¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sábado, março 24, 2007
 
CRONISTA CATÓLICO CONSERVADOR
DETURPA OBRA DE
ESCRITOR CATÓLICO ORTODOXO




Em 12 de fevereiro passado, escrevi neste blog que os católicos gostam muito de

empunhar Deus como fundamento de toda ética, como se não pudesse existir ética sem a crença em Deus. "Se Deus não existe, tudo é permitido". Esta frase é imputada a Dostoievski, em Os Irmãos Karamazov. Ora, ele jamais escreveu isto. Foi Sartre quem disse que ele havia escrito. Quem cita esta frase são geralmente pessoas que nunca leram Dostoievski e o citam de ouvir falar. Recentemente, me dei ao trabalho de reler Os Irmãos Karamazov para ver se Dostoievski havia realmente escrito tal bobagem. Encontrei mais de 270 referências a deus - seja o próprio, seja em expressões como "meu Deus", e não encontrei nada semelhante.

Esta afirmação, aliás, eu faço desde há muito. Em fevereiro, eu a fiz pela última vez. Escreve o cronista católico conservador Reinaldo Azevedo em sua coluna na edição de hoje da revista Veja:

Atribui-se, aliás, a Dostoievski a frase: "Se Deus não existe, tudo é permitido". Mais ou menos. É bom contextualizar. Quem escreveu isso foi Sartre (1905-1980), em O Existencialismo é um humanismo. No autor russo, há coisa parecida. Aliocha Karamazov (...) diz em tom de censura a Ivan (...): "Mas, se Deus não existe, então não há crime e não há pecado: tudo é permitido". A afirmação era feita em tom de censura. No capítulo 9 do livro 11, Ivan ouve a mesma afirmação, aí feita pelo diabo.

Não, não vou afirmar que o cronista católico tenha se pautado por minha crônica. Até pode ser que tenha descoberto a história por si próprio. (O que é certo é que quis apropriar-se da expressão Supremo Apedeuta, esta sim, criação minha. Mas isto são águas passadas). Mas também é certo que não leu Dostoievski. Está citando por ouvir dizer. Se examinarmos atentamente Os Irmãos Karamazov, encontraremos 70 ocorrências da palavra "pecado" (inclusive plurais e forma verbal), mas nenhuma no contexto citado pelo cronista católico. Há também 95 ocorrências da palavra "crime" (inclusive no plural) e mais 25 da palavra "permitido". O mais próximo que existe é o que segue. Para começar, a observação de Piotr Alexandrovitch Mioussov :

- Ivan Fiodorovitch ajuntou entre parêntesis que lá está toda a lei natural, de maneira que se você destrói no homem a fé na sua imortalidade, não somente o amor nele perecerá, mas também a força de continuar a vida no mundo. Mais ainda, não existiria nada mais que fosse imoral; tudo será autorizado, mesmo a antropofagia. E não é tudo: ele acaba afirmando que para todo indivíduo que não crê em Deus nem em sua própria imortalidade, a lei moral da natureza deveria imediatamente tornar-se o inverso absoluto da precedente lei religiosa; que o egoísmo, mesmo levado ao crime, deveria não somente ser autorizado, mas reconhecido como uma solução necessária, a mais razoável e quase a mais nobre.

Mais adiante, Mitia se pergunta:

- Mas então, que se tornaria o homem, sem Deus e a imortalidade? Tudo é permitido e, conseqüentemente, tudo é lícito? (...) Que fazer, se Deus não existe, se Rakitine tem razão ao pretender que é uma idéia forjada pela humanidade? Neste caso, o homem seria o rei da terra, do universo. Muito bem! Mas como ele seria virtuoso sem Deus?

Mitia diz para Aliocha:

- Mas então, que se tornaria o homem, sem Deus e sem imortalidade? Tudo é permitido e, conseqüentemente, tudo é lícito?

A voz do demônio:

- Mais ainda: mesmo se esta época não deve jamais chegar, como Deus e a imortalidade não existem, é permitido ao homem tornar-se um homem-deus, mesmo que fosse o único a viver assim.

Ou seja, a pergunta não é exatamente sobre Deus, mas sobre Deus e a imortalidade. A tônica repousa sobre imortalidade, que significa punições e recompensas. Os católicos querem ver nos personagens de Dostoievski a impossibilidade de uma ética sem Deus. No entanto, o que o autor empunha é a promessa de céu... ou de inferno. O fundamento de sua moral não é exatamente Deus, mas a esperança ou o medo. O cronista católico conservador, ao puxar brasa para seu assado, omite a questão da imortalidade e deturpa a obra do romancista católico ortodoxo.

Enfim, eles que são católicos que se entendam. Como ateu, não preciso nem de deus nem de imortalidade para ser ético.