¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, julho 30, 2007
 
OS CÃES, O DIREITO E DEUS




Vivi em Paris de 1977 a 1981. Se houve algo que me chocou na França, foi o status do qual gozavam os cães. Cheguei até a mesmo a fazer um dossiê sobre o assunto, que deveria ter uns bons quatro ou cinco quilos. Uma pequena parte desse dossiê está transcrita em Ponche Verde.

Do Le Monde, por exemplo, reproduzi uma reportagem sobre uma psicanalista de cães. A moça tinha seis anos de especialização na Inglaterra - onde a psicanálise canina está um século à frente em relação à França, dizia o jornal - e falava dos traumas que poderiam acometer os animaizinhos. Um dos graves problemas do cão parisiense era a crise de identidade, de tanto andar entre humanos o cão acabava esquecendo que era um cão, assim era bom que de vez em quando ele saísse com seus semelhantes. Um outro problema, e este dos mais graves, era o fato de que, sendo o cão muito sensível, seus problemas psíquicos muitas vezes não decorriam de seu próprio psiquismo, mas dos problemas vividos pelos proprietários. Se havia atritos no casal, estes eram imediatamente intuídos pelo cão, de modo que a psicanalista se via forçada a sugerir ao casal uma boa análise, pelo menos em nome da saúde psíquica do cão.

Mas o recorte que mais me impressionou na época foi sobre o direito de visita a cães. Um marido, em instância de divórcio em Cretéil, Val-de-Marne, obteve de um juiz de paz um direito de visita a seu cãozinho, já que a mulher havia ficado com a guarda do animal. O casal só se entendia em dois pontos: a ruptura e a vontade de ver regularmente o bichinho. O juiz, após ter oficialmente constatado que havia convergência de pontos de vista por parte do marido e da mulher a respeito do animal, deu ao marido o direito de visitar seu cachorro dois fins-de-semana por mês e de guardá-lo durante boa parte das férias.

Para mim, latino, era como se estivesse lendo alguma ficção de Swift ou Kafka. Nunca entendi - e até hoje não entendo - como pode um casal mobilizar a máquina judiciária para chegar a um acordo tão banal.

Entre os livros que trouxe da França, está um Guide du Chien en Vacances, que mapeia a rede hoteleira destinada aos cães, com hotéis divididos em um, dois e três ossos, sendo que nesta última categoria os cuscos eram postos à mesa com guardanapos e servidos, na sobremesa, com crêpes au Grand Marnier. Trouxe também o Recettes pour Chiens et Chats, best-seller que em seu prefácio oferece às donas-de-casa a alternativa de, em vez de utilizar enlatados, cozinhar para o prazer de seus fiéis companheiros. O livro dá uma série de receitas à base de carnes e peixes, mais manteigas caninas, para animais carnívoros ou vegetarianos, mais bebidas e molhos, tudo aquilo como entrada para depois sugerir pratos de resistência, onde se prevê também um regime sem ossos, mais bolos e doces, mais cosméticos e remédios, onde se especifica desde pastas dentifrícias com mel e óleos de massagem pós-banho.

Visitei também Asnières, um dos dois cemitérios para cães de Paris. Visitei-o, propositadamente, num dia de Finados. Outra hora faço o relato de minha visita. O que me ocorre agora é comentar notícia que li ontem no Estadão. Em Wisconsin, nos Estados Unidos, uma

LEI VAI REGULAR GUARDA DE BICHOS DE ESTIMAÇÃO

É o que diz a manchete. Os legisladores do Estado americano estão discutindo um projeto de lei que determina como os tribunais devem resolver as disputas de casais em processo de divórcio pela guarda de animais de estimação. Segundo o projeto, é preciso especificar, entre outras coisas, os direitos de visita e de viagem com o animal de estimação. Se o casal não chega a acordo, o juiz escolhe um dos cônjuges como tutor do bicho ou o envia para um abrigo.

Vive la France! Aquela decisão de um juiz francês nos anos 70 - que mesmo na França de então causava espécie - parece estar fazendo escola nos Estados Unidos. "Tradicionalmente, os tribunais tratam os animais de estimação como um objeto", diz a parlamentar Carol Roessler, co-autora do projeto. "Mas um cachorro não é uma escrivaninha". Como dizia Antônio Rogério Magri, ex-ministro do Trabalho e Assistência Social, cachorro também é gente. O ministro foi ridicularizado na época. Nos Estados Unidos, estaria criando jurisprudência.

A principal defensora da nova legislação é a republicana Sheryl Albers, que promoveu a lei da guarda dos bichos de estimação por causa da experiência vivida por seu marido, quando ele se divorciou em 2003 da mulher anterior. Eles entraram numa briga violenta sobre quem deveria cuidar do labrador da família, Sammi. As crianças queriam ficar com Sammi, já idoso e sofrendo de incontinência urinária. Mas nenhum dos pais se dispunha a cuidar do cão em tempo integral. O juiz da Corte Distrital do Condado de Dane decidiu, então, que, da mesma maneira que as crianças dividiriam o tempo entre o pai e a mãe, seria obrigatório compartilhar as atenções em relação a Sammi.

Um novo ramo do direito, o Direito Animal, começa tomar corpo nos Estados Unidos. Segundo Richard Cupp, diretor da Faculdade de Direito da Universidade de Pepperdine, na Califórnia, "é uma das áreas do Direito que se expande mais rápido no país'. Coisas de país grande, que institucionalizou a tortura e a prisão sem culpa formada para humanos e se volta para minudências no trato dos animais. Como o Brasil adora importar o que de mais ridículo produz o Primeiro Mundo, não perdemos por esperar. Dentro em breve nossos juízes estarão decidindo a qual parceiro de um casal confiar a guarda de um cão.

Vi piores, na França. Em meu dossiê veio também um outro livrinho, intitulado L’Animal, l’homme et Dieu, de Michel Damien (Paris, Editions du Cerf, 216p., 45 F na época). Ocorre, diz o autor, que se escreva sobre o animal para situá-lo em relação ao homem, mas é muito raro que os cristãos ultrapassem a etapa da poesia franscicana para chegar a uma espécie de teologia da natureza animada.

LE CHRIST EST MORT AUSSI POUR LES CHIENS

Assim titulou o Le Monde sua reportagem sobre o livro de Damien. "A solidariedade do homem com o animal não é somente biológica, natural, ela é ontológica, transcendental, evangélica. O Cristo morreu também pelos cães. A Igreja Católica infelizmente está ausente deste debate. Os animais não receberam nenhum status de sua parte. No entanto, se o animal não tem a noção de Deus, ele tem por outro lado aquela do homem, que foi feito à imagem de Deus. (...) Os cães nos esperam no caminho de Cristo. Eles são nossos próximos. Seu sofrimento misterioso é uma participação das Beatitudes. Há um Evangelho do animal, que também morreu nos braços de Deus. O animal tem algo de comum com o Cristo: ele morre pelo mundo e seu sacrifício é indispensável ao equilíbrio deste mundo".

Mais um pouco e teremos diferentes confissões de fé para os cães. Teremos talvez cães católicos, luteranos, evangélicos e quem sabe até mesmo espíritas.

Assim caminha o Primeiro Mundo.