¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, novembro 29, 2007
 
UM COCHINILLO, UM RIOJA, UMA
ROMENA E UM ABRAÇO EM TOLEDO



Sempre que vou à Espanha, reservo um dia para Toledo. Graças aos trens de alta velocidade, a antiga capital espanhola está agora a 25 minutos de Madri. Em Toledo, tenho dois compromissos solenes: um almoço na Casa Aurélio e uma visita à catedral, uma das mais soberbas da Europa. Mas atenção! Há três restaurantes na cidade com esse nome, sendo que dois deles ficam na rua Sinagoga. A cozinha é a mesma nos três e excelente. Mas a casa da Sinagoga 1 é a mais aconchegante. Pelo menos para mim, já que suas paredes são revestidas de estopa e de arreios e instrumentos do campo. Uma vez no Aurélio, só consigo ver três pratos à minha frente, o cochinillo, o cordero lechal e a perdiz toledana.

Mas não consigo optar. Vou direto ao cochinillo. Enfim, como nunca viajo só, minha parceira geralmente pede um lechal e fazemos um intercâmbio cultural. Tudo isto regado a um Marqués de Cáceres. Ou de Riscal. Ou melhor, a um Marqués de Cáceres mais um Marqués de Riscal. De modo que quando chego à catedral, sempre tenho a nítida impressão que suas naves estão girando suavemente. Minha Baixinha adorada também chegava à catedral no mesmo estado - como direi? - de espírito que eu. Na última vez que esteve lá, sufocada pela beleza, começou a chorar. Uma senhora aproximou-se dela, quis saber se não sentia mal. Nada disso. Ela se sentia bem demais, e por isso chorava. A beleza, quando em excesso, sempre nos fez chorar.

Outro ritual que sempre cumpro em Toledo é subir a pé aquele penhasco do Tajo. Que é o mesmo Tejo que banha Lisboa. É a maneira que encontro de medir minha forma física. Enquanto puder chegar ao Zocodovar a pé, é porque sou jovem. Sem falar que a subida, mais ou menos uma hora penhasco acima, é belíssima. Confesso que desta última vez, em março passado, preferi tomar um ônibus. Estava com las bisagras emohecidas – como diriam os espanhóis. Isto é, com as dobradiças enferrujadas. Um problema de joelho me fez pensar duas vezes antes da empreitada. Mas Toledo não perde por esperar. A próxima vez será a pé.

Mas não era disto que pretendia falar. E sim da Romênia, que surge de repente nos grupos de mais alto IDH, da ONU, um pouco antes do Brasil. A ONU que me desculpe, não acredito. Aliás, em editorial publicado hoje, o Estadão punha em dúvida esta classificação. “Causa compreensível estranheza encontrar o Brasil abaixo de países como a Romênia, Albânia e Macedônia - que despejam sem cessar legiões de imigrantes na Europa Ocidental – para não falar de Líbia, Tonga, Maurício e assimilados”. Causa estranheza mesmo. Talvez a explicação esteja na antiga mania de maquiar dados, típica dos antigos países socialistas.

Bom, eu estava na Casa Aurélio fingindo que lia o cardápio – pois não preciso de cardápio para saber o que quero quando estou lá – e fui atendido por uma espanhola adorável, jovenzinha e linda, doce e falando um impecável espanhol de Castilla, la Vieja. Aquela garçonete era um valor agregado ao cochinillo e ao vinho. Sem falar que a proximidade física de uma mulher bonita é sempre agradavelmente perturbadora. Puxei de minha melhor pronúncia para não fazer feio ante a moça e – surpresa! – descubro que ela era romena e estava há apenas dois anos na Espanha. Não sei o que me deu, afinal eu ainda nem degustara o riojano, mas fiquei comovido até o âmago.

Já falei de minhas desventuras na Romênia, o país mais miserável do continente europeu que me foi dado conhecer. De repente, ali na minha frente, eu via uma cidadã romena, jovem e linda, feliz da vida, perfeitamente integrada à vida espanhola e mais, falando aquele espanhol divino. Escapara do inferno, pensei, e tinha agora um futuro risonho pela frente. Falei de meus dias em Bucareste, Mangalia e Constanza nos anos 80 e ficamos um bom tempo conversando. Bom, me disse a moça, “as coisas melhoraram um pouco de lá para cá. Se voltares a Mangalia, não vais reconhecer a cidade”. Mas é claro que ela não trocaria o novo país pelo antigo. Com a vantagem de que, com o fim do comunismo, sempre podia voltar para rever parentes e amigos.

Ela voltou a seus afazeres. Éramos três. O Rioja chegou, o cochinillo, o lechal e a toledana também. Não consegui conversar muito com minhas parceiras de viagem. No fundo, eu vibrava com a vida nova da menina. Certamente teria um namorado que a queria bem, estava fazendo universidade, um dia teria ou não teria filhos, mas já tinha um belo futuro assegurado nel país más lindo del mundo, como dizia Camilo José Cela. Durante uma viagem longa por vários países, nossa sensibilidade se torna a cada dia que passa mais aguda, e eu estava num daqueles dias de lágrimas a flor da pele. Eu estava feliz com a felicidade dela. Quando o maître me trouxe a conta, pedi:

- Traeme también la rumana.

Ela veio. Acho que sabia o que a esperava. Abracei-a com todos meus braços e beijei-lhe as faces. Sem falar. Se falasse, ela ouviria uma voz quebrada pelo pranto. Síndrome de Stendhal ou efeito dos Riojas? Não sei. E fui visitar a catedral tomado por insólita alegria interior.