¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, abril 29, 2007
 
HOY ES FIESTA!



Já que falei em Espanha... Quem me acompanha, sabe de minha paixão pelo país e particularmente por Madri. Camilo José Cela dizia ser a Espanha o país mais lindo do mundo. Assino embaixo e acrescento: e Madri é a cidade mais linda da Espanha.

Não falo do aspecto físico, arquitetônico, da cidade. Neste sentido, se ficarmos só nas capitais, eu diria que Paris e Roma batem Madri de longe. Até mesmo a modernosa Estocolmo, espalhada pelo continente e por mais quatorze ilhas, a meu ver tem mais charme que Madri. Já nem falo de Amsterdã, milagre do engenho humano. Nem mesmo de Praga, vista por alguns como a Paris do Leste. Nem de Viena, imperial e solene. Em minhas primeiras viagens, eu imaginava que os mais belos cafés do mundo eram os de Paris e Madri. Ledo engano de viajante imaturo. São os de Viena. Se você quiser fazer uma viagem de sonho, vá até lá e passe duas ou três semanas apenas visitando os cafés. Vale a viagem.

Mas falava de Madri. Se você conhecê-la por fora, a cidade não impressiona muito. Pelo menos para quem já conhece as demais capitais européias. É preciso conhecê-la por dentro. Seu encanto reside nos madrilenhos e na vida callejera. Se você sair para a rua às nove da noite, pode até pensar que a vida noturna já morreu. Nada disso. É que eles ainda não saíram de casa. Nem pense em almoçar ao meio-dia, os restaurantes estão desertos. Eles começam a pensar no assunto a las dos del medio día. Neste intervalo, o comércio fecha as portas. Para abrir lá pelas quatro e meia ou cinco, que ninguém é de ferro. Afinal, temos ainda a siesta, ritual único na Europa, recuperação para enfrentar a noite. Há horas a Comunidade Européia tenta regularizar o horário de comércio e bancos na Espanha e abolir a siesta. Mas Madri resiste: No pasarán!

Já vivi madrugadas esplêndidas em Madri, a temperatura a menos de zero grau e os madrilenhos fervilhando pelo casco viejo da cidade. Nada de automóveis. Homens e mulheres, velhos e crianças, todos a pé. O que costumo chamar de geografia etílica é um quadrilátero relativamente pequeno, que se estende da Plaza Mayor até Paseo de Recoletos - passando por Plaza del Angel e Lavapiés - voltando por Fuencarral e fechando na Plaza de Oriente, frente ao Palácio Real. Dentro deste quadrilátero você tem o melhor de Madri. Fora dele até pode ter coisas interessantes. Mas não interessam muito.

A estratégia é ir de tasca em tasca, umas tapas aqui, outras lá adiante, até finalmente sentar para jantar. A pequena distância entre um e outro bar estimula os vecinos - os habitantes da cidade - a caminhar. Há uma certa histeria nas noites madrilenhas. Uma das coisas que mais me fascina é ver a velharada em massa nas ruas e bares. A impressão que me fica é que ninguém senta diante de uma televisão naquelas bandas. Nota-se também um certo narcisismo na hora da bona-xira. Os espanhóis parecem ter elegido a cidade como uma espécie de espaço teatral e gostam de mostrar à platéia como comem bem.

Um amigo me contou um daqueles episódios que marcam a vida de um viajante. Estava em um cabaré de luxo e uma senhora já idosa e finésima o abordou e entregou-lhe um cartão:

- En su casa, Usted tiene la mujer de su vida. En nuestra casa, tenemos la mujer de sus sueños.

Elegância que não vamos encontrar em qualquer cidade do mundo. Quando se vive algum tempo numa cidade, sempre fica um episódio que nos marca fundo. Minha marca foi outra. Já vivia em Madri há uns bons seis meses, quando um amigo de Paris veio visitar-me. Pensei brindá-lo com algo típico. Em Maravillas, meu bairro, havia um pequeno restaurante muito ligado às lides taurinas, que servia um excelente rabo de toro. Lá por las nueve de la tarde, como dizem os madrilenhos, rumamos à tasca. Mal entramos, um venenciador nos recebeu com dois finos em punho.

Venenciador é um profissional que se especializa em servir jerez. Veste-se com uma espécie de traje de luces, aquelas vestes de toureiro. O fino é um copinho fino - daí o nome - onde se serve o jerez. Com uma haste de mais ou menos um metro, com outro copinho fino na ponta, ele apanha o jerez em uma barrica, e o despeja de uma altura de mais de metro no fino propriamente dito. Sem derrubar uma gota. É uma arte fascinante, mais ou menos perdida na Espanha atual.

O bar estava tomado por bailaoras y cantaores, que cantavam sevillanas. Fomos recebidos por uma saraivada de palmas y taconeos. Mal nosso jerez evaporava, o venenciador mergulhava o copinho no tonel e repunha a dose. Tudo isso, tendo como pano de fundo o alarido infernal das sevillanas.

Mas meu propósito era comer. Chamei o garçom. Temos rabo de toro?

- Hoy no se come. Hoy es fiesta.

Muy bien. Vamos então continuar a fiesta. Entre um fino e outro, hipnotizados, contemplávamos os meneios das bailaoras e os piropos dos cantaores. Acontecera que um toureiro amigo da casa havia matado cinco ou seis touros naquela tarde. A festa era em sua homenagem. Lá pela meia-noite, preocupado com o estômago, pedi a conta.

- Hoy no se paga. Hoy es fiesta.

Como não morrer de amores por uma cidade que acolhe o estrangeiro em suas festas íntimas, o recebe com a finesse de um venenciador, oferece-lhe seus melhores vinhos e suas mais lindas canções e mulheres, sem cobrar nada por isso?

Hoy es fiesta. Quando evoco Madri, esta é a primeira imagem que me vem à mente. Em verdade, lá é festa todo dia.