OUTRA QUESTÃO TEOLÓGICA:
PREPÚCIOS NO FREEZER?




A empresária Rita Hirsch foi morta a tiros ontem pela manhã dentro de seu carro em plena marginal Tietê, na região da Penha (zona leste de São Paulo). O veículo foi abordado por quatro homens que ocupavam duas motos. Hirsch era judia. Três membros da comunidade israelita foram à delegacia e entregaram ao filho da vítima, uma garrafa com uma porção de terra, recolhida do local do acidente, onde caíra um pouco de sangue dela ao ser retirada do carro por policiais. "O que é do corpo precisa ser enterrado com o corpo", disse o rabino Shie Pasternak, da comunidade israelita de SP.

O rabino está levantando um grave problema teológico. Se o que é do corpo precisa ser enterrado com o corpo, como fazem os judeus em relação aos prepúcios cortados? Guardam-nos em um freezer? Ora, os judeus já têm duas geladeiras em casa, uma para carnes e outra para lacticínios. Precisarão manter uma terceira?

 
AIDS: OBA-OBA E ÁGUA FRIA



Na Folha de São Paulo de hoje, escrevem os médicos Vicente Amato Neto e Jacyr Pasternak:

No Brasil, nos entusiasma o fato de que nosso programa de assistência aos pacientes com HIV/Aids continue funcionando tão bem; é quase inédito, neste país, que um plano de longo prazo, tocado por governos politicamente divergentes, tenha se mantido e expandido de maneira adequada com a cobertura que alcançou.
Isso nos faz perguntar por que em outras situações clínicas mais comuns não há iniciativas tão bem organizadas e articuladas. Mas é aquela história, se todos os componentes da área da saúde imitassem o nosso sistema de atenção aos acometidos de HIV/Aids, o Brasil seria a Suécia.


No Uol Online, declara o virologista Robert Gallo, 69, co-descobridor da doença:

Folha Online - O programa brasileiro de combate à Aids é visto como um modelo nessa área...
Robert Gallo - Não fique tão orgulhoso. Vocês não são um modelo.
Folha Online - Por quê?
Gallo - O que vocês estão liderando, que caminho estão apontando? O Brasil trata seu povo, assim como os Estados Unidos. Qual é o modelo? Modelo para quem? Eu não entendo...
Folha Online - Talvez porque o tratamento é gratuito e atinge um grande número de pessoas, além de a epidemia estar razoavelmente controlada aqui.
Gallo - Todos são tratados na Suíça, na Alemanha, na Itália, na Inglaterra, no Canadá. Por que vocês seriam um modelo?
Folha Online - Então o senhor não concorda com isso?
Gallo - A realidade é o seguinte: quando você diz que é um modelo, está implícito que todo mundo deve seguir você. Mas a maioria dos países já faz isso [tratar gratuitamente os pacientes com Aids]. Apenas países que são muito, muito pobres não fazem isso. Vocês são modelos para quem? Se você quer saber se o Brasil está fazendo um bom trabalho com respeito ao tratamento contra a Aids, eu digo que sim. E isso é ótimo, maravilhoso. Mas se você diz que o Brasil é um modelo, isso significa que vocês são uma lição para mim. Por que vocês seriam uma referência para mim? Talvez sejam um modelo para a África do Sul, para alguns países, mas não para o mundo inteiro, já que a maioria dos países realmente trata seus pacientes com Aids.

 
Crônicas da Guerra Fria (52)


QUESTÕES TEOLÓXICAS


São Paulo - ¿Como admitir que a Deus non lle saíra o home un pouco mellor de querer crealo á súa imaxe e semellanza? ¿En que cabeza cabe que o home, esse saco de inmundicia e de soberbia, a partes iguais, poida parecerse a Deus? ¿Como Deus na súa infinita bondade, na súa infinita sabedoria, puido errar de semellante estrepitosa maneira co invento do home, esta besta débil e depredadora que se entretén coa guerra e morre de cáncer? Non, non, o erro orixinase ó confundir a Deus, esa noción eterna e, por tanto, que nin empeza nin acaba, con química e o ciclo do carbono, que son duas nocións continxentes e abrangibles con maior ou menor esforzo.

Se o leitor entendeu o que leu acima, meus cumprimentoss: conhece mais uma língua e não sabia. A língua de tão saborosa pronúncia é o galego, e o texto, intitulado Disquisicións teolóxicas, é de Don Camilo José Cela, prêmio Nobel de literatura, do qual tive a honra - e o compromisso - de traduzir dois romances ao brasileiro. De certa forma, foi Don Camilo que me levou à Galícia. Fascinado com aquela música que ouvimos em Mazurca para Dois Mortos, fui dar uma olhadela naquelas “xeografias”. Em Santiago de Compostela, na estação rodoviária, encontrei Marina Pérez Rodriguez, atenta observadora dos trens que passam por aquela cidade de sonho e sempre disposta a introduzir o viajante perplexo na magia da Galícia. Pois é Marina que me envia esta crônica de Cela. Sei la por quê, lembrei de Jeffrey Dahmer, o canibal de Milwaukee.

Matou 17 pessoas - pelo que se sabe até agora -, decepou-as e comeu partes de suas vítimas, tendo guardado alguns órgãos no refrigerador para comer depois. Praticava sexo com seus convivas tanto quando vivos como depois de mortos. Quanto a comê-los, só degustava a carne daqueles que mais o atraíam. Em Paris, tive ocasião de cruzar com um destes seres de paladar tão exigente. Estudávamos literatura na mesma universidade, La Sorbonne Nouvelle (Paris III). Meu colega, cujo nome me escapa, era japonês e acabou comendo a namorada. Literalmente, bem entendido. Conservou durante semanas pedaços da moça e os fritava aos poucos.

Amor é fogo. Hoje, meu colega de estudos comparatistas vive no Japão, está livre e vai escrever um livro. Que certamente vai virar filme e lhe trará rios de dinheiro. Eu, que só comi minhas namoradas de mentirinha, continuo tendo de lutar pelo pão de cada dia.

Há uma constante nas fotos de Dahmer, quando ele desfila ante seus semelhantes: os homens que vão julgá-lo - entre os quais, bem ou mal, nos incluímos - olham o canibal com terror e perplexidade. Como se Dahmer pertencesse a outra espécie que não a humana. Quando na verdade nada fez senão praticar um gesto que está nos fundamentos da cultura cristã. Mais ainda, é exercido diariamente em todos os países do Ocidente.

No Deuteronômio, um dos principais livros da Bíblia, a hipótese é aventada como ameaça: “Então, na angústia do assédio com que o teu inimigo te apertar, irás comer o fruto de teu ventre: a carne dos filhos e filhas que Javé teu Deus te houver dado”. Em Jeremias, enciumado com os cultos a Baal, Javé anuncia os dias em que o vale de Ben-Enom se chamará Vale da Matança: “Eu farei que eles devorem a carne de seus filhos e a carne de suas filhas: eles se devorarão mutuamente na angústia e na necessidade com que os oprimem seus inimigos e aqueles que atentam contra a sua vida”.

Nos cinco poemas das Lamentações, livro atribuído a Jeremias, cujo tema central é a destruição de Jerusalém, volta o tema recorrente: “As mãos de mulheres compassivas fazem cozer seus filhos; eles serviram-lhes de alimento na ruína da filha de meu povo”.

Em Ezequiel, contemporâneo mais jovem de Jeremias, que denuncia a perversidade de Jerusalém e proclama a iminência de seu assédio e destruição, Javé volta a lembrar: “Farei no meio de ti o que nunca fiz e como não tornarei a fazer, isto por causa de todas tuas abominações. Por esta razão os pais devorarão os filhos, no meio de ti, e os filhos devorarão os pais”.

De fato, o canibalismo só ocorre no II Reis. A fome impera durante o cerco de Samaria, quando uma mulher diz à outra: “Entrega teu filho, para que o comamos hoje, que amanhã comeremos o meu”. A primeira mãe cozinha seu filho e o divide com a segunda e, no dia seguinte, lhe pede: “Entrega teu filho para o comermos”. Mas a outra foge ao trato e esconde o filho.

Maldição no Antigo Testamento, no Novo o canibalismo se torna virtude. Durante a Santa Ceia, Cristo oferece seu corpo e seu sangue para que os participantes entrem em contato com o sacrifício, comendo do sacrificado. É o que os católicos romanos chamam de transubstanciação. Todo católico, quando comunga, não está bebendo o vinho ou comendo o pão como símbolos do corpo de Cristo. Está, de fato, bebendo o sangue e comendo a carne do Cristo.

No sacramento do altar, depois da consagração, não há senão o corpo e o sangue de Cristo. A doutrina da igreja Católica é clara. Segundo Santo Ambrósio, “antes da benção há uma espécie que, depois da consagração, se transforma no corpo de Cristo”. Santo Hilário confirma: “sobre a verdade concernente ao corpo e sangue de Cristo, não há lugar para dúvidas. Pois, conforme a afirmação mesma do Senhor e nossa fé, a sua carne é verdadeiramente comida e o seu sangue verdadeiramente bebido. Assim como Cristo é verdadeiramente filho de Deus, assim a carne que recebemos é verdadeiramente carne de Cristo, e a bebida é verdadeiramente seu sangue”.

São Tomás, na Suma Teológica, encerra a discussão, com uma ressalva: “que o corpo e sangue de Cristo estão verdadeiramente no sacramento do altar, não podemos aprendê-lo nem pelos sentidos nem pelo intelecto; mas só pela fé, que se apoia na autoridade divina”.

Tomás, o Doutor Angélico, vê na eucaristia a suprema celebração da amizade: “E porque é próprio por excelência à amizade, conviver com os amigos, Cristo nos prometeu como prêmio sua presença corporal. Por isso ele próprio disse: O que come minha carne e bebe meu sangue, esse fica em mim e eu nele. Logo, este sacramento é o máximo sinal da caridade e o sublevamento de nossa esperança pela união tão familiar de Cristo conosco”.

Os jornais me falam da infância de Dahmer, dos pais de Dahmer, dos traumas de Dahmer. Só não me contaram até agora qual é a religião de Dahmer, se é cristão ou luterano, calvinista ou simplesmente ateu. Seja qual for sua condição, nasceu em um caldo cultural cristão. Talvez jamais tenha ouvido falar de Tomás de Aquino. Mas intuiu muito bem suas lições: só se deve comer a carne de quem se ama.

Falava de Cela, que ao falar do homem, pela voz de seus personagens, o define como um “saco de inmundicia e de soberbia”. É o que muita gente deve estar pensando de Jeffrey. Herdeiros de uma tradição cultural que tem o canibalismo como suporte, não vejo como condená-lo. Talvez o leitor não tenhas se dado conta, mas Jeffrey é nosso irmão. Afinal, somos filhos do mesmo pai, daquele pai que sempre adorou sangue. Pediu inclusive a Abraão que sacrificasse seu filho Isaac. Não faltará quem objete: mas Isaac foi poupado. Pode ser. Mas na primeira esquina do milênio, Javé ferrou o Cristo. De cuja carne muito comemos, com amor e devoção, nos dias de juventude.


(Porto Alegre, RS, 17.08.91)

quinta-feira, novembro 29, 2007
 
UM COCHINILLO, UM RIOJA, UMA
ROMENA E UM ABRAÇO EM TOLEDO



Sempre que vou à Espanha, reservo um dia para Toledo. Graças aos trens de alta velocidade, a antiga capital espanhola está agora a 25 minutos de Madri. Em Toledo, tenho dois compromissos solenes: um almoço na Casa Aurélio e uma visita à catedral, uma das mais soberbas da Europa. Mas atenção! Há três restaurantes na cidade com esse nome, sendo que dois deles ficam na rua Sinagoga. A cozinha é a mesma nos três e excelente. Mas a casa da Sinagoga 1 é a mais aconchegante. Pelo menos para mim, já que suas paredes são revestidas de estopa e de arreios e instrumentos do campo. Uma vez no Aurélio, só consigo ver três pratos à minha frente, o cochinillo, o cordero lechal e a perdiz toledana.

Mas não consigo optar. Vou direto ao cochinillo. Enfim, como nunca viajo só, minha parceira geralmente pede um lechal e fazemos um intercâmbio cultural. Tudo isto regado a um Marqués de Cáceres. Ou de Riscal. Ou melhor, a um Marqués de Cáceres mais um Marqués de Riscal. De modo que quando chego à catedral, sempre tenho a nítida impressão que suas naves estão girando suavemente. Minha Baixinha adorada também chegava à catedral no mesmo estado - como direi? - de espírito que eu. Na última vez que esteve lá, sufocada pela beleza, começou a chorar. Uma senhora aproximou-se dela, quis saber se não sentia mal. Nada disso. Ela se sentia bem demais, e por isso chorava. A beleza, quando em excesso, sempre nos fez chorar.

Outro ritual que sempre cumpro em Toledo é subir a pé aquele penhasco do Tajo. Que é o mesmo Tejo que banha Lisboa. É a maneira que encontro de medir minha forma física. Enquanto puder chegar ao Zocodovar a pé, é porque sou jovem. Sem falar que a subida, mais ou menos uma hora penhasco acima, é belíssima. Confesso que desta última vez, em março passado, preferi tomar um ônibus. Estava com las bisagras emohecidas – como diriam os espanhóis. Isto é, com as dobradiças enferrujadas. Um problema de joelho me fez pensar duas vezes antes da empreitada. Mas Toledo não perde por esperar. A próxima vez será a pé.

Mas não era disto que pretendia falar. E sim da Romênia, que surge de repente nos grupos de mais alto IDH, da ONU, um pouco antes do Brasil. A ONU que me desculpe, não acredito. Aliás, em editorial publicado hoje, o Estadão punha em dúvida esta classificação. “Causa compreensível estranheza encontrar o Brasil abaixo de países como a Romênia, Albânia e Macedônia - que despejam sem cessar legiões de imigrantes na Europa Ocidental – para não falar de Líbia, Tonga, Maurício e assimilados”. Causa estranheza mesmo. Talvez a explicação esteja na antiga mania de maquiar dados, típica dos antigos países socialistas.

Bom, eu estava na Casa Aurélio fingindo que lia o cardápio – pois não preciso de cardápio para saber o que quero quando estou lá – e fui atendido por uma espanhola adorável, jovenzinha e linda, doce e falando um impecável espanhol de Castilla, la Vieja. Aquela garçonete era um valor agregado ao cochinillo e ao vinho. Sem falar que a proximidade física de uma mulher bonita é sempre agradavelmente perturbadora. Puxei de minha melhor pronúncia para não fazer feio ante a moça e – surpresa! – descubro que ela era romena e estava há apenas dois anos na Espanha. Não sei o que me deu, afinal eu ainda nem degustara o riojano, mas fiquei comovido até o âmago.

Já falei de minhas desventuras na Romênia, o país mais miserável do continente europeu que me foi dado conhecer. De repente, ali na minha frente, eu via uma cidadã romena, jovem e linda, feliz da vida, perfeitamente integrada à vida espanhola e mais, falando aquele espanhol divino. Escapara do inferno, pensei, e tinha agora um futuro risonho pela frente. Falei de meus dias em Bucareste, Mangalia e Constanza nos anos 80 e ficamos um bom tempo conversando. Bom, me disse a moça, “as coisas melhoraram um pouco de lá para cá. Se voltares a Mangalia, não vais reconhecer a cidade”. Mas é claro que ela não trocaria o novo país pelo antigo. Com a vantagem de que, com o fim do comunismo, sempre podia voltar para rever parentes e amigos.

Ela voltou a seus afazeres. Éramos três. O Rioja chegou, o cochinillo, o lechal e a toledana também. Não consegui conversar muito com minhas parceiras de viagem. No fundo, eu vibrava com a vida nova da menina. Certamente teria um namorado que a queria bem, estava fazendo universidade, um dia teria ou não teria filhos, mas já tinha um belo futuro assegurado nel país más lindo del mundo, como dizia Camilo José Cela. Durante uma viagem longa por vários países, nossa sensibilidade se torna a cada dia que passa mais aguda, e eu estava num daqueles dias de lágrimas a flor da pele. Eu estava feliz com a felicidade dela. Quando o maître me trouxe a conta, pedi:

- Traeme también la rumana.

Ela veio. Acho que sabia o que a esperava. Abracei-a com todos meus braços e beijei-lhe as faces. Sem falar. Se falasse, ela ouviria uma voz quebrada pelo pranto. Síndrome de Stendhal ou efeito dos Riojas? Não sei. E fui visitar a catedral tomado por insólita alegria interior.

 
Crônicas da Guerra Fria (52)

PERCEBES EN LOS PENDEJOS


Que estamos vivendo uma época de nivelamento por baixo, isto não é novidade. Os jornais, em vez de manter uma linguagem culta e precisa, optam pelo genérico e ao alcance de todos. Em vez de excitar o leitor a buscar o sentido de um conceito mais complexo, preferem respeitar seu patamar de ignorância e dispensá-lo da leitura de um dicionário. Não sei se já foi feita alguma pesquisa sobre o assunto, mas duvido que no Brasil alguém precise conhecer mais de quinhentas palavras para ler as notícias da imprensa diária. Televisão, nem falar. Orangotango que conseguir dominar a proeza de entender cem palavras, já domina o universo da rede Globo.

Ora, lidar com quinhentas palavras pouco ou nada nos distingue de nosso primo, o Pithecanthropus erectus. Pode ser suficiente para candidato a deputado, animador de auditório, campeão de futebol ou de fórmula 1. Ou fórmula 2. Aliás, já começo a falar de coisas que não entendo, até hoje não sei qual é a diferença entre uma e outra. Ou melhor, talvez saiba. De meus dias de Florianópolis, fui contemplado pela ingrata epifania: uma polui mais, sonoramente, que a outra. Qual polui mais ou menos, não sei. Deixo a resposta a esses analfabetos de final de milênio, que já se julgam eruditos mal conseguem pronunciar um quadrissílabo tipo cilindradas.

Este reducionismo, rumo ao primo aquele que até hoje anda pendurado pelo rabo nas árvores, parece estar contaminando até mesmo este jornal. Outro dia, nesta página, falei em Cérbero. Foi overdose, as sinapses de meu revisor entraram em curto circuito e ele preferiu, por via das dúvidas, grafar cérebro. Acontece que Cérbero é Cérbero e cérebro é mercadoria cada vez mais escassa. Outro dia, escrevi que a avenida Berrini, em São Paulo, era uma contrafação de La Défense, em Paris. Parece que a palavra já não tem registro no cérebro de quem é pago para bem grafá-las. Saiu contratação. Outra vez, falei na polícia turística da Grécia. Não deu outra, o redator grafou política turística. Ainda no Egeu: certa vez falei na cidade cultual de Delos. Claro que o redator corrigiu para cidade cultural. Fora outras que já nem lembro. Mas não era disto que pretendia falar.

Minto. Era disto mesmo que estava falando, desta tendência cada vez mais freqüente no jornalismo contemporâneo de descer ao nível do analfabeto, ao invés de tentar erguê-lo ao nível da língua culta. Orwell já analisou em profundidade o assunto em 1984, quando criou a novilíngua, que aliás não foi criação sua, mas dos finados (perdão, leitor!) comunossauros. Pois esta saudade de selva e cachos de banana, ainda embutida nos genes do homem contemporâneo, manifestou-se agora com vigor em uma das últimas determinações da alcaiceria de São Paulo. Os cardápios da capital devem agora ter seus pratos traduzidos ou explicados em português.

O que me faz voltar a Florianópolis e à praça XV. O penúltimo prefeito, ilustre representante da cultura ilhoa, não conseguia se fazer entender quando falava em praça Xivi. Uma vez esclarecido, não teve dúvidas. Baixou bando: ficam proibidos, a partir de agora, números romanos na designação de ruas ou praças. Para contentamento geral da nação, digo, da ilha, a praça Xivi agora é praça 15. Volto a São Paulo. Vai ver que a Erundina andou se atrapalhando em algum restaurante francês e decidiu seguir o safado exemplo do prefeito florianopolitano.

Acontece que gastronomia é um nível superior de cultura. Comer, todos comem. Até o faminto come. Se não comesse, não seria faminto, mas defunto. Comer é um imperativo orgânico, que gere a agenda tanto da ameba quanto a do Lula. Saber comer já é outro assunto. Quanto a comer, não para encher a pança, mas para satisfazer o palato, bom, isso é privilégio de quem já não tem a premência metabólica da ameba ou do classe média inculto.

Em Florianópolis, cheguei a fazer campanha, não para que os cardápios fossem traduzidos, mas que pelo menos fossem grafados corretamente. Pois restaurador que não sabe escrever o que serve, não tem a mínima idéia do que está servindo. Lá eu vi, juro que vi, filé à guarani por filé garni. Vi camarão à ilha-e-óleo por camarão ao alho-e-óleo. Eu não pedia tradução. Fossem os pratos grafados com acerto e servidos honestamente, já me dava por contente.

Sem falar que culinária é geralmente intraduzível. Churrasco, por exemplo. Americanos ou europeus podem achar que entenderam o prato ao pedir barbecue. Mas o churrasco mesmo é outra coisa. Mocotó ou dobradinha podem lembrar as trippes à Caen, mas com elas nada têm a ver. Cassoulet não é feijoada e duvido que alguém possa traduzir paella, sem pelo menos usar uma dez palavras. A intenção da prefeitura paulistana parece ser dicionarizar o cardápio. Melhor faria se nos explicasse porque desvia verbas da merenda escolar para financiar congressos da CUT.

Pois é o que andam fazendo os salvadores da humanidade, cá em São Paulo. Para proclamar ao mundo que as criancinhas do Brasil passam fome, consomem a verba destinada a alimentar crianças que passam fome, na organização de congressos onde denunciam a fome das criancinhas. Mas falava no nivelamento por baixo. Na Bahia, estado que nos legou dois dos maiores embustes nacionais - o Rui Barbosa e o Jorge Amado - a prefeitura sancionou lei que proíbe nomes estrangeiros em prédios residenciais e comerciais em Salvador. Parece que para evitar que o cidadão médio confunda, por exemplo, Bois de Boulogne com bois da Bolonha. Avante, baianada. Mais um esforço e este país ainda vira uma imensa Santa Catarina!

Que estamos rumando ligeirinho à noite dos tempos, disto não tenho dúvida alguma. Outro dia, a respeitável Folha de São Paulo cometeu uma gafe que é sinal dos tempos. A notícia era sobre Malcolm X, o líder terrorista negro aquele que só tem mídia entre os botocudos, pois nossas esquerdas ainda sofrem da doença infantil do anti-americanismo. Pois bem, a redatora, sem saber do que falava e tentando se fazer entender junto ao leitor, não teve dúvidas: tascou Malcolm 10. Cá entre nós, Praça Xivi tem mais charme.

Cardápios, era disto que eu falava. Em Madri, lá pelas dez da madrugada, eu adorava começar o dia tomando um carajillo con porras. Nestas circunstâncias, até concordo com a alcaidessa, é melhor traduzir: café batido com conhaque e uma espécie de biscoito que na Espanha se chama porra. Em Cuenca, me encharquei em litros de Q, o vinho da região. Brasileiro que sabe como se chama em espanhol esta letra, já deve estar imaginando minha perplexidade quando o garçom me perguntou:

- El Q, usted lo quiere blanco, tinto o rosado?

Enfim, espanhol não é vernáculo. Mas em Lisboa, cansei de comer febras, pregos, bifanas e safadinhas. Nestes dias em que o Antônio Hoauiss fala em unificação do idioma, como é que ficamos? Teríamos de traduzir do português para o brasileiro? Mas isto implica admitir que uma língua já são duas, fato que qualquer tradutor europeu ou americano já conhece, mas que os universitários brasileiros teimam em negar.

Lisboa, além das ginjas (com elas ou sem elas?) e fados, me faz lembrar dois outros pratos, a sopa de grelos e os percebes. De grelos, gosto em qualquer geografia. Quanto aos percebes, ainda não firmei opinião. É um bichinho asqueroso, que parece ainda não ter decidido se pertence ao reino vegetal ou animal, mas muito apreciado pelos gastrônomos. Como as angulas e santolas, não têm gosto de nada. Resumindo, é aquela craca que dá em cascos de navios e postes submersos. O verme custa caro, se faz de difícil ao ser descascado, e o único prazer que nele encontrei foi literário. Como as colônias de percebes levam tempo para se formar junto a cascos, madeiras ou rochas, os espanhóis encontraram uma bela metáfora para definir um homem de raciocínio lento: es que tiene percebes en los pendejos.

Em bom português: tem percebes nos pentelhos. Este é, a meu ver, o mal que está afetando a alcaidessa.

(Porto Alegre, RS, 20.07.91)

quarta-feira, novembro 28, 2007
 
MINHAS CIDADES DILETAS - PARIS



Voltando às cidades onde é melhor morar. O documento da ONU está provocando um inusitado orgulho no jornalismo patrioteiro nosso. A Folha de São Paulo, por exemplo, mancheteia:

BRASIL ENTRA NO GRUPO DOS PAÍSES COM MAIS ALTO IDH

Na linha fina:

Documento anual das Nações Unidas afirma que brasileiros vivem em elevado grau de desenvolvimento humano

Ora, façam-me o favor! Estamos num inglório 70º lugar, logo após a Macedônia e a Albânia. Da Macedônia até entendo, estive lá nos anos 80, quando ainda era província da ex-Iugoslávia. Não vi em Skopje, a capital, um único mendigo nas ruas. Não vi os picos de riqueza do Brasil, mas muito menos nossos picos de miséria. Quanto à Albânia, a ONU que me desculpe, mas não consigo acreditar que tenha melhor IDH que o Brasil. Ainda nos 80, sob a ditadura de Enver Hoxha, era o país mais miserável do continente europeu, onde até mesmo os automóveis particulares eram proibidos. Até hoje lembro de um episódio significativo. A agricultura era feita na base da enxada e acusava-se o regime de Hoxha de não ter conseguido chegar ao trator. O ditador pôs então seus engenheiros a trabalhar e acabaram produzindo um trator, quadrado e um tanto antediluviano, mas trator. Um só trator, é bom salientar. Provado que o regime albanês conseguira fabricar um trator, o trator foi para um museu. Duvido que nestas últimas três décadas a Albânia tenha chegado a uma condição melhor que a brasileira.

O mesmo diga-se da Romênia, situada em 60º lugar. Ora, estive lá em 81 e confesso jamais ter visto em um país tanta miséria e escassez, a ponto de as pessoas disputarem a tapa um pedaço de carne em mercados de gôndolas vazias. Nem mesmo na Argélia ou Egito. Não acredito que de lá para cá a Romênia tenha se desenvolvido a ponto de suplantar o Brasil em qualidade de vida. Mais ainda: na lista da ONU, Cuba ocupa o 51º lugar. Não queiram convencer-me de que um país, onde as pessoas se jogam no mar em precárias embarcações para fugir ao horror, esteja melhor que o Brasil.

Volto então às minhas cidades diletas. Em segundo lugar, coloco Paris. Quando sonhava em bater pernas pelo planetinha, dizia, Paris sequer constava de meus projetos. Porque não constava, não sei. Mas Paris, em meus dias de guri, não me fascinava. A idéia que eu fazia da cidade era a de uma capital cheia de chaminés e túneis, herança das leituras dos Mistérios de Paris, de Eugéne Sue, dos três mosqueteiros e de mais alguns romances de capa-e-espada.

Entrei em Paris lá por 71. De trem. Isto é importante. A chegada de avião é muito brusca. A gente cai no aeroporto e de lá ruma direto à cidade. Por trem, é diferente, a cidade vai se revelando aos poucos. O trem vai até o centro e em marcha lenta. Aos poucos aquela arquitetura horizontal foi se mostrando, lá estavam as chaminés da Paris de Eugéne Sue e tudo o que eu imaginava da cidade. Os túneis, fui conhecer depois.

Minha primeira passagem foi rápida. Eu queria conhecer o continente todo e tinha pouco tempo para Paris. Além disso, jovem quando viaja sempre viaja com pouca grana. Não dá pra conhecer o melhor da cidade. Pretendia ir rumo ao Norte e contava meus centavos. Dos restaurantes, conheci apenas os mais acessíveis. Mas as baguetes, patês, queijos e vinhos, que tomei no hotel com minha Baixinha, foram suficientes para gostar de Paris. Com pouca grana, eu tinha acesso ao que de melhor a França oferece.

Voltei várias vezes a Paris. (A bem da verdade, volto quase todos os anos). Em 1977, foi para ficar. Tinha uma bolsa do governo francês e a correspondência da Caldas Júnior. Isto não constituía uma fortuna, mas já dava para freqüentar restaurantes com certa assiduidade. Deixei-me então conquistar pela cidade.

Certamente é a mais linda das grandes cidades do mundo. Para encantar-se não se paga nada. É só sair caminhando, para qualquer lado, e Paris vai se oferecendo com seus encantos. Você sai a passear sem maiores compromissos, passa pelo magnífico parque de Luxembourg, segue pelo boulevard Saint Michel e tropeça no Sena. À esquerda, a Conciergerie, à direita a Notre Dame, à esquerda o Palais de Justice e a Sainte-Chapelle, mais adiante o Louvre e o Pompidou, um pouco mais à direita o Palais Royal e a Place des Vosges, Opera e Madeleine, e por aí vai. Mude de bairro e lá estão la Dame de Fer – a torre Eiffel – os Champs Elysées e o Arco do Triunfo, ou o Pantéon, ou a Saint Sulpice ou as Tulherias. E por aí vai. Por onde for, é lindo. Este degustar Paris não custa nenhum vintém.

A cidade é pequena, pelo menos vista a partir da ótica deste monstrengo que se chama São Paulo. Pequena mas inesgotável. Vivi quatro anos em Paris e sempre que vou lá descubro algo novo. Vivesse dez anos, ocorreria o mesmo fenômeno. A cidade está cheia de encantos escondidos, que não se revelam ao turista. Você quer ver, dentro de Paris, um vilarejo bucólico? Vá até a Butte aux Cailles, no XIII, e se sentirá de repente no interior da França. Quer fazer um passeio insólito, mais ou menos inimaginável numa metrópole? Vá até a Promenade Plantée. Quer flanar numa arena romana? Entre numa portinhola discreta da Rue Monge, ali pelo nº 53, e você cai de repente na Roma antiga. Quer catacumbas? Vá até Denfert-Rochereau e desfile por paredes sufocantes de tíbias, fêmures e crânios.

Quer boa gastronomia, diversificada e representativa de cada região da França, de cada país da Europa? Basta olhar à sua volta. Quer vinhos de distintas cepas? Sirva-se a gosto. Uma das coisas que me agrada em Paris é que, como cada cruzamento de rua tem quatro esquinas, é cartesianamente dedutível que também tenha quatro restaurantes. Você quer produtos de tecnologia de ponta? Vá às três Fnacs de Paris. Quer ter uma sensação de Nova York? Pegue um R.E.R e vá até La Défense. E segure o queixo pra não cair.

Estive em Paris nos dias em que foi inaugurado o centro Georges Pompidou. A construção permaneceu o tempo todo escondida por imensos tapumes. Que foram derrubados, de repente, durante a noite. No dia seguinte, escândalo. Ninguém conseguia dizer se aquilo era lindo ou horroroso. Houve jornal que falou em “architeture du néant”, ou seja, arquitetura do nada. Nem eu soube como reagir. Não conseguia decidir se gostava ou não daquela coisa, que ora parecia fábrica com suas tripas de fora, ora parecia navio ancorado às margens do Sena. Hoje, não consigo imaginar Paris sem o Pompidou. A “coisa” está perfeitamente integrada ao antigo Marais, como se lá sempre tivesse existido.

Paris é paradoxal, pelo menos para nós, latinos. Costumamos alimentar uma relação de amor e ódio com a cidade. Durante os anos que lá vivi, xinguei Paris todas as semanas. Ernesto Sábato viu isto muito bem em Abadón, o Exterminador: “Y mientras hacés gestiones para que la Embajada Francesa te dé una de esas bequitas que luego sirve para hablar mal de Francia...” Falei mal da França o tempo todo em meus dias de Paris. Certo dia, um bom amigo me observou: falas mal de Paris, mas é a cidade para a qual mais voltas. Tinha razão. Já voltei mais vezes a Paris do que a qualquer cidade do mundo. Voltei lá mais vezes do que à cidade onde vivi minha adolescência. A conheço melhor do que São Paulo, onde vivo há 17 anos. Por uma razão simples: Paris é linda e cada esquina fica grudada na memória. Minha alma, eu a perdi por lá.

Então, Paris é a segunda cidade onde mais me parece ser bom viver. É a segunda porque tive a desgraça – ou ventura, como quisermos – de conhecer Madri. Não conhecesse Madri, seria certamente a primeira.

 
Crônicas da Guerra Fria (51)


REMEMBER NURENBERG



São Paulo - Quando Claire Sterling publicou A Rede do Terror, o coral costumeiro das esquerdas bradou em uníssono: ela é agente da CIA. Como agente da CIA era todo aquele que ousasse denunciar as ditaduras socialistas e o terrorismo por elas patrocinado. Agentes da CIA foram Gide, Kravchenko, Albert Camus, Ernesto Sábato. A pecha sobrou até para mim. Nos anos 70, por não participar dos desvarios das esquerdas, fui marcado na paleta como agente do DOPS, logo eu que tinha farto dossiê naquele departamento. Com o tempo, e graças à generosidade característica dos comunossauros, fui promovido a agente do SNI. Mais tarde, quando comecei a viajar, recebi a láurea máxima: agente da CIA.

Hoje, tais acusações sequer me fazem rir. Mas era duro, na época, sentar em um bar e sentir que na mesa ao lado todos silenciavam ou mudavam de assunto. Como também era doloroso ser excluído da cama das colegas de universidade, em função de intrigas ideológicas, justo naquela idade em que de mulheres andamos famintos.

Mas falava de Sterling. A Rede do Terror foi publicado no Brasil pela Nórdica Editorial, ao final dos anos 70, quando os Pinheiros Machados da vida pontificavam assegurando que a reunificação da Alemanha só seria possível se a Alemanha Ocidental se tornasse socialista. Sterling analisava o fenômeno do terrorismo nas democracias ocidentais e dava o endereço da escola: as ditaduras socialistas do Leste europeu, com especial menção aos serviços secretos da Tchecoeslováquia e Alemanha Oriental. Como pano de fundo de tudo, a Santa Madre Rússia, vulgo União Soviética. Escândalo! Calúnias do imperialismo ianque.

Com a derrocada do fascismo eslavo, tudo se torna mais claro. Na finada Alemanha Oriental, a Stasi não só formava terroristas, como também os protegia após seus crimes no lado de cá. Outras fábricas de assassinos funcionavam na Romênia, Tchecoeslováquia e Bulgária. Como também em Cuba, Nicarágua, Argélia e Líbia. Com a débâcle dos milenaristas, o reflexo nas estatísticas foi imediato. Recente relatório do Departamento de Estado americano - Patterns of Global Terrorism: 1990 - mostra que, no ano passado, os ataques terroristas tiveram uma redução de 14,6% no mundo todo. Qualquer coincidência com a queda do Muro de Berlim e suas conseqüências é mais que mera semelhança.

Com o que todos ganhamos, particularmente a América Latina. O terrorismo está perdendo terreno no continente. As “forças revolucionárias”, as “frentes populares”, as “uniões patrióticas”, eufemísticas expressões que abrigavam os celerados do século, em falta da mesada da Santa Madre Rússia, começam a pedir água. Na Guatemala - que antes de 89 ia de Guatemala a Guatepeor - a União Revolucionária Nacional Guatemalteca (quanto menor a republiqueta, mais solenes se pretendem seus salvadores) se dispõe a conversar com o governo. Em Honduras, as Forças Populares Revolucionárias da Colômbia e o Exército de Libertação Nacional sentem seus dias contados e acenam com negociações. O Movimento Revolucionário 19 de Outubro, tão ao gosto de Gabriel Garcia Márquez, virou partido político. Em El Salvador, a Frente Farabundo Marti de Libertação Nacional deve assinar este mês um acordo definitivo de cessar-fogo.

Quanto a nossos vizinhos, no Uruguai os tupamaros tocaram as armas pela política e tomaram de assalto a prefeitura de Montevidéu, o que aliás explica esse obsceno namoro de nuestros vecinos com a alcaiceria de Porto Alegre. Na Argentina, os derrotados montoneros entraram na política na garupa do peronismo. No Chile, metade dos universitários da Frente Patriótica Manuel Rodriguez, que em 1986 tentou matar Pinochet, já largou as armas. O Movimento de Esquerda Revolucionária não mais existe. Restam os fanáticos das Forças Rebeldes Populares Lautaro, que não estão gostando de ver o Chile vivendo um período de paz social e desenvolvimento econômico fora dos fracassados moldes marxistas. E no Peru, para vergonha da América Latina, persistem em suas paranóias os assassinos do Sendero Luminoso e do Movimento Revolucionário Tupac Amaru. Desesperados à parte, parece que estamos entrando em uma era de certa lucidez. A hora é de fazer o balanço dos estragos que Marx (voluntária ou involuntariamente, isto é outra questão) fez à humanidade.

O curioso é que, para estes assassinos e seus cúmplices intelectuais, a impunidade parece ser direito adquirido. Posam de heróis e sequer lhes passa pela cabeça sentar no banco dos réus. Na Revolução do Nove de Novembro, se as vítimas se libertaram do tacão socialista, os opressores - exceção feita de algum Ceaucescu ou Honecker - continuam lindos e livres como passarinhos. Com a derrota de Hitler, os nazistas foram catados à unha onde quer que se escondessem. Stalin morreu de vez e seus cultores aí estão, empoleirados em prefeituras, órgãos culturais e universidades. Até hoje não entendi por que certo tipo de assassino merece Nurenberg, enquanto outros batizam ruas.

Na Polônia, pelo menos há um certo pudor, os comunossauros em climatério, como penitência simbólica, fazem uma hora de crucificação. A Administração porto-alegrense, auto-intitulada de Popular, bem que podia, em vez de memoriais a Prestes, inaugurar um monte Calvário. Ia faltar cruz no mercado, é verdade. Mas eu me divertiria muito se me dessem o papel do Arimatéia.

Os mais vivos saem pela tangente. Da Albânia a Angola, os tiranos e cúmplices da tirania começam a posar de social-democratas. Após ter de engolir Jonas Savimbi, da Unita, o MPLA-PT passou a chamar-se MPLA-PSD. Ou seja, o glorioso “Movimento Popular pela Libertação de Angola - Partido do Trabalho” passa agora a chamar-se “Movimento Popular pela Libertação de Angola - Partido Social Democrata”. Mudam as moscas e o marxismo é sempre o mesmo. Falar nisso, lembro que o Tarso Genro andou escrevendo uma ode qualquer à ditadura de Angola. Se algum leitor com espírito de humor tiver em mãos a escatológica obra, peço que ma envie para o endereço ao final destas, para que mais tarde possamos rir juntos através desta página.

Os comunossauros passam então a chamar-se social-democratas, quem diria? Volta às origens? Afinal de contas, até 1914 Lênin se considerava social-democrata. Quando fundou o Comintern, em 1919, impôs aos social-democratas a alternativa de continuarem filiados à Segunda Internacional ou romper com ela e filiarem-se à Internacional Comunista. No III Congresso do Comintern, em 1921, Trotsky e Varga deitaram doutrina:

“A diferença entre comunistas e social-democratas é que estes obstruem o verdadeiro progresso revolucionário ao fazer tudo quanto podem, seja no governo, seja na oposição, para ajudar a reconstruir a estabilidade do Estado burguês, enquanto que os comunistas aproveitam todas as oportunidades e todos os meios para derrubar ou destruir o Estado burguês”.

Pouco a pouco, para os fanáticos da deusa História, social-democracia virou insulto. Décadas mais tarde, muito militante foi expulso do partido, acusado de “capitulacionismo” ou “reboquismo”, por ter aderido ao bom senso. Acontece que social-democracia, de ideal utópico passara a ser experiência social relativamente bem sucedida. Como todo religioso, os comunistas detestam qualquer projeto viável do qual não tenham sido patrocinadores. E optar pela social-democracia, no jargão dos comunossauros, passou a ser sinônimo de reacionarismo atroz. Mas os tempos mudam, e com eles os conceitos. Depois de reduzirem à miséria um país potencialmente rico como Angola, os marxistas esboçam um discreto dar-de-ombros, como se nada tivessem a ver com o desastre. E passam a chamar-se social-democratas.

Social-democratas à la Lênin ou mais ao estilo de um Gunnar Myrdal ou Olof Palme? É o que resta saber. Pois toda a trajetória do marxismo não passou de manipulação de palavras. Tanto que agora, em Moscou, foi elaborado um novo dicionário para tentar fixar um sentido às velhas palavras. Primeira conclusão dos lexicologistas: democracia quer dizer nada. Ou qualquer coisa, tanto faz. De tanto ser usada a propósito de qualquer coisa, a palavra perdeu todo e qualquer sentido no mundo socialista.

O mesmo parece que vai acontecer à social-democracia. Já vi muito agitprop fazendo proseletismo, na imprensa e na universidade, tentando provar que o rumo da humanidade só podia ser mesmo o socialismo, tanto que até os países nórdicos já haviam optado por este sistema. Quando Mitterrand foi eleito na França, não faltou tupiniquim se regozijando com os “avanços do socialismo". Como se os regimes da França, Alemanha ou países nórdicos - basicamente capitalistas - tivessem algo a ver com a miséria e barbárie predominantes nas democracias ditas populares.

As denúncias de Claire Sterling, se há dez anos atrás podiam suscitar certa prudência no leitor mais céptico, são agora de uma luminosidade mediterrânea, como adoram dizer os magistrados para insinuar que estão voltando de uma excursão à Europa. A fonte geradora do terrorismo era Moscou. Muito bem. Pergunta a quem interessar possa: os “humanistas” que financiaram, organizaram e estimularam guerrilhas, seqüestros, massacres, assassinatos, esta gente não vai ser julgada?

Pelo jeito que o mundo gira, ao que tudo indica, até as esquerdas preferem esquecer Nurenberg.


(Porto Alegre, RS, 18.05.91)

 
AINDA O POBRISMO



O blog Hermenauta
(http://www.subsolo.org/hermenauta/archives/2007/11/index.html#008810) reproduz dois trechos do livro El P.r.u.n.: Almazán y el desastre final, de autoria de Bernardino Mena Brito, onde está a palavra pobrismo.

"Este senhor foi cônsul mexicano em New York e chegou a ser acusado de querer fugir para a Europa levando 150 mil dólares do governo mexicano. No livro em tela, ele narra a ascensão e queda do Partido Revolucionario de Unificación Nacional, um partido de direita que tentou desafiar o Presidente Cárdenas na década de 30. Ah, o livro é de 1941..."

Ou seja, a palavra vinha de longe. Tem mais de meio século. Da discussão faz-se a luz.

Por outro lado, o blog afirma que fui defenestrado do jornal MSM. Não fui defenestrado. Fui censurado. Tive uma crônica censurada e recusei-me a continuar escrevendo, a menos que a crônica fosse publicada. Confesso que não sei o que passou pelo bestunto dos editores, afinal a crônica nada tinha de herético ou iconoclasta. Basicamente, eu afirmava que Cristo nasceu em Nazaré, não em Belém. Ora, o local de nascimento do Cristo sequer chega a constituir dogma para a Igreja Católica.

Mas me consta que o problema era anterior. Parece que Aiatolavo não havia gostado de uma crônica anterior, onde eu discutia - à luz da teologia - a transcendente questão do destino do prepúcio do Cristo.

terça-feira, novembro 27, 2007
 
MINHAS CIDADES DILETAS - MADRI



Periodicamente, a imprensa nos traz uma listagem dos melhores países para se viver. Hoje, trouxe uma tabela anual da ONU. Como sempre, os países ricos estão entre os primeiros. E os países pobres estão entre os últimos. Os cinco primeiros são a Islândia, a Noruega, a Austrália, o Canadá e a Irlanda. Os EUA caíram de oitavo, no ano passado, para 12º na lista elaborada segundo o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), da ONU. Todos os 22 países colocados na categoria "baixo desenvolvimento humano" encontram-se na África subsaariana. Serra Leoa é o último colocado.

Viajor entusiasta – desde que pelo Ocidente – vou meter minha esquiva colher nesse caldo. Não vou opinar sobre os países mais pobres do mundo. Não os conheço nem tenho interesse algum em conhecê-los. Miséria, já me basta a do Brasil. Quem gosta de ver miséria é turista do Primeiro Mundo. O que mais atrai um francês no Brasil são as favelas. Cidadão de Terceiro Mundo, jamais me ocorreria visitar uma favela.

Também acho complicado falar de melhores países. País é algo bastante heterogêneo. Existem as capitais... e os vilarejos. Por outro lado, existem critérios e critérios para se eleger um país como melhor do mundo. Não sei exatamente quais são os da ONU. Sei apenas dos meus: bem-estar generalizado, segurança nas ruas, imprensa farta e livre, sistema eficaz de transporte coletivo, óperas, teatro e bom cinema, alta culinária e – o que mais me fascina – restaurantes, cafés e bares sofisticados. Seguidamente leitores me perguntam quais as cidades onde é melhor morar. Dentro do que me foi dado viver, vou falar das minhas dez diletas. Falarei apenas de cidades. Gosto muito da França, mas dificilmente viveria em alguma outra cidade que não Paris. Adoro a Espanha, mas jamais viveria em Toledo ou Cuenca. Atenção: adoro Toledo e Cuenca. Mas não para morar. Há cidades para se morar e cidades para almoçar num fim-de-semana.

Antes de seguir adiante, vou descartando Reykjavik. A Islândia é um país fascinante. Mas viver numa capital com 100 mil habitantes me deixaria tão entediado como a uma ostra. Oslo, muito menos. Comida muito cara, bebida a preços de tornar sóbrio qualquer cristão. Na Islândia ainda é mais caro. Ora, não é bom viver em cidades em que o custo de vida seja muito alto. A confraternização se torna difícil. Mais ainda: na Noruega, nas lojas estatais que têm o monopólio da venda a varejo de bebidas alcóolicas, só pode comprar quem tiver mais de 25 anos. Puritanismo de luteranos. Não dá! Não por acaso – pasmem! – em pleno século XXI, a Noruega tem uma Igreja Estatal Protestante oficial, baseada na religião luterana evangélica. Oslo é como Montevidéu: simpática e nada mais que isso.

Vamos às minhas dez. Não vou falar daquelas cidades pequenas e lindas, que nos encantam mas onde jamais moraríamos. A cidade pequena – escreveu Kavafis – olha e passa. Vou falar de grandes cidades. A lista está longe de ser definitiva e, pensando com mais vagar, eu até poderia mudar o ordenamento de algumas. Não citarei nenhuma cidade vertical. As cidades verticais achatam o ser humano. Gosto de cidades horizontais.

Em primeiro lugar, para quem me conhece, não há surpresa alguma: Madri. Adoro Madri e ao despedir-me dela saí de lá chorando. Nem Paris nem Estocolmo me produziram esta reação. Mais ainda: já li relatos de outros viajores que também saíram de lá chorando. Não que a cidade seja excepcionalmente linda, nada disso. Paris, Praga ou Viena são muito mais lindas. O que gosto em Madri são os madrilenhos e seu savoir vivre. Há uma profusão extraordinária de cafés e restaurantes, tudo isso dentro de um quadrilátero relativamente pequeno, o que permite fazer-se a pé a geografia etílica da cidade.

Adoro os horários da Espanha, que tornam perplexos os demais europeus. Às nove da manhã, as cidades estão mortas. Começam a acordar lá pelas dez. O almoço geralmente é a las dos del mediodía. Quando não a las tres. Nem pense em almoço às doze do meio-dia. Seria um insulto ao restaurador. A noite, por sua vez, começa a las nueve de la tarde. Adoro aquelas madrugadas geladas de inverno, temperaturas abaixo de zero e milhares de madrilenhos percorrendo aquelas vielas e avenidas quais formigas enlouquecidas, lá pela uma ou duas horas da madrugada.

Me encantam também os cafés de Madri. Diria que os melhores dias de minha vida, eu os vivi no Oriente, em frente ao Palácio Real, na Cerveceria Alemana, na Plaza Santana, nos centenários Gijón e El Espejo, no Paseo de Recoletos. O Gijón explica porque nunca consegui chegar à Biblioteca Nacional de Madri. Quando ia para a biblioteca, antes de atravessar o Paseo de Recoletos, estava o Gijón. Nunca consegui atravessar aquela avenida.

Sem falar nos cochinillos e corderos lechales. São dois assados que valem uma viagem à Espanha. O cochinillo é um leitãozinho de vinte e poucos dias, assado em um forno especial, que parece derreter-se na boca de tão tenro. O lechal é o cordeiro de leite, ainda não desmamado e cuja idade não passa de seis semanas. Existe ainda um cordeiro mais adulto, o pascual, que é criado pastando tomilho. Ou seja, temperado desde o berço. O melhor restaurante para degustá-los em Madri é o Sobrino de Botín, com mais de trezentos anos. Em Toledo, procure o Valério. Em Segovia, o Conde Duque ou o Cândido. Lá, já fui servido pelo próprio Conde Duque, que partia o cochinillo com um prato, para mostrar sua tenrura, e depois quebrava o prato no piso do restaurante.

E não adianta procurar estes pratos fora da Espanha. Outro dia, aqui em São Paulo, fui ao Rubayat, que se gaba de oferecer um cochinillo aos sábados. Não era nem a sombra da sombra do cochinillo do Sobrino de Botín. Pelo tamanho do pernil, seria um leitãozinho senil, talvez com três ou mais meses de idade. E o Rubayat não tem o forno do Sobrino de Botín.

Sem falar que adoro ouvir espanhol, adoro falar espanhol e me sinto muito mais em casa falando espanhol do que falando português. E adoro o flamenco, sevillanas e cante hondo. Em suma, vejo a Espanha como um misto de cores e sons, sabores e odores, alegria e canção. Recomendo vivamente.

Em segundo lugar, colocaria Paris. Quando sonhava em bater pernas pelo planetinha, Paris sequer constava de meus projetos. Porque não constava, não sei. Mas Paris, em meus dias de guri, não me fascinava. A idéia que eu fazia da cidade era a de uma capital cheia de chaminés e túneis, herança das leituras dos Mistérios de Paris, de Eugéne Sue, dos três mosqueteiros e de mais alguns romances de capa-e-espada.

Conto mais adiante.

 
Crônicas da Guerra Fria (50)


FALEM NDERIT



São Paulo - "Crescem os bosques de oliveira pelos vales, sobem pelas íngremes ladeiras num doce verde que me recorda subitamente terras de Espanha e Portugal. O avião voa sobre ásperas montanhas, em breve alcançaremos o mar, as águas ilustres do Adriático, e tudo é intensamente belo na paisagem em redor. No límpido céu azul fogem farrapos brancos de nuvens, serpeiam os rios cor de prata por entre a variação mediterrânea do verde, a Albânia se oferece aos olhos num esplendor de luz e colorido. Volto-me para os companheiros de viagem e os vejo de olhos pregados nas pequenas janelas do avião. Estes olhos fixos, de búlgaros e tcheco-eslocavos, de franceses e alemães, de poloneses e húngaros, estão turvados de emoção. Acabamos de sair das terras sofredoras da Iugoslávia, onde vis traidores assentaram seu acampamento. Este avião em que vamos é o mais persistente traço de ligação da Albânia com o mundo e contra ele se volta, em mesquinhas represálias, o ódio bovino dos judas titistas. Wanda Jacubowska, com um sorriso comovido, diz:

- É a Albânia! É belo!"

Deste relato, escrito por viajor experiente e de longo curso, lido em minha adolescência, deve provir minha curiosidade pela Albânia. Assim sendo, quando em visita às vis terras titistas, qualquer coisa me impelia a olhar para o outro lado da fronteira macedônia. De Titov Veles, cidade que homenageia o traidor, deixei o Vardar seguir seu curso e enveredei alguns quilômetros a sudoeste. Velejando pelas águas mansas do Ohrid, percebi um certo temor em meus companheiros à medida que o barco avançava. Uma linha imaginária fazia a fronteira com a Albânia, e a fixação dessa linha dependia muito do humor das patrulhas albanesas. Melhor voltar, antes que nos crivassem de metralha. De modo que, estando a poucos quilômetros da Albânia, não consegui saciar minha curiosidade.

"Os rebanhos de carneiros pastam nos vales" - prossegue o celebrado guia - "a faixa branca das praias circunda o azul do mar, a Albânia se estende sobre nossas vistas. Para trás deixamos a Iugoslávia, essas estradas que partem de Shkroda se dirigem para Montenegro. Os olhos cobiçosos de Tito, mísera criatura de Truman e de Churchill, fitam com furiosa raiva as terras albanesas e a esse povo indomável. Seu ódio contra a Albânia e contra os comunistas albaneses deve ser alguma coisa de terrível: os comunistas desse pequeno país souberam conservar-se fiéis ao internacionalismo proletário quando Tito, cevado pelas gorjetas imperialistas, se afundou cada vez mais no lodo do imperialismo burguês, traiu os povos da Iugoslávia e o proletariado de todo o mundo... (Os albaneses) não são apenas cordiais, cordialidade é uma frágil palavra para expressar essa atmosfera fraternal, esse calor de vida, essa prova triunfal da força criadora do socialismo. As vozes se elevam numa canção, enquanto os automóveis partem. Eu vos disse antes que a Albânia é uma festa e realmente não sei de melhor comparação para a alegria reinante nesses locais de trabalho, para essa atmosfera de entusiasmo criador".

E eu ali, em meio ao lago Ohrid, sem poder visitar a terra encantada. Na fábrica Enver, nosso viajante se extasia ante a felicidade de uma operária:

"Penso com ternura e gratidão nos homens que lhe abriram as perspectivas de todo esse futuro: Marx e Engels, Lênin e Stalin, Dimitrov e Enver Hodja. A moça se curva outra vez sobre a máquina, suas mãos a movimentam, seus olhos estão atentos, sua face iluminada! De onde vem essa luz que cobre a face bela da jovem operária? O poeta Alexis Çaçi nos fala dessa luz num poema sobre a terra libertada da exploração do homem pelo homem:

Faces sorridentes
desfilam sucessivamente
e o sol,
a lua e as estrelas
se unem,
e uma grande luz
invade a nossa terra.
É a aurora do socialismo
."

Claro que tais paraísos não se constróem ao acaso. Sem a vontade férrea de um grande líder, um farol da humanidade, os países jamais superariam a fase de um capitalismo decadente. A vontade, no caso, foi a do "Comandante":

"Durante a guerra de libertação, Enver Hodja atravessou, por duas vezes, a pé, todo o território da Albânia. Pode-se dizer que ele conhece cada cidadão, dormiu numa enorme quantidade de casas, nas cidades e nos campos, compartilhou da mesa pobre de milhares de camponeses, foi por eles escondido enquanto a polícia do fascismo o buscava afanosamente. Era, para cada um, como um filho querido, esse jovem quase adolescente que chefiava a luta pela libertação da Pátria. Mas era também como o Pai de cada um, aquele que estava construindo o destino de todo esse povo.

Fiz esta viagem em 79. As greves, os conflitos sociais, a falta de liberdade de imprensa e a ditadura então vigentes em meu país, todos estes fatores me pesavam como chumbo na alma. E eu estava ali, a poucas léguas da sociedade justa, erigida por um homem só:

"Quando não o tratam de Comandante, chamam-no pelo seu prenome: Enver. Vi os jovens estudantes o cercarem no teatro de Tirana e ele perguntar a cada um pelos seus estudos. Os operários da fábrica Enver disseram-se que de seu orgulho e de sua responsabilidade de trabalhar na fábrica que leva seu nome. E ouvi os seus discursos e ouvi dele, em três largas conversas, se desprender sua fidelidade ao povo albanês, à União Soviética e ao internacionalismo proletário. (...) Não é por acaso que ele está presente na poesia dos poetas novos da Albânia como o símbolo da nova vida conquistada. É que ele foi o coração ardente da luta, foi o cérebro dirigente, foi a coluna mestra da criação do Partido. Ele nasceu do sangue operário derramado nas greves dos anos feudais, nasceu do suor do camponês vertido sobre a terra que não era sua, nasceu das lutas anônimas de todo os patriotas contra o jugo estrangeiro. E hoje ele é mais do que nunca o coração da nova Pátria livre".

Ainda às margens do Ohrid, pareceu-me ouvir inefável canção:

"Quando sobe pelos céus da Albânia a música da construção socialista, quando se erguem os edifícios das fábricas, quando os jovens conquistam a técnica e a cultura, quando os camponeses se reúnem em cooperativas e as mulheres arrancam os véus para dirigir tratores, quando as crianças repousam nas creches e brincam nos jardins de infância, quando os escritores tomam da pena para criar romances e poemas, quando o trem de ferro apita sobre os trilhos colocados pela juventude, quando os túneis rasgam as montanhas e os fios elétricos se prolongam pelas aldeias perdidas, quando velhos camponeses se curvam sobre a carta do ABC, quando novas minas e novos campos de petróleo são explorados, quando a vida do povo se transforma e a pátria cresce em fartura e alegria, ali estão o Partido e Enver, criadores de vida!"

Após ter usufruído do sumo privilégio que me foi negado, o de visitar nação tão feliz, nosso entusiasmado viajante agradece comovido:

"Quero, Albânia, pôr a mão direita na altura do coração, num gesto de tamanha civilidade e gentileza como o fazem teus filhos, e repetir as palavras de agradecimento: Falem nderit, muito obrigado. Falem nderit, Albânia, pelo novo amor que te tenho, esse amor feito do conhecimento, com a mesma tímida ternura comovida. Amo a tua juventude, risonha adolescente colorida que os anos não envelhecerão jamais. Bem sei que madura és de experiência, adulta na vontade invencível dos trabalhadores, e amanhã madura estarás em teus kolkozes, nas torres de petróleo libertadas, no mar e na montanha conquistados. Mas adolescente serás p'ra todo o sempre, não há outono para a primavera do socialismo".

Pois não é que vejo nos jornais os ingratos albaneses derrubando estátuas do Pai da Pátria, enfrentando a polícia para retirar seu nome de fábricas e universidades? Quanta ingratidão, meu Deus! Quanto ao autor do hagiológio supra, é Jorge Amado, rodando a baiana nos Bálcãs. O mesmo que escreveu, no mesmo livro:

"Não existe nada mais poderoso do que a verdade. Ela rompe qualquer cortina de dólares e sua luz ilumina os povos".

Pelas citações, falem nderit.

(Porto Alegre, RS, 16.03.91)

 
ASTRÓLOGO SÓ ESCREVE PARA DEUS


De uma entrevista com Olavo de Carvalho:

Eu só estou interessado, por exemplo, com relação aos leitores, ao público etc., aliás, o único público para o qual eu escrevo é Deus, eu só quero saber a opinião de Deus a respeito do que eu estou fazendo; a do outros, se for favorável é bem vinda, se não for favorável não tem a menor importância.

 
¿QUÉ ES EL POBRISMO?


De uma entrevista com Alejandro Rozitchner:


- ¿Qué es el “pobrismo”?

- Es una idea que inventé para un artículo, es el cultivo de la pobreza, es decir, la creencia de que la pobreza es un valor.

Muchos piensan que “si uno no tiene plata, es bueno. Si uno tiene plata, es malo. Los ricos son malos, los pobres son buenos. ¿Por qué es pobre el pobre? Porque es bueno”. Pero ser pobre no es ser bueno; ser pobre es ser pobre.

Si queremos lograr que haya menos pobreza tenemos que destruir esa visión romántica, pura, religiosa y trascendente de la pobreza, como si ser pobre fuera el resultado de no haber transado con el horror del mundo sensual y mercantilista.

A mi juicio, ser rico (o dejar de ser pobre) es ser capaz de un intercambio sensual con la realidad. Esto implica riqueza, tanto de sentido como material. Riqueza es tanto un bello gesto como un celular. Y ambas se relacionan y van juntas.

segunda-feira, novembro 26, 2007
 
CRONISTA TUCANOPAPISTA MENTE



O cronista tucanopapista Reinaldo Azevedo gaba-se em sua coluna de hoje de ter criado um neologismo, que já teria passado para as novelas da Globo. Escreve o chapa-branca:

Pobrismo....
Hehehe...

Uma palavrinha criada pelo Tio Rei foi parar na novela das oito — quer dizer, das nove... Uma personagem lá acaba de dizer algo como: “Ser rico é o grande problema no país do POBRISMO.” Criei o vocábulo no Primeira Leitura. O arquivo do site não está no ar, mas as revistas estão aqui, bem guardadinhas. Vou ver se consigo achar o texto em que escrevo largamente a respeito.



Ora, este neologismo foi criado pelo escritor argentino Alejandro Rozitchner, em trabalho publicado em 2005, na revista Notícias, sob o título "Una visión pobrista". A palavra se refere a uma mentalidade surgida lá por 2001. Pobrismo é entendido como "no ver ni entender que pagar los altos precios que requiere la realización de una persona madura o de una sociedad madura es lo que permite elevar el nivel de vida, como si la finalidad de toda la sociedad y en especial de sus dirigentes, fuera ante todo la de no modificar la existencia de una pobreza a la que se dice querer eliminar pero a la que se reivindica al mismo tiempo, como cultura popular, como expresión de sabiduría y campo de valores superiores" y también como "hacer de la comunidad carenciada una comunidad virtuosa"; como “no aspirar a una vida plena sino a la mera supervivencia" entre varias interpretaciones de un término que define sobre todo un modo de encarar la realidad y de mirar al mundo.

Y a las prueba me remito. Vejamos este texto de Rozitchner, publicado na Web em julho de 2006:

Friday, July 07, 2006

El pobrismo

Alejandro Rozitchner sobre el pobrismo, una de las variantes del “tercermundismo” y de la “teoría de la dependencia” a la que adherimos con mayor pasión en Argentina.

Esta manera de encarar la vida es sin duda uno de los principales sostenes culturales de la creencia de que menos es mejor que más, la base de la Argentina post golpe de fines de 2001:

El pobrismo no es un mecanismo de dominación, es una visión de la sociedad, una filosofía de vida, una versión del mundo. Como forma de dominación es muy imperfecta, ya que debe pagar un altísimo costo en la violencia que engendra y en la potencial revuelta justiciera que hace asomar en el horizonte. El pobrismo es una forma de vivir la vida y de pensar el país, una manera reducida de concebir al ser, la creencia absurda de que el destino se manifiesta como una serie infinita de carencias y que cualquier propuesta debe respetar el peso de ese límite. La carencia es promovida como si se tratara de una prueba de honradez, como si ser honrado fuera no aspirar a más porque todo querer nos compromete en los caminos del mal. Su moral es una moral de quedados que dicen estar siempre bajo una voluntad ajena, cuando por lo general antes de la existencia de esa voluntad enemiga lo que se evidencia es la falta de una voluntad propia.

El pobrismo es la política de la neurosis, de aspirar a poco, el plan de no pagar, no ya la deuda externa sino ninguno de los precios que una sociedad debe pagar para conquistar un buen nivel de vida generalizado. Ni pagar cada persona los precios de su crecimiento personal, se trate de su crecimiento afectivo, laboral, espiritual, de cualquier tipo. Pobrismo es no ver ni entender que pagar los altos precios que requiere la realización de una persona madura o de una sociedad madura es lo que permite elevar el nivel de vida, como si la finalidad fuera ante todo la de no modificar la existencia de una pobreza a la que se dice querer eliminar pero a la que se reivindica al mismo tiempo como cultura popular, como expresión de sabiduría y campo de valores superiores. Pobrismo es hacer de la comunidad carenciada una comunidad virtuosa, del hombre caído un personaje siempre más valioso y mejor que el hombre entero y capaz de algo. Pobrismo es confundir el hecho de que es necesario ayudar y asistir y educar y formar a quienes padecen de miseria con la creencia de que a ese estado se llega por haber sido bueno.

Pobrismo es rechazar el crecimiento por ver en la riqueza que este genera la huella del diablo, pobrismo es ser más sensible a las pérdidas que todo crecimiento siempre produce que a los beneficios de tales metamorfosis. Pobrismo es estar enamorados de los momentos débiles del desarrollo, preferir subrayar esos costos antes que hacer pie en los posibles resultados de las apuestas osadas y tal vez exitosas. Pobrismo es no aspirar a una vida plena sino a una mera supervivencia, lo que constituye una forma de involucionar. Pobrismo es no querer crecer, ver en el crecimiento una tentación indebida, tener un repertorio de ideas para afear el camino de quien quiere crecer, para arruinárselo, con la moral absurda de que si yo no puedo o no quiero tampoco debe poder o querer nadie. Pobrismo es mirar para atrás, pensar para atrás, querer para atrás, asegurarse la quietud con estratégicas morales de respeto y de temor. Pobrismo es creer que el temor es una reverencia frente a una instancia importante que debe respetarse, no captar la debilidad que ese temor entraña y no querer por lo tanto nunca superarlo.

Pobrismo es creer que la gente que tiene plata no puede querer el bien del país y por el contrario creer que lo que quiere y decide alguien en mala situación es siempre bueno y correcto. Pobrismo es creer que las malas ideas, las comprensiones limitadas de la situación, desde el momento en que se tornan masivas se vuelven también verdaderas e imprescindibles.

Pobrismo es, para un político, cortejar a la pobreza como a una novia, siendo incapaz de generar otra estrategia de poder que la de reinar en el vacío. Pobrismo es depresión de líder que no puede dejar de querer reinar pero no sabe bien para qué, y pobrismo es también suponer que a todo líder le pasa lo mismo, dar esa versión miserable de los hechos según la que todo en el fondo responde al mismo vacío. Pobrismo es halagar al sentido común, halagar al pueblo en sus aspectos más quedados y conservadores, pobrismo es conformar ese poder de un pueblo encaprichado con el facilismo, armar una ciudadanía con el lomo de sus prejuicios bien sobado, contenta de ser mediocre y tiránica a la hora de descalificar cualquier instancia que busque desafiarla, hacerla crecer, llevarla a confrontar con sus límites de comodidad y a desprenderse de su moral de pobreza justa, de pobreza racionalizada, de pobreza padecida pero de la cual siempre otro es responsable, de pobreza que se convierte en plan del lucha en contra de aquel que osó no ser pobre para castigar su osadía.

Pobrismo es preferir no hacer olas y quedarse en el confort y la retroalimentación que produce el grupo de frustrados, es no querer explorar las posibilidades disponibles, preferir el juego de rechazarlas a todas para hacer más fuerte el sentido colectivo de la frustración y centrarse en una lucha inverosímil e inventada, falsa, optar por culpar al rico, al menos pobre, al que busca, como si fuera responsable absoluto de la existencia de las dificultades que se padecen.

No digo que nuestra sociedad sea total y fatalmente pobrista, pero me parece productivo mirar a la cara estas tendencias poderosas en nuestra vida social, porque es el único modo de aspirar a desactivarlas. Hay entre nosotros también otras visiones, más capaces y más vitales. Sería bueno distinguir unas de otras y aprender a apoyar las tendencias más aptas para aprovechar lo que de positivo tiene nuestro momento actual. Argentina tiene necesidad de enormes dosis de buena conciencia, es decir, de modos de mirar la vida que la hagan superar las miserias mentales que engendran miserias materiales. Dejar de creer que nuestra pobreza proviene de enemigos feroces, modificar el vicio de crear y recrear nuestros vacíos meritorios.


Ora, o cronista plagiador tucanopapista, o virtuose do cut and paste, já tem idade suficiente para intuir que a mentira tem pernas curtas. Apud Azevedo, pobrismo adquire uma nova conotação: plagiar descaradamente colegas de jornalismo.


PS - Um leitor acaba de me enviar uma referência anterior da palavra pobrismo. Está em Reporte Publicidad, de 2004, e é um achado do blog O Hermenauta (http://www.subsolo.org/hermenauta/archives/2007/11/index.html#008805):

Y lo gracioso es que, de esos rasgos, lo que surge es más pobreza. Es una política del pobrismo. El peronismo bonaerense es pobrista, le gustan los pobres, produce pobres. Es una especie de cristianismo también. Es una mentalidad. ¿Y por que odiamos a los Estados Unidos? Porque no son así. ¿Por qué los EE.UU. pudieron tanto? Porque no son así.

 
VOVÓ CORTA KINTIR DE HIRSI



Fui a seguinte. Fazendo um gesto amplo, vovó disse: “Quando esse kintir comprido for retirado, você e sua irmã ficarão puras”. Pelas palavras e gestos dela, concluí que aquele abominável kintir, o meu clitóris, acabaria crescendo tanto que um dia começaria a balançar entre minhas pernas. Ela agarrou meu tronco do mesmo modo que tinha prendido Mahad. Duas outras mulheres abriram as minhas pernas. O homem, que provavelmente era um “circundador” intinerante tradicional do clã dos ferreiros, pegou a tesoura. Com a outra mão, segurou o lugar entre minhas pernas e começou a puxá-lo e espremê-lo, como quando vovó ordenhava uma cabra. “Aí”, disse uma das mulheres, “aí está o kintir”.

Então o homem aproximou a tesoura e começou a cortar os meus pequenos lábios e o meu clitóris. Ouvi o barulho, feito o de um açougueiro ao tirar gordura de um pedaço de carne. Uma dor aguda se espalhou no meu sexo, uma dor indescritível, e soltei um berro. Então veio a sutura, a agulha comprida, rombuda, a transpassar canhestramente os meus grandes lábios ensangüentados, os meus gritos desesperados de protesto, as palavras de conforto e encorajamento de vovó: “É só uma vez na vida, Ayaan. Seja corajosa, está quase acabando”. Ao terminar a costura, o homem cortou a linha com os dentes.

(Excerto de Infiel, de Ayaan Hirsi Ali, Companhia das Letras)

 
JÔ E O CLITÓRIS



Raphael Piaia me envia nota da Folha Online:

O Ministério Público Federal no Rio de Janeiro informou nesta segunda-feira que investiga o "Programa do Jô", exibido depois do "Jornal da Globo" pela TV Globo, por suposta manifestação de preconceito. Segundo a procuradoria, houve denúncias sobre uma entrevista que abordava a questão de mulheres submetidas à cirurgia no clitóris na África e que comentários do apresentador podem ter manifestado preconceito em relação a hábitos e costumes culturais daquele continente.
As entidades que levaram a denúncia ao MPF acusam o programa de desrespeito a comunidades negras. A representação está sob os cuidados da procuradora dos direitos do cidadão, Márcia Morgado. O MPF não informou a data exata na qual o programa foi ao ar, mas foi em 2007. A assessoria de imprensa do programa informou que não recebeu nenhuma notificação sobre o procedimento.


Essa agora! Confesso que não vi este programa do Jô, afinal raramente vejo televisão nacional. Pelo pouco que conheço do apresentador, suponho que tenha se manifestado contra as mutilações genitais usuais na África negra ou muçulmana, que a redatora Dayanne Mikevis eufemisticamente chama de cirurgia. (Há quem fale também em circuncisão feminina, como se a ablação do clitóris e a infibulação da vagina pudessem ser comparadas ao ato pouco ou nada mutilante da circuncisão).

Tampouco tenho conhecimento dos termos da denúncia ao Ministério Público. Mas, ao que tudo indica, já temos no Brasil defensores da mutilação genital feminina, em nome do tal de multiculturalismo. Só o que faltava. Quando até mesmo no Egito, onde a clitoridectomia e a infibulação são usuais, estas práticas já constituem legalmente crime, surgem fanáticos no Brasil para defendê-las.

A notícia da denúncia ao MP chega nestes dias em que uma mulher estuprada por um grupo de homens foi condenada a 200 chibatadas e seis meses de prisão por uma corte de apelação na Arábia Saudita. A mulher, de 19 anos, foi estuprada 14 vezes por homens de uma tribo sunita na cidade de Al-Qatif, região leste da Arábia Saudita. Inicialmente, os estupradores foram condenados a cinco anos de prisão. A vítima, que havia estado no carro de um homem desconhecido antes do ataque, recebera anteriormente uma pena de 90 chibatadas.

Quando a mulher recorreu da sentença, foi acusada pelos juízes de tentar influenciar a decisão da corte através da mídia. Por isso, sua pena mais do que dobrou, chegando a 200 chibatadas mais prisão. Em todo Ocidente, a decisão da corte saudita foi condenada como prática bárbara. Para os que denunciaram o programa do Jô, vai ver que não passa de preconceito em relação a hábitos e costumes culturais daquele país.

Adiante, senhores! Poderiam continuar pedindo a proibição de Infiel, livro de Ayaan Hirsi Ali, a somali que desafiou o Islã, denunciando suas práticas bárbaras, entre elas a mutilação genital feminina. A propósito, o livro saiu recentemente pela Companhia das Letras, está em minha cabeceira e qualquer hora o comentarei.

Ó tempora, ó mores! Chegamos a uma época em que se tem de defender até mesmo um medíocre como Jô Soares!

 
Crônicas da Guerra Fria (49)


SOBRE CÃES E COMUNISTAS



São Paulo - Eu flanava por Montparnasse, quando uma voz rouca vinda de meu passado, quase cantando, me chama, carregando nos erres: Janérrr. Era Michelle, permanente do PCF e minha antiga professora de francês. Há quase uma década não nos víamos e estávamos frente ao Select Latin. O bar fica frente ao La Coupole, um dos bebedouros de Sartre e Simone. Nele, em 1980, havíamos erguido um brinde póstumo a Sartre, logo após seu enterro. A ocasião era única para reviver porres passados, o que foi feito. Mal sentamos, o garçom já foi perguntando:

– É verdade, Monsieur. Que é que o senhor quer?

O início da frase me surpreendeu. Diante de meu espanto, o garçom indicou com os olhos o livro que eu acabara de comprar, Les Hommes ont soif, de Arthur Kloester. Ah, bom! E pedimos uma Leffe, a cerveja que sempre pedíamos no Select. Após as efusões iniciais, perguntei por Igor. Passava bem, embora um pouco alquebrado pelo reumatismo. E Marchais? Sempre capitaneando o Partido, embora um pouco perplexo com os acontecimentos no Leste. Trocamos trivialidades e telefones. Não demorou uma semana, aquela voz rouca, que tanto me agrada em mulheres, cantarolou ao telefone:

Janérrr, j'ai besoin de tes forts bras!

Foi minha vez de ficar perplexo, certamente bem mais do que George Marchais com o fuzilamento de seus queridos amigos, os Ceaucescu. Entre nós, sempre se interpunha a sombra de Igor. No final de 70, eu fazia correspondência em Cannes para a Caldas Júnior. Era maio, festival de cinema, muito sol no céu do Midi e estrelas vagando pela Croisette. Eu alugava sozinho um apartamento com sacada para o mar, ela se deprimia em um estúdio escuro em Paris. Sejamos gentis com nossos mestres, pensei, vou oferecer-lhe alguns dias de sol e cinema. Recebeu faceira* meu convite e chegou no dia seguinte, fazendo autostop. Dizem as más línguas que, de Paris a Cannes, são só quatro ou cinco orgasmos. A França é pequena.

Sol vale ouro para um parisiense e cinema é um dos orgulhos nacionais. Ela estava feliz, eu também. Sempre considerei que, quanto mais íntima a relação professor-aluno, mais rápido é o aprendizado. Mas pouco durou minha felicidade. Ficou apenas três dias comigo, morria de saudades do Igor. Havia telefonado a Paris e sentiu, ao telefone, que ele se sentia só.

Ela se foi e fiquei só. Mas não por muito tempo. Naquele festival Coppola havia lançado, em pré-estréia internacional, seu Apolicapse Now. Jornalistas do mundo todo me confundiam com o Coppola e não vi nada demais em tirar algumas casquinhas às custas de meu sósia. Seja como for, Igor me ficou atravessado na garganta. E agora, dez anos depois, aquela voz rouca me chamava, dizia necessitar de meus fortes braços.

Armistício, reconciliação? Quand vous voulez, respondi enfaticamente, afinal sempre a tratara por tu. Marcamos a coisa para o dia seguinte. Ãs nove da manhã, chez elle. Francesa tem cada horário.

Aquele leitor que me odeia mas não deixa de me ler todas as semanas, já deve estar espumando: lá vem o Cristaldo com suas histórias de cama. Pois hoje vais ganhar colher de chá, meu querido. A moça necessitava de meus fortes braços para que eu ajudasse em sua mudança. Em função das conquistas sindicais, as prestações de serviços são caríssimas em Paris. A menos que se esteja na condição de rico para milionário, toda mudança é um mutirão entre amigos. Quem contrata os serviços de uma transportadora, tem não só de colocar seus trastes no caminhão, como também de retirá-los, que trabalhador francês não está lá para isso.

Lá estava eu, ao lado de outros panacas que a permanente atroz conseguira reunir, carregando móveis do apartamento e arquivos das caves. Lá pelas tantas do meio-dia, exausto de carregar caixas, quis saber o que elas continham. São os arquivos da célula de Montparnasse, me respondeu aquela detestável voz rouca. Ah! Entrei em greve e fui pro Select rir um pouco de mim mesmo.

Pois é! Por algumas horas, pus meus fortes braços ao serviço da História, carregando os arquivos da célula do PC de Montparnasse. Ou seja: eu ajudava, braçalmente, na mudança de uma menina burguesa, cujo partido lutava para liberar os trabalhadores do trabalho braçal. Jamais recebi pena tão bem merecida. A gente morre e não aprende tudo. Já de barbas brancas, acabei caindo na armadilha de uma voz insinuante. Pior de tudo , não era a primeira vez que entrava em fria.

Num outro mês de maio, fora a Amsterdã para o coroamento da rainha Beatrix. Ao falar da viagem para Michelle, ela se entusiasmou com um fim-de-semana na Holanda e, desta vez, me ofereceu carona. Desde que eu não me importasse, é claro, que Igor fosse conosco. Sem imaginar o afluxo de turistas para as solenidades de coroamento, nem pensei em reservar hotel.

Resumindo: acabamos dormindo no carro à margem de um canal, arriscando inclusive dissabores com a polícia, pois em Amsterdã isto constitui infração. Bueno, uma noite como quer se passa, diz o gaúcho. Sem falar que não é todos os dias que um mortal acorda às margens de um canal de Amsterdã com uma francesa nos braços.

Mais uma colher de chá para o leitor que me detesta: o que prometia ser um despertar paradisíaco, revelou-se um pesadelo. Acordei cheio de pelos e com Igor me lambendo as cãs. E sequer podia dar um chute naquele quadrúpede abominável, pois minha parceira entraria em crise. Enfim, tudo isto é um pequeno intróito para explicar, inclusive a meus irritadiços leitores, porque não morro exatamente de amores por cães nem por comunistas.

Dos cães, até que eu gosto. Me criei entre eles, retouçando em meio aos alhos-bravos, como se cachorro fosse. Mas gosto de cachorro no campo, ou pelo menos em casa, jamais em apartamento. Meu primeiro choque na Europa – que nada tem de original, mas é espanto de todo latino-americano – foi esta situação privilegiada dos cães.

Visitei cemitérios para cães, vi três gerações chorando, em um Dia de Finados, diante da tumba de um deles. Li cardápios para cães, receitas de almoços, janta e sobremesa para cães, sem falar em xampus e pastas dentifrícias, temperadas com mel, para os pulguentos. Vi anúncios de psicanalistas para cães, recomendando inclusive aos donos que, por favor, fizessem psicanálise, para que seus distúrbios emocionais não interferissem na vida psíquica do cãozinho.

Conheci pesquisadoras latinas que trabalharam como dogsitters, isto é recebiam alguns trocados para levar os cães a defecar, e com isso financiavam seus doutorados. Ouvi, juro que ouvi, a frase infame: Mademoiselle X., elle suit un doctorat à la Sorbonne. Elle s'encharge de mon chien. Se terminou seu doutorado, não sei. Mas uma velhota decrépita se orgulhava de ter, como criada de seu lulu, uma pesquisadora brasileira.

Vi também casais divorciados, lutando na justiça pelo direito de visita, não aos filhos, mas ao cão. Vi cachorro tomando cerveja no mesmo copo que sua dona. Já não lembro em que cidade da França, busquei um boteco e pedi um calvá. A meu lado, sentou-se uma dame, e seus três pestilentos tomaram assento em minha mesa. A distinta senhora molhava pedrinhas em seu conhaque e as oferecia a seus amores**.

Sentar com comunistas, foi rotina em meus dias de universidade. Com cachorros, chupando pedrinhas de açúcar embebidas em calvá, foi realmente uma experiência nova. Esta minha ojeriza, insisti em registrá-la em Ponche Verde. Quem conhece Paris só de vista, acha que exagerei. Quanto aos franceses, não entendem como alguém possa ter algo contra essa idolatria. Mas Michelle tinha senso de humor, qualidade rara tanto em franceses como em comunistas. Pelo jeito, soube preservá-lo, tanto que acaba de enviar-me um bem-humorado livrinho recém-lançado em Paris, Bas les Pattes, de Fabien Gruhier, redator do Nouvel Observateur. Gruhier, um dos raros franceses a intuir o absurdo deste culto aos animais, acrescenta novos dados a meu arquivo de zoofilia.

Nas lojas Samaritaine já se pode comprar, a 72 francos a meia dúzia, calcinhas para cadelas no cio, o que inaugura um novo ramo na tão celebrada lingerie francesa. Mais ainda: para cães diabéticos ou com problemas de colesterol, a Quaker lançou um enlatado, à base de carne branca e legumes ao vapor. Sem falar que as dietas caninas já passaram ao reino da informática. Na cadeia de butiques Animal's, você pode inserir em um terminal a idade, a raça, o sexo e o peso de seu cachorro e, na tela, aparece o menu ideal de seu tesouro. Este promissor mercado de futilidades oferece ainda dentifrícios e pastilhas clorofilisadas contra o mau hálito canino. Existissem na época do coroamento da Beatrix, talvez eu não guardasse tão triste memória de meus dias em Amsterdã com Igor.

Mas o melhor vem agora, o drama dos cães comunistas. Que Igor era um deles, disto não tenho dúvida alguma, pois Michelle jamais partilharia seu leito com um salle chien capitaliste. Mas Igor vivia em Paris, sonho de todo revolucionário, humano ou canino. Fabien Gruhier se refere ao drama dos cães do Leste, após a queda do muro. A revista Animaux Magazine consagrou um número, em março do ano passado, aos animais vítimas – ou beneficiários – da perestroika. Segundo Gruhier, nem os animais do Leste querem ouvir falar de socialismo e não deixam de ter suas razões para tanto.

Após a Grande Revolução, os cães soviéticos foram golpeados com uma taxa anual de 15 rublos, o que eqüivale a dois dias de um salário médio na União Soviética. O que fez com que, nos regimes comunistas, até mesmo inocentes cães passassem a ter uma vida clandestina. Segundo o professor Tkachov Kuzmine, da Academia de Agricultura de Moscou, na URSS há no mínimo tantos cães clandestinos quanto os oficialmente declarados. Para Animaux Magazine, citando o professor Kuzmine, os cães e gatos soviéticos são menos felizes que a média cães-gatos dos países ricos. Ah! que vontade de mandar o Igor para lá!


* Em São Paulo, faceira quer dizer bonita. Emprego a palavra em sua acepção gaúcha: contente.
** O leitor pode imaginar-me, de cotovelos na mesa, sentado junto a três cães, também de cotovelos na mesa?

(Porto Alegre, RS, 16.02.91)

domingo, novembro 25, 2007
 
USPIANA ANUNCIA PROFETA ERRADO



Leyla Perrone-Moisés, professora emérita da Fefeleche, vê Jorge Luís Borges como o profeta da Internet, em artigo para a edição de hoje do Estadão. E cita dois ensaios colocados online, de Douglas Wolk, onde se afirma que a rede seria o labirinto ou O Jardim de Veredas Que Se Bifurcam; o Microsoft Internet Explorer, o Zahir; o comércio eletrônico, A Loteria na Babilônia; as histórias infinitas e imbricadas, hipertextos ou links.

Já Christophe Rollason, segundo a professora da Fefeleche, em Borges Library of Babel and the Internet, também considera a biblioteca borgiana como uma prefiguração da internet, a partir de uma observação feita por Ignacio Ramonet, o editor comunista de Le Monde Diplomatique: "Como na Biblioteca de Babel, muitas informações se encontram na rede, com todas as suas variantes e aproximações; nada garante a veracidade dos dados; um boato e uma informação se equivalem!" Para Perrone Moisés, Rollason estende a comparação, observando que os homens da biblioteca seriam hoje os cibernautas. Otimista, ele acha que a internet permite escapar do pensamento único, da ortodoxia, e que Ramonet sofre do complexo profissional, que consiste em lamentar que a informação saia do controle dos jornalistas e intelectuais.

Pelo jeito, nem Douglas Wolk, nem Christophe Rollason, nem Ignacio Ramonet - e muito menos Leyla Perrone-Moisés - ouviram falar de O Presidente Negro, de Monteiro Lobato, editado em 1926.

Sim, podemos ver alguns elementos da Internet na Biblioteca de Babel. Mas a professora não parece ter muita familiaridade com a Web. Pois Babel, antes de estar na Internet, está nos hyperlinks das enciclopédias eletrônicas. Também surpreende que a uma uspiana não tenha ocorrido que, se quisermos procurar profetas da Internet, o primeiro não está em Buenos Aires. Mas bem perto de nós. Em Taubaté. Em junho de 1998, escrevi artigo mostrando que a Internet foi antecipada, no mundo todo, por Monteiro Lobato.

Taubateano antecipa a Internet – Lobato angustiava-se com o desperdício de energia e "os milhões de veículos atravancadores de espaço" - e isso nos primórdios do século passado - necessários para o deslocamento do homem até o trabalho ou lazer. Via a salvação na "fecunda descoberta das ondas hertzianas e afins". O trabalho, o teatro, o concerto passam então a vir ao encontro do homem. As condições do mundo se transformam quando a maior parte das tarefas, industriais e comerciais começam a ser feitas de longe pelo que Lobato chama de rádio-transporte.

Há três quartos de século, antes mesmo de sua viagem aos Estados Unidos, Lobato antevia o fim da maneira de fazer jornalismo da época e antecipava o que hoje é rotina em qualquer redação deste final de milênio. Através de miss Jane, o escritor de Taubaté começa a descrever a sociedade americana do futuro: "Pelo sistema atual – Lobato refere-se a 1926 – o colaborador ou escreve em casa o seu tópico ou vai escrevê-lo na redação; depois de escrito, passa-o ao compositor; este o compõe, passa-o ao formista, este o enforma e passa-o ao tirador de provas; este tira as provas e manda-o ao revisor; este o revê e envia-o ao corretor; este faz as emendas e... e a coisa não acaba mais! É uma cadeia de incontáveis elos, isto dentro das oficinas, pois que o jornal na rua dá início à nova cadeia que desfecha no leitor - correio, agentes, entregadores, vendedores, o diabo".

Toda essa complicação desapareceria. Cada colaborador do Remember, jornal criado na ficção lobatiana, "radiava" de sua casa, numa certa hora, o seu artigo, e imediatamente suas idéias surgiam impressas em caracteres luminosos na casa dos assinantes. Numa época em que computador, fibras óticas e satélites pertenciam ao universo mental de visionários, Lobato fala de rádio-transporte. Se substituirmos esta expressão por fax/modem, temos o criador de Bentinho e Jeca Tatu antecipando, há sete décadas, um jornal que já existe. Seus correspondentes há muito enviam seus "caracteres luminosos" para suas redações. Daí ao leitor recebê-los numa tela em sua casa, basta uma decisão administrativa, já tomada por centenas de empresas no Brasil e no mundo ocidental. E quando o acervo da literatura universal estiver digitalizado, poderá consultar, de sua casa, todas as bibliotecas do mundo.

Além da era da roda - "As ruas tornaram-se amáveis, limpas e muito mansas de tráfego" – continua Lobato –. "Por elas deslizavam ainda veículos, mas raros, como outrora nas velhas cidades provincianas de pouca vida comercial. O homem tomou gosto no andar a pé e perdeu os seus hábitos antigos de pressa. Verificou que a pressa é índice apenas de uma organização defeituosa e anti-natural. A natureza não criou a pressa. Tudo nela é sossegado".

Esta previsão, melhor creditá-la ao pendor utópico do escritor, que não chegou a vislumbrar este lado provinciano do brasileiro, que se sente despido e humilhado se não tiver uma carroça sobre quatro rodas. Enfim, para sonhar não se paga imposto. Mas Lobato vai mais longe. Miss Jane considera superada a revolução da roda. Segundo a moça, "o homem deu o primeiro grande passo em matéria de transporte com a invenção da roda. Mas ficou nisso. Repare que a nossa civilização industrial se cifra em desenvolver a roda e extrair dela todas as possibilidades. Daqui a séculos, quando for possível ao homem uma ampla visão de seu panorama histórico, todo este período que vem do albor da história e ainda vai prolongar-se por muitas gerações receberá o nome de Era da Roda".

O rádio matará a roda, segundo Miss Jane. "A roda, que foi a maior invenção mecânica do homem e hoje domina soberana, terá seu fim. Voltará o homem a andar a pé. O que se dará é o seguinte: o rádio-transporte tornará inútil o corre-corre atual. Em vez de ir todos os dias o empregado para o escritório e voltar pendurado num bonde que desliza sobre barulhentas rodas de aço, fará ele o seu serviço em casa e o radiará para o escritório. Em suma: trabalhar-se-á à distância".

Lobato fala em rádio, o must dos anos 20. Se não podia prever as nuvens de terabytes diariamente transmitidas de um ponto a outro do planeta pela WEB, intuiu muito bem suas conseqüências. O teletrabalho – trabalho "radiado" para o escritório, como diria Lobato – já é um fenômeno em expansão. Hoje, qualquer trabalhador intelectual, desde que tenha um telefone por perto, pode enviar sua produção para qualquer canto do mundo, refugiado num chalé no Itatiaia ou em busca de solidão e deserto em Tamanrasset. Jornais impressos a milhares de quilômetros de suas redações há muito não constituem mais novidade.

Segundo o historiador francês Roger Chartier, a revolução hoje em curso é muito mais ampla que a de Gutenberg, de 1455, "pois transforma as próprias formas de transmissão do escrito. A passagem do livro, do jornal ou do periódico, como os conhecemos hoje, para a tela de computador, rompe com as estruturas materiais do texto escrito. A única comparação histórica possível é a revolução no início do cristianismo, nos séculos II e III, quando o livro da Antiguidade, em forma de rolo, deu lugar ao livro herdado por Gutenberg, o códice, com folhas e páginas reunidas em cadernos".

Habitantes deste final de milênio, somos testemunhas privilegiados da revolução intuída por Lobato. Revolução das boas, sem sangue e sem volta. Sem sequer imaginar a existência de computadores, o escritor paulista anuncia a Internet. Cabe lembrar que, em 1996, o Brasil foi um dos primeiros países do mundo a instituir o voto informatizado, instituição já em funcionamento nesta ficção escrita há sete décadas.

A biblioteca de Borges - Também ao sul do Equador, um vizinho nosso, situado às margens do Prata, imaginava um acervo que hoje começa a tomar corpo com a Internet. Falava de uma biblioteca em forma de esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono. Sua circunferência é inacessível. Existe ab aeterno e nela não há dois livros idênticos. É ilimitada e periódica. Assim definia o Jorge Luis Borges, em um conto datado de 1941, a Biblioteca de Babel. Em alguma prateleira de algum hexágono existiria um livro que era a chave e o compêndio de todos os demais. "Algum bibliotecário o terá percorrido e é análogo a um deus".

Na Babel de Borges, há um grave problema de comunicação. A Biblioteca abarca todos os livros. Todo conhecimento humano está disperso pelos hexágonos. O problema é encontrar o que se busca. Milhares de funcionários lutam, se estrangulam e morrem em busca dos livros nos corredores da biblioteca, muitas vezes derrubados por homens de hexágonos remotos. Outros enlouquecem. O autor exagera, o que é direito de todo ficcionista. Mas em muitas bibliotecas contemporâneas os funcionários já usam bicicletas ou patins para buscar os livros.

Em 41, estávamos a meio século da Internet. Hoje, aos buscadores desta ficção de Borges bastaria digitar um endereço eletrônico e teriam em segundos os livros desejados, sem a necessidade de estrangular-se ou enlouquecer, pedalar ou patinar, subir escadas ou cair em poços sem fundo. Hoje, um leitor de qualquer parte do mundo, com uma placa modem em seu computador, pode acessar a Congress Library em Washington, a Bibliothèque Nationale em Paris ou a Biblioteca Nacional de Madri. Hoje, temos ao alcance de um clique de mouse, tanto Plutarco como Platão, até Descartes ou Marx, passando pela Bíblia, Voltaire ou Dostoievski.

Teoricamente, já se pode pensar na biblioteca total de Borges. Chegar lá é uma questão de tempo. A biblioteca faraônica iniciada por François Mitterrand - Tontonkhamon, para os inimigos íntimos - em Paris, concebida para armazenar acervos futuros, com seus quatro prédios mastodônticos em forma de livro, nasceu mais ou menos obsoleta. Seu design pertence ao passado.

A pergunta “quantos livros tem sua biblioteca?” inclusive perdeu o sentido e não mais permite uma resposta precisa. Vivemos uma época em que ninguém sabe de quantos livros dispõe em seu gabinete de trabalho. Os livros ao alcance de sua mão - ou de seu mouse - são tantos quanto os que estão digitalizados e disponíveis na grande rede, esteja você morando em qualquer aldeia do fim do mundo. Desde, é claro, que tenha uma linha telefônica por perto.

Aleph, porviroscópio, webcams e Google Earth - Borges, sonhador irrecuperável, antecipa em suas ficções a biblioteca sonhada por todo bibliófilo, hoje em construção. Mas o autor vai mais longe em seu desejo de futuro. Em Aleph, conto publicado em 1949 – 23 anos após o livro de Lobato –, Borges nos fala do peculiar poeta Carlos Argentino, que se propõe nada menos que "versificar toda a redondez do planeta". Carlos, que está construindo sua obra a partir de seu quarto, entra em pânico quando lhe noticiam a demolição de sua velha casa na Calle Garay. Pois nela, em algum ponto de uma escada no porão, existe um aleph, "o lugar onde estão, sem confundir-se, todos os lugares do mundo". A partir daquela pequena esfera, de dois ou três centímetros de diâmetro, Carlos Argentino perscrutava o mundo, a fonte de seu poema colossal. Vejamos a descrição do aleph, feita por Borges em 1949.

O diâmetro do Aleph seria de dois ou três centímetros, mas o espaço cósmico estava ali, sem diminuição de tamanho. Cada coisa (a face do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu claramente a via desde todos os pontos do universo. Vi o populoso mar, vi a alba e vi a tarde, vi as multidões da América, vi uma teia prateada no centro de uma negra pirâmide, vi um labirinto rompido (era Londres), vi intermináveis olhos imediatos perscrutando-se em mim como em um espelho, vi todos os espelhos do planeta e nenhum me refletiu, vi em um pátio da rua Soller os mesmos ladrilhos que há trinta anos vi no saguão de uma casa em Fray Bentos, vi racimos, neve, tabaco, veios de metal, vapor de água, vi convexos desertos equatoriais e cada um de seus grãos de areia, vi em Inverness uma mulher que não esquecerei, vi a violenta cabeleira, vi o altivo corpo, vi um câncer no peito, vi um círculo de terra seca em uma vereda, onde antes houve uma árvore, vi um sítio em Adrogué, um exemplar da primeira versão inglesa de Plínio, a de Philemon Holland, vi ao mesmo tempo cada letra de um volume (quando criança, eu me maravilhava com o fato de que as letras de um volume fechado não se misturassem e se perdessem no transcurso da noite), vi a noite e o dia contemporâneo, vi um pôr-de-sol em Querétaro que parecia refletir a cor de uma rosa em Bengala, vi meu dormitório sem ninguém, vi em um gabinete de Alkmaar um globo terrestre entre dois espelhos que o multiplicavam ao infinito, vi cavalos de crinas enredadas. Em uma praia do mar Cáspio vi a alba, vi a delicada ossadura de uma mão, vi os sobreviventes de uma batalha, enviando cartões postais, vi em uma vitrine de Mirzapur um baralho espanhol, vi as sombras oblíquas de fetos no chão de uma estufa, vi tigres, êmbolos, bisões, maremotos e exércitos, vi todas as formigas que há na terra, vi um astrolábio persa, vi em uma caixa do escritório (e a letra me fez tremer) cartas obscenas, incríveis, precisas, que Beatriz havia dirigido a Carlos Argentino, vi um adorado monumento em La Chacarita, vi a relíquia atroz do que deliciosamente havia sido Beatriz Viterbo, vi a circulação da morte, vi o Aleph, desde todos os lados, vi no Aleph a terra, e na terra outra vez o Aleph e no Aleph a terra, vi meu rosto e minhas vísceras, vi teu rosto, e senti vertigem e chorei, porque meus olhos haviam visto esse objeto secreto e conjetural, cujo nome os homens usurpam, mas que nenhum homem mirou: o inconcebível universo.

Contemporaneamente, não falaríamos em aleph – escrevi na época – mas em webcams, a rede incipiente de câmeras onde, se não podemos ver o universo em sua totalidade, podemos bisbilhotar cada vez mais seus pontos mais longínquos. Hoje, de minha mesa de trabalho, posso ver o quarto de Jennifer e a praça do Kremlin, uma ponte em Liljestrom, na Suécia, e a faina diária de uma formiga, uma universidade imersa na escuridão no norte da Noruega e um papagaio na Austrália, a torre Eiffel e as lavas candentes de um vulcão. Sem falar, é claro, nos livros da biblioteca de Babel em construção.

Monteiro Lobato, para consultar o futuro, cria em O Presidente Negro um aparelho semelhante, o porviroscópio, uma espécie de globo cristalino, através do qual Miss Jane perscruta o mundo do século 23. O professor Benson obtém, neste aparelho,

(...) uma corrente contínua, que é o presente. Tudo se acha impresso em tal corrente. Os cardumes de peixe que neste momento agonizam no seio do oceano ao serem apanhados pela água tépida do Golfo, o juiz bolchevista que neste momento assina a condenação de um mujik relapso num tribunal de Arkangel; a palavra que, em Zorn, neste momento, o kronprinz dirige ao ex-imperador da Alemanha, a flor do pessego que no sopé do Fushiama recebe a visita de uma abelha; o leucócito a envolver um micróbio malévolo que penetrou no sangue dum fakir da Índia; a gota d’água que espirra do Niágara e cai num líquen de certa pedra marginal; a matriz de linotipo que em certa tipografia de Calcutá acaba de cair no molde; a formiguinha que no pampa argentino foi esmagada pelo casco do potro que passou a galope; o beijo que num estudio de Los Angeles Gloria Swanson começa a receber de Valentino...

A forma como o visionário de Taubaté descreve o universo vislumbrado no porviroscópio é quase idêntica à descrição do aleph, publicada 23 anos mais tarde. O achado de Borges revela-se uma paráfrase do texto lobatiano. Se considerarmos que Borges conhecia a literatura de Lobato, e que este viveu em Buenos Aires em 1946, três anos antes da publicação de El Aleph, é bastante pertinente supormos que o autor argentino andou bebendo na cacimba de nosso taubateano. Enquanto os sedizentes modernistas de 22 papagueavam Marinetti, Marx e outros doutrinadores totalitários europeus, Lobato, o escritor excluído do universo intelectual pelos seus contemporâneos, olhava meio século adiante.

Hoje, juízes bolchevistas, leucócitos que envolvem micróbios e beijos de Gloria Swanson à parte, o Google Earth é a mais perfeita aproximação do porviroscópio lobatiano. Que antecede em duas décadas o Aleph borgiano. Espanta constatar que uma professora da USP desconheça estes fatos literários. O que só demonstra a subserviência cega dos PhDeuses uspianos ao que se publica no Exterior. Olhasse a professora para a próxima Taubaté, veria que foi Lobato e não Borges o grande profeta dos novos tempos.