¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, agosto 16, 2007
 
BISPOS MENTEM E PAPA ENDOSSA




O americano David Livingstone Smith, autor de Por que Mentimos - Os Fundamentos Biológicos e Psicológicos da Mentira (Editora Campus/Elsevier), lançado no fim de 2005 no Brasil, concedeu no ano passado uma entrevista interessante à Veja. Suas teses, apesar de discutíveis, não deixam de ter uma sólida base na realidade que nos envolve.

Para Smith, "a mentira está por toda parte. Ela é normal. Todos mentimos e quem diz o contrário mente. Temos dificuldade em nos reconhecer como mentirosos porque há um julgamento moral contrário. Mentimos para obter vantagens e para nos proteger de algo, o que significa que estamos, de certa forma, passando a perna em alguém. Quem mente bem costuma se dar melhor do que quem não consegue fazê-lo".

Sim e não, diria eu. Nunca vi a mentira como normal e não costumo mentir. Quando criança, tenho de admitir, cometi minhas pequenas mentiras, tentando escapar de uma surra, certamente bem merecida. Hoje, não tenho mais esses medos, nem preciso mentir para obter vantagens ou proteger-me. Mentir é muito complicado, dizia Mário Quintana. Precisamos criar tantas mentiras para justificar a primeira que as acabamos esquecendo. Quando se mente, fica difícil manter a lógica da história. Mais dia menos dia, o mentiroso cai em suas contradições.

Se há pessoas que mentem para obter vantagens e proteger-se, como pretende Smith, nem sempre quem mente bem se dá melhor do que quem não consegue fazê-lo. O exemplo mais à mão é o do senador Renan Calheiros. Mente com propriedade, mas de modo algum pode se dizer que está se dando bem. Pode até não largar o osso do poder, mas está irremediavelmente desmoralizado ante a opinião pública.

Que políticos mintam, entende-se. Perguntaram-me certa vez porque nunca pensei em política. Por uma razão elementar: teria de mentir. Duvido que algum político se eleja sem mentir. Faz parte do jogo. Para cada platéia, você tem de interpretar o papel que rende mais votos. Ou não se elegerá. A mentira é inerente à política. Lula se elegeria se não tivesse mentido toda sua vida? Nunca. FHC muito menos.

Se mentir faz parte da personalidade do político, mentir é muito feio quando quem mente são bispos. A Igreja, bem entendido, existe em função de uma mentira maior, a de que Deus existe e é criador dos céus e da terra. Esta mentira milenar é mais ou menos universalmente aceita, a tal ponto que virou verdade para muitos. Deixemos então esta mentira colossal de lado. Vamos à mentira mesquinha dos bispos latino-americanos ao papa.

Leio no Estadão de hoje que o documento votado pela 5ª Conferência-Geral do Episcopado da América Latina e do Caribe, realizado em maio em Aparecida, foi alterado pela presidência do Conselho Episcopal Latino-Americano (Celam) antes de ser entregue ao papa, em 11 de junho. As mudanças mais relevantes referem-se às Comunidades Eclesiais de Base (Cebs), núcleos de fiéis ligados à Teologia da Libertação com grande atuação pastoral e ideológica no continente nos últimos 40 anos. O texto divulgado pelo Vaticano, com a aprovação de Bento XVI, contém mais de 200 emendas feitas pelo cardeal chileno Francisco Javier Errázuriz Ossa e pelo bispo argentino Andrés Stanovnik, respectivamente presidente e secretário-geral do Celam na época. O jornal cita boa parte dos trechos alterados pelos purpurados chileno e argentino.

Pior ainda, a mentira parece ser prática usual dos senhores bispos. "Não sei quem alterou, mas quero saber, pois não é a primeira vez que isso ocorre", protestou o cardeal Geraldo Majella Agnelo, arcebispo de Salvador e primaz do Brasil. Por outro lado, o atual presidente do Celam, d. Raymundo Damasceno Assis, acha difícil anular o texto oficial depois de ele ter sido aprovado por Bento XVI e distribuído, em espanhol, às 22 conferências nacionais do continente. O cardeal Errázuriz, arcebispo de Santiago, escreveu uma carta-circular, na qual diz ter encaminhado a questão a seu sucessor e sugere que não se fale mais do assunto.

Um concílio de prelados falsifica um documento, o Sumo Pontífice endossa o documento falsificado e o distribui urbi et orbi, bispos e cardeais defendem a idéia de que a mentira deve ser mantida. "A melhor mentira é contada por aquele que acredita no que está dizendo”, diz David Smith.

Os bispos latino-americanos, pelo jeito, acreditam na própria mentira, tanto que querem eternizá-la. A justificativa do cardeal chileno é divina: "Daríamos uma grande alegria ao demônio se nos ocupássemos tanto das mudanças que ocorreram no texto final de modo que o mal-estar conseguisse eclipsar a maravilhosa experiência de Aparecida e suas grandes orientações pastorais". Para não alegrar o demônio, o papa endossa a mentira de seus príncipes.

A Igreja, que já havia conseguido passar uma borracha em seu passado inquisitorial - pelo menos para os que não conhecem História - vem perdendo credibilidade dia-a-dia, graças à sua política assassina de condenação dos anticoncepcionais e preservativos nesta época de Aids e ao acobertamento das práticas pedófilas de seus ministros. Ao endossar a tese de Smith, de que "a mentira não é boa ou ruim, ela é necessária", os purpurados latino-americanos estão se reduzindo à estatura moral de um Renan Calheiros e seus pares.