¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quarta-feira, fevereiro 28, 2007
 
ALÉM DE PEDÓFILOS, CALOTEIROS



Se você expulsa a natureza pela porta, ela volta a galope pela janela, diziam os antigos. Inimiga de todo prazer e particularmente dos prazeres sexuais, a Igreja católica está recebendo o troco: é hoje a instituição que tem mais alto número de profissionais envolvidos em crimes sexuais. Com a agravante de que são crimes cometidos contra crianças.

Para fugir às indenizações milionárias devidas às vítimas de pedofilia, as igrejas americanas estão usando um expediente contábil. Declaram falência. Os santos ministros da Santa Madre estão se revelando, além de pedófilos, caloteiros.

terça-feira, fevereiro 27, 2007
 
RECONSIDERANDO



Escrevi ontem sobre quatro jornais que se mantiveram alheios ao Oscar. Bom, talvez tenha sido questão de fuso horário. El País e Le Monde dão hoje ampla cobertura à competição. Aftonbladet e Libération, pelo menos em suas edições on line, nem água.

Charles Pilger me dá um puxão de orelhas, afirmando que eu mesmo me desminto ao afirmar que "desde jovem, tive por filosofia que filme premiado com o Oscar é filme para não ser visto". Afinal, tanto A Festa de Babete como Mash e La Strada levaram o prêmio. Pilger acha que se continuar pesquisando vai encontrar mais filmes que citei que ganharam o Oscar.

Ok, Pilger! Pode levantar as fichas. Ocorre que vivo tão longe do Oscar, que sequer sabia que tais filmes haviam recebido o prêmio. Pilger ainda me alerta que Palombella Rossa "foi vencedor do prêmio de crítica do Festival Internacional de Cinema de São Paulo, em 1990". Grato pela lembrança. Só não consigo lembrar de ter visto o filme lançado no circuito comercial. Se alguém o viu, peço corrigir-me.

 
MEUS FILMES DILETOS



Por falar em filmes, há alguns meses um amigo me perguntava quais eram meus filmes prediletos. O dileto entre os diletos, que vejo e revejo com prazer, é A Festa de Babete, de Gabriel Axe. Certamente, o mais belo e sensível filme que já vi. Mexeu muito comigo também The Map of Human Heart, de Vicent Ward, que creio que não passou no Brasil. No fundo, a busca de uma filha pelo pai, um esquimó que, por circunstâncias da vida, tornou-se fotógrafo em um bombardeiro inglês durante a Segunda Guerra. Comovente.

Mash, de Robert Altman e A Vida de Brian, de Terry Jones, até hoje me fazem rir, particularmente este último. É a mais ferina sátira já feito pelo cinema ao cristianismo. Palombella Rossa, de Nanni Moretti, ataca os comunistas. (Só passou no Brasil quase clandestinamente, em um festival no Rio). Louve-se o engenho do cineasta: consegue fazer um filme dinâmico e divertido que se passa praticamente o tempo todo dentro de uma piscina.

Já ri muito com o primeiro O Incrível Exército Brancaleone , de Mario Monicelli. Curiosamente, revendo o filme com minha filha, há coisa de um ano, não achei muita graça.

Morri de rir vendo East Side Story, produção alemã da romena Dana Ranga. (Passou em um cinema escondido nos confins de São Paulo. Quando fui ver, tinha apenas três espectadores). Sempre me comovem La Strada e Noites de Cabíria, de Fellini. Como aliás quase todos seus filmes. Adoro Bas Fond, do Kurosawa (vi o filme em Paris, não sei qual o título brasileiro), como também seus demais filmes. Curto muito também o Buñuel, particularmente O Anjo Exterminador. Falando nisso, alguém viu J'irais comme un cheval fou, do Arrabal? Vale a pena. Pelo que sei, também não passou no Brasil.

Outro filme belíssimo que vi foi Lepota Poroka (em francês, La Beauté du Peché), do iugoslavo Zivko Nikolic, com uma atriz divina, Mira Furlan. Uma moça que vivia nas montanhas da Iugoslávia, vai trabalhar em uma colônia de nudismo na costa croata. O conflito cultural é inevitável. Em Estocolmo, lá por 71, vi outro belo filme que jamais deu as caras por aqui, The Bus, do turco Tunç Okan. Um grupo de imigrantes turcos clandestinos é jogado dentro de um ônibus, que é abandonado em plena T-Centralen, a estação central do metrô de Estocolmo. Foi o primeiro filme que vi sobre a condição do imigrante na Europa.

Enfim, a lista seria grande. Suécia, Finlândia, Dinamarca têm excelentes produções que desconhecemos. A propósito, outro filme que me lavou a alma, foi O Filósofo, filme alemão cujo autor agora não lembro. É a história de um jovem conferencista que vai escolher um terno para sua palestra em uma loja e é atendido por três mulheres divinas, uma mais linda que a outra. As três adotam o "filósofo" e o cercam com muito sexo e mimos. Genial! Se alguém o encontrar em alguma locadora, recomendo vivamente.

Escrevi muito tempo sobre cinema e estudei um ano de cinema na Stockholms Universitet. Em sua cinemateca, vi filmes desde os primórdios do cinema, que jamais foram vistos por estas bandas. Durante meus quatro anos de Paris, com
minha credencial de jornalista, não pagava entrada em sala alguma. Foi uma festa. Um de meus critérios básicos: não ver filmes franceses. Com isto não quero dizer que os filmes franceses sejam ruins. Apenas que não gosto do jeito deles filmarem. São muito literários. O cômico francês Louis de Funès estabelecia uma diferença entre o cinema francês e o americano. Diante de uma porta, no cinema americano o personagem abre a porta e entra. No cinema francês, o personagem não abre a porta sem antes falar: "Voilà, la porte!" E só depois entra.

Ultimamente, os melhores que vi foram Adeus Lênin, do alemão Wolfgang Becker, e Slogans, do romeno Gjergj Xhuvani, uma sinistra comédia situada nos dias da ditadura de Nicolae Ceaucescu.

Claro que poderia acrescentar muitos autores americanos. Gosto muito do Peckinpah, particularmente de The Wild Bunch. Apocalypse Now, do Coppola, é um grande filme. Tive o privilégio de vê-lo em 1979, no Festival de Cannes, quando se apresentava hors concours. A sala do Palais de Festivals, então na Croisette, foi adaptada com seis pistas de som para a exibição do filme. O efeito foi arrepiante: se você estivesse no meio da sala, como eu estava, sentia-se no meio do tiroteio. A experiência foi única, pois na época o máximo de pistas de som de uma sala eram quatro.

Muito Além do Jardim, de Hal Ashby é outro filme importante. Nos remete imediatamente a nosso Primeiro Magistrado, o Supremo Apedeuta. Gostei muito também de Deliverance, do John Boorman (não lembro o título brasileiro).

Enfim, há muita coisa boa no mundo cinematográfico para se ver e certamente deixei de lado muitos filmes que foram importantes em minha vida. Mas todas estas coisas boas nada têm a ver com o Oscar.

segunda-feira, fevereiro 26, 2007
 
É ESPANTOSA A SUBSERVIÊNCIA...


... da imprensa tupiniquim a eventos comerciais ianques como o Oscar. Páginas e páginas em nossos jornais, com diagramação de colunas sociais, onde fotos sem sentido algum senão a vaidade dos fotografados são oferecidas ao leitor. O Estadão, que ainda tenho por jornal sério, oferece duas páginas ao festival, com nada menos que 16 fotos repetitivas e estúpidas.

Vou ao El País, da Espanha. Nenhuma linha sobre o festival. Passo no Le Monde e Libération, da França. Nada. Tento o Aftonbladet, da Suécia. Muito menos. Nestes dias, se quisermos nos livrar do lixo hollywoodiano, só buscando a imprensa européia. Bem entendido, não me espantaria que amanhã estejam louvando a farsa de cartas marcadas.

Já o Corriere della Sera, da Itália, rendeu-se ao apelo comercial do cinema americano. Desde jovem, tive por filosofia que filme premiado com o Oscar é filme para não ser visto. Aos leitores contemporâneos, minhas escusas. Mas continuo fiel a meus dias de jovem. Sou mais Cannes, Berlim, Veneza.

domingo, fevereiro 25, 2007
 
DE CHARLATÃO A SANTO



Quando jovem, muito convivi com católicos, e dos mais praticantes. Na pequena cidade onde me eduquei, a igreja estava sempre cheia aos domingos. Mesmo durante a semana, a missa das seis sempre tinha boa freqüência. Os fiéis se confessavam, comungavam e rezavam. Havia ainda sessões de terço e semanas de pregação. Mas minha adolescência já está longe e aquela cidadezinha também. Religião, idem. Mas, cá e lá, sempre encontro católicos, e alguns inclusive fazem parte de minhas mesas de botequim. Mas já não vejo, nos católicos de hoje, aquele santo zelo que animava os antigos.

São crentes que há muito não se confessam nem comungam, muito menos vão a missas. Comparecem à igreja em ocasiões especiais, tipo batismo ou casamento, eventualmente uma missa do galo. Tampouco lêem a Bíblia. Se lhes perguntarmos o que significa a palavra "católico", não sabem responder. Crêem vagamente num deus que, teoricamente, premia os justos e castiga os maus, embora o dia-a-dia mostre justamente o contrário. Se o papa condena o aborto, são contra o aborto. Pelo menos enquanto a filha adolescente não engravidar de um marginal. Se o papa condena o homossexualismo, eles também condenarão o homossexualismo. Desde que não tenham um filho ou filha homossexual, é claro. Se interrogados sobre sua religião, dirão sem hesitar: "sou católico". Mas não têm idéia alguma do deus no qual dizem crer, muito menos dos dogmas da igreja que seguem. Católico é palavra que serve para responder formulários por default. Declaram-se católicos, apenas isto.

Nesta última viagem, revisitei templos que adoro. Adoro principalmente por sua arquitetura, seus vitrais, sua estética e, last but no least, seus órgãos. Sempre que passo em Paris, dou um alô à Notre Dame, onde aos domingos, às cinco da tarde, sempre há um concerto de órgãos. Passando pela Madeleine, peguei um pedaço de missa magnífica, para órgão e coral. Em Toledo, não deixei de rever aquela catedral comovente. Minha Baixinha, que a adorava, costumava chorar ao passear por suas naves. Certa vez, uma senhora a abordou, perguntou se estava se sentindo bem. Ora, estava se sentindo tão bem que chorava. É catedral que comove qualquer ateu. Mas, atenção: quaisquer desses templos magníficos abrigam hoje mais turistas do que crentes. Os turistas os invadem, em busca de beleza e música sacra. Os crentes constituem alguns gatos pingados, em geral restritos a alguma capela das catedrais.

Na França, só um francês entre dois ainda se declara católico. E só um católico entre dois crê em Deus. Esta é a chamada de capa do Le Monde des Religions, suplemento do jornal francês Le Monde, de janeiro-fevereiro deste ano. Estes dados são fruto de uma pesquisa levada a cabo pelo instituto de sondagens CSA. A conclusão é que se a imagem da Igreja e do papa continuam boas, a esmagadora maioria dos fiéis toma distância em relação ao dogma e permanece aberta ao diálogo com outras religiões. Que significa ser católico? Ir à missa? Ser batizado? Levar os filhos ao catecismo? A estas definições institucionais, os pesquisadores preferiram uma definição sociológica: é católico todo aquele que se declara como tal.

Para quem conhece o laxismo dos católicos brasileiros, o resultado da enquete não chega a surpreender: os católicos franceses são tão relapsos quanto os nossos. Apenas 8% assistem a uma missa por semana. 46% só a assistem em ocasiões especiais, como batismos, casamentos, enterros. 16% rezam todos os dias. 30% jamais rezam. Apenas 52% crêem que Deus existe. Mas atenção: destes, se 26% têm certeza de sua existência, outros 26% a julgam provável. 31% não sabem que dizer, 10% acham que é pouco provável e 7% crêem que não existe. Para 26%, não há nada após a morte. Para 53%, "deve existir qualquer coisa, mas não sei o quê". Apenas 10% acreditam na ressurreição dos mortos; 8% acreditam na reincarnação na terra em uma outra vida e 3% não se pronunciam.

Ou seja, não há mais uma crença unificada. Tem-se uma Igreja à la carte, onde cada um escolhe partes nas quais crer. Há inclusive quem se cale na hora de rezar o credo, para não mentir. Pois não é fácil crer na ressurreição da carne ou na vida eterna. Se a França foi um dia considerada la fille aînée de l'Eglise, hoje é um país onde se pratica um catolicismo inconseqüente, de fachada. O mesmo se poderia dizer dos demais países da Europa, onde as igrejas, antes locais de culto e prece, passaram a ser monumentos de consumo turístico. Portugal, um dos últimos bastiões do catolicismo, acaba de manifestar-se em plebiscito a favor do aborto, em flagrante desafio ao Vaticano. Faltam agora apenas Irlanda e Polônia.

Debilitada na Europa moderna, a Igreja se volta para o Terceiro Mundo. A primeira grande operação de marketing do papado de Bento XVI é sua viagem ao Brasil, quando tirará do bolso pontifical o primeiro santo cem por cento tupiniquim. Era o que o Brasil patrioteiro há muito esperava. O personagem a ser santificado é o frade franciscano Antonio de Santana Galvão, morto em 1822. Sua grande virtude, pelo que sabemos, é ter distribuído a doentes pílulas de papel de arroz, onde está escrita uma prece em latim confirmando a virgindade de Maria. Junto com a pílula, você engole um dogma de brinde. Frei Galvão teria feito, depois de morto, os dois milagres necessários para a canonização, sendo um deles a gravidez de uma mulher que não conseguia ser mãe. Mesmo no século XXI, a Igreja continua negando a ciência. Pois todo milagre é uma negação da ciência. Como médico venal é o que não falta neste mundo para atestar milagres, mal começa uma campanha no Vaticano para canonizar um beato, os milagres logo saltam como cogumelos após a chuva. No caso de frei Galvão, a Igreja vai carregar um ônus pesado. Pois está canonizando um charlatão. Os fabricantes de objetos sacros estão esfregando as mãos de contentes. Com o anúncio do novo santo, multiplicaram-se por milhares as estatuetas de frei Galvão. E das pílulas de papel de arroz. Em verdade, não são comerciáveis. Mas graças a elas frei Galvão acabou prestando um grande reforço ao mercado turístico nacional. Em países incultos, até mesmo pilulinhas de papel têm um alto valor agregado.

Mas o Vaticano parece ter perdido todo e qualquer pudor histórico. Está em marcha nestes dias o processo de canonização de madre Tereza de Calcutá, vigarista de alto bordo e apoiadora de ditadores como Envers Hodja e Baby Doc. Dado o ceticismo dos europeus em relação à Santa Madre, é para o Terceiro Mundo que migrarão os santos. Como o Brasil tem uma oferta colossal de crentes, dispostos a rezar para quem quer que seja, a safra de santos promete ser farta nas próximas décadas.

sábado, fevereiro 24, 2007
 
IN MEMORIAM DA FINESSE



Houve época em que se dizia: "beleza é fundamental". Leio hoje nalgum noticiário on-line uma vedetinha qualquer que diz: "sexo oral é fundamental". Até pode ser. Nada contra sexo oral.

Mas já houve mais finesse neste mundo.

sexta-feira, fevereiro 23, 2007
 
EMPRESA ARGENTINA OFICIALIZA DÓLAR NA CUECA


Dólares na cueca não tiveram boa reputação no Brasil, particularmente depois que apparatchiks do PT usaram este recurso para transportar dinheiro sujo. Para pessoas desavisadas, até pode parecer que a empresa argentina Alicia Fuhr inspirou-se no partido brasileiro ao lançar seu novo produto, cuecas, calcinhas e sutiãs com um bolso de segurança para guardar dinheiro e cartões. No entanto, o recurso é bem mais antigo, e deve te sido usado por toda pessoa que hoje tenha 50 ou 60 anos.

Se ainda existe memória neste país, quem costuma viajar deve lembrar dos dias da ditadura militar em que havia limitação para as divisas que um turista levava ao exterior. O limite era mil dólares, quantia que mal pagava dez dias de hotel no estrangeiro. Sem falar que, quando se viaja, é preciso comer. A lei era de uma hipocrisia escancarada, pois nenhuma autoridade acreditaria ser possível sobreviver um semana no exterior com mil dólares. O recurso era então levar dólares na barriga. O viajante brasileiro assumiu uma condição de marsupial. Os dólares não eram levados exatamente na cueca, mas em cintas improvisadas de tecido, com um bolsinho para os dólares. Eu gostava daquelas guaiacas que se comprava na Argentina, um cinturão com divisões internas. Com o tempo, me tornei mais criativo. A cada calça que comprava, pedia ao lojista que a munisse de bolsos internos.

Todo brasileiro de minha idade, que um dia teve de viajar, em algum momento usou este recurso. Hoje é mais simples. Leva-se VTMs ou travellers-cheques, sem limitação de quantidade, ou cartões de crédito. Mas eu vivi minha fase de dólar, não digo na cueca, mas pelo menos na barriga.

Mesmo sem viajar, muitas vezes um cidadão tinha de usar esse recurso. Houve época no Brasil em que muitas coisas, como telefones ou apartamentos, só eram comprados com dólar vivo. Certa vez, comprei um apartamento por 60 mil dólares. A proprietária só aceitava as verdinhas. Enchi a barriga de dólares e fui fechar o negócio com a moça. Um telefone fixo, não sei se alguém ainda lembra, podia custar de quatro a dez mil... dólares. Um celular, em 1990, custava 22 mil dólares. E pesava meio quilo.

Pena que não patenteei minhas calças com bolsinhos internos. É excelente proteção contra batedores de carteira. Claro que não o protege de um ladrão mais violento, que não hesitaria em tirar-lhe as calças. Mas o achado argentino acaba tornando inútil este recurso utilizado pelos viajores mais prevenidos. Quando se popularizar, o assaltante irá direto às cuecas ou calcinhas.

quinta-feira, fevereiro 22, 2007
 
E-BOOK: PRÓS E CONTRAS


Do leitor e amigo Emílio Calil, recebo a seguinte mensagem:

Saudações, Janer!

Acabei de ler teu artigo "Senador Marciano" e permita-me discordar em parte da sua linha de raciocínio.

É verdade que livros didáticos ou técnicos poderiam muito bem migrar para o universo virtual, facilitando e muito a vida dos estudantes.

Mas outros gêneros como ficção, ensaios ou mesmo clássicos de escritores famosos não têm, como direi, a mesma "graça" de se ler na tela do que no papel. Pode ser um saudosismo, nostalgia ou até mesmo preguiça, mas particularmente gosto de me recostar em um café e folhear as páginas de um livro. Não consigo me ver mudando para uma leitura cem por cento virtual, até porque é muito incômodo ler longos textos no monitor - já baixei dezenas de ebooks, e se li no máximo uns três, foi muito.

Já quanto aos jornais (e mesmo revistas) concordo, pois eu mesmo procuro me manter informado através dos grandes portais de notícias, pois a velocidade da informação é muito maior.

Sei, por exemplo, que a Microsoft está trabalhando arduamente para abolir o papel da vida dos usuários nos próximo cinco anos, se não me engano, oferecendo o máximo de funções possíveis através de PCs e notebooks. Se eles conseguirem reproduzir o mesmo prazer e conforto de um livro real, então aí não há do que reclamar, mesmo.

Grande abraço,

Emílio Calil
Jornalista e Designer


Bom, Calil, gosto não se discute. A propósito, eu também prefiro o livro-papel. E mesmo o jornal-papel. Tendo acesso a todos os jornais via Internet, compro pelo menos dois por dia, para ter o prazer de lê-los no sossego de um bar.

Mas... (sempre tem um mas) o e-book tem um recurso que começa a fazer-me falta no livro-papel. É o search. Se preciso busca por uma palavra, por todas suas ocorrências em um texto, é só clicar no search e tenho todas as palavras que quero. Isso o livro convencional não me dá. Certo, podemos sublinhá-lo. Mas mesmo assim o recurso ao search ganha de longe. Já me ocorreu de, tendo um livro em minha biblioteca, recorrer a sua versão eletrônica para uma pesquisa rápida. Se quero pesquisar as ocorrências da palavra sangue, por exemplo, na Bíblia, levaria semanas folheando a Bíblia em papel. Com a Bíblia eletrônica, tenho todas as ocorrências em poucos minutos.

Por outro lado, digamos que eu tenha uma súbita necessidade, hoje à noite, de buscar um topos em Fédon, do Platão. E digamos que não tenha o livro em minha biblioteca. Ou, mesmo que o tenha, tenha dificuldade em achar aquele momento. Busco o livro nas boas bibliotecas da Internet, baixo-o em segundos, e lá está, em minha telinha, o livro pronto para pesquisa.

Vou mais longe. Digamos que eu viva numa cidadezinha do interior, uma daquelas em que não existem mais livrarias. E quero ler, não só Platão, mas também Voltaire, Rousseau, Bertrand Russel, Campanella, etc. Mesmo que na cidadezinha houvesse uma livraria, é claro que nela não encontraria tais autores. Que fazer? Dois ou três cliques, e tenho estes autores a meu alcance.

Sim, eu sou como traça, viciado em papel. Mas não deixo de valorizar o livro eletrônico.

Abraço e vamos pensar na feijoada.

quarta-feira, fevereiro 21, 2007
 
CARTA DE PIAIA


Enviada ao jornal católico Mídia Sem Máscara e obviamente não publicada.


"Caros Editores,

Sou o autor da carta "Imigração" que vocês tiveram a gentileza de responder. Como já dito, sou leitor do MSM há algum tempo e até agora tinha o site como uma das mais importantes fontes para a difusão de idéias e criticas contra a hipocrisia "politicamente correta" que vem crescendo nos últimos tempos. Também sou leitor do jornalista Janer Cristaldo - que escreve os artigos que considero estar entre os mais interessantes - tanto pelo blog do autor como por aqui.

Por esse e-mail, venho expressar minha decepção com o MSM. Chamá-lo de "canalha"? E pelo quê? Simplesmente por Janer exercer o papel que qualquer jornalista decente (coisa que não conhecemos muito nesse país) deveria cumprir.

Se tudo isso não for um grande equivoco, o MSM se torna mais um sitezinho cretino, arrogante e censor na mídia brasileira. No entanto, espero que essa não seja a realidade e que o que aconteceu não tenha partido dos verdadeiros Editores do MSN. Porém, se isso tiver realmente ocorrido, o MSM torna-se infelizmente apenas mais um endereço que será excluído de minha barra de favoritos. Acreditava que o MSM vinha exercendo um importante papel na sociedade brasileira e gostaria que continuasse assim.

Cordialmente,

Raphael L. Piaia"

 
O SENADOR MARCIANO



Em artigo para a Folha de São Paulo de hoje, intitulado "Livros: caros e raros", o senador e imortal Marco Maciel conclui que "os preços dos livros são altos porque as tiragens são baixas". Em que planeta viverá este senador? Em Marte, talvez? Parece ignorar que vivemos na era do livro eletrônico, de confecção fácil, rápida e barata e cuja tendência é ser entregue ao leitor a um custo zero. Centenas de milhares de e-books estão à disposição dos leitores nas bibliotecas eletrônicas, em diversos idiomas, ao esforço de apenas dois ou três cliques de mouse. Nestas bibliotecas, encontramos desde Platão e Cervantes a Swift ou Fernando Pessoa. De graça. Sem ir mais longe, quase todos meus livros estão disponíveis na rede.

Claro que os senhores ligados ao antigo livro-papel nem querem ouvir falar disto. Seria matar a galinha dos ovos de ouro. Os jornais, embora já estejam se preparando para futuras edições exclusivamente eletrônicas, mal tocam no assunto. Apesar de milhares de escritores já terem optado pelo e-book, jamais li um crítico que tenha feito uma resenha sobre uma única destas publicações.

O livro eletrônico dispensa toda a malha de distribuição, livrarias, depósitos para estocagem, transporte, papel, custos de impressão. Mesmo que o autor quisesse cobrar por um e-book, seu preço tenderia a ser ínfimo. Quantos exemplares precisa ter uma edição? Um só. Que permanece em um site, disponível para download de qualquer leitor potencial.

Sonhemos um pouco, leitor. Imagine esta tecnologia transportada para o livro didático: um único exemplar poderia suprir todas as escolas do país. Aos alunos que ainda não têm computadores poderiam ser fornecidos leitores de e-books, a preços bem menores que o de um notebook. Os grandes gigolôs do livro didático no Brasil, em geral amigos da Corte, iriam à falência, é claro.

Para evitar que os amigos da Corte entrem em falência, aposta-se no obsoletismo.

terça-feira, fevereiro 20, 2007
 
CAIU A MÁSCARA



Postei por cinco vezes a mensagem infra na comunidade do Mídia Sem Máscara. Por cinco vezes o censor da ortodoxia católica a apagou. E ainda enviou-me a seguinte mensagem em meus scraps no Orkut:

Marcelo:
Deixa de ser canalha, Janer, e pare de colocar correspondência privada do MSM na comunidade. Violar correspondência privada é crime.


Ora, a correspondência não era privada. Era circular dirigida impessoalmente aos articulistas e não tinha caráter sigiloso algum. A reação do moderador da comunidade mostra definitivamente que o MSM não se sustenta em seus propósitos. Pela orientação jurídica fornecida aos colaboradores, deduz-se que o editor do jornal, ao insultar seus interlocutores, é o principal transgressor da legislação.

Após esta postagem, o moderador enviou uma outra, acenando com processos civil e penal, atitude típica de quem quer intimidar jornalistas. Excesso de zelo: a orientação do advogado é texto que deveria ser divulgado urbi et orbi, para prevenir excessos de entusiasmo de jornalistas.

Muito covarde, após minha resposta nos scraps, o Torquemada de plantão retirou suas postagens. Feito isto, expulsou-me da comunidade MSM, o que considero mais uma comenda, entre tantas outras que já recebi. Fui expulso da comunidade Luis Fernando Verissimo, por denunciar as mentiras que o filho do Erico defendia. O que só mostra que os extremos se tocam. Extrema direita e extrema esquerda são avessas a críticas.

O MSM está mostrando ao que vem: um jornal católico e dogmático, cujos leitores temem até mesmo a divulgação de sensatas considerações jurídicas do advogado que o defende.

No fundo, o que assustou o Torquemada tupiniquim, foi o fato de que a orientação do Dr. Cleto Untura Costa, talvez sem querer, aponta para os despautérios do sedizente filósofo Olavo de Carvalho.

 
ORIENTAÇÃO AOS ARTICULISTAS DO MÍDIA SEM MÁSCARA



Em 21 de dezembro passado, quando ainda colaborava com o jornal católico MSM, através de sua editoria recebi do insígne jurista Dr. Cleto Untura Costa as orientações infra. Como constituem uma verdadeira aula magna sobre o respeito devido pelos jornalistas a seus leitores e demais cidadãos, não posso furtar-me a divulgá-las.

Caros articulistas:

Sirvo-me do presente para tecer algumas orientações de ordem jurídica quanto ao modo de escrever os artigos de autoria de V. Sas. que serão veiculados no site Mídia Sem Máscara. Tal se faz necessário em face das recentes investidas por parte de políticos e de pessoas ligados ao atual Governo contra artigos publicados no MSM. Evidentemente que essas orientações não significam um acovardamento, mas sim uma estratégia para que vocês possam continuar a exercer o fundamental papel de autênticos críticos do processo político brasileiro.

Entendi por bem não discorrer sobre os fundamentos jurídicos das orientações que seguem a fim de manter a objetividade. Todavia, estou à disposição para quaisquer esclarecimentos que V. Sas. julguem necessários.

1 - Imputar a prática de ato criminoso a alguém é crime, além de servir de fundamento a um pedido de reparação por danos morais. Uma pessoa só é considerada criminosa após uma sentença penal condenatória transitada em julgado (imutável). Portanto, somente com essa condição poder-se-á afirmar que determinada pessoa praticou esse ou aquele crime. Todavia, é lícito dizer que alguém está sendo acusado de ter praticado determinado crime. Exemplo:

"José Dirceu é o chefe da quadrilha do mensalão." - narrativa ilícita e abusiva (segundo a legislação em vigor)

"José Dirceu é acusado pelo Procurador Geral da República de ser o chefe da quadrilha do mensalão." - narrativa lícita

2 - Complementando o exposto no item acima, a conclusão ou crítica baseada em prática de crime deve vir condicionada à efetiva comprovação do delito. Exemplo:
"José Dirceu é o chefe da quadrilha do mensalão. Portanto, ele é responsável por montar o maior esquema de corrupção já visto neste país." - narrativa ilícita

"José Dirceu é acusado pelo Procurador Geral da República de ser o chefe da quadrilha do mensalão. Portanto, se as acusações se confirmarem, ele será o responsável por ter montado o maior esquema de corrupção já visto neste país." - narrativa lícita

3 - É lícito criticar indivíduos por seus atos e/ou opiniões, mesmo que de maneira contundente, desde que as críticas não impliquem imputação de conduta criminosa.

4 - Legalmente também é considerado crime a utilização de adjetivos pejorativos para designar uma pessoa, tais como "burro", "mentiroso", "analfabeto", "homossexual", etc. Exemplo:

"Luís Fernando Veríssimo é burro e desonesto por defender o socialismo."

Todavia, entendo que dificilmente o ofendido processará o articulista por tê-lo chamado de burro ou de ser intelectualmente desonesto. Por outro lado, dizer que alguém é gay ou usuário de drogas, mesmo que de fato seja, poderá ensejar uma ação judicial por parte do ofendido.

Portanto, o articulista deve tomar cuidado ao utilizar adjetivos pejorativos.

5 - O anonimato é expressamente vedado pela Lei de Imprensa e pela Constituição Federal. Pseudônimos podem ser utilizados, mas se alguém se sentir ofendido por articulista que assim se apresente, poderá solicitar ao MSM que revele a identidade do mesmo. Em caso de recusa, a responsabilidade recairá sobre o redator-chefe ou editor do MSM.

6 - Os jornalistas e articulistas são responsáveis pela divulgação de informações falsas ou imprecisas. Portanto, ao se mencionar algum fato ou informação, é recomendável citar a fonte. Ainda que não se mencione no artigo, é prudente anotar a fonte caso seja necessário identificá-la posteriormente.

7 - O MSM está obrigado por lei a assegurar a todos os citados em artigos o direito de resposta no próprio site.

Mais uma vez reitero que estou à disposição de V. Sas. para sanar eventuais dúvidas.

Atenciosamente,

Cleto Untura Costa

segunda-feira, fevereiro 19, 2007
 
ACHO QUE CHEGUEI LÁ!



Em meus dias de Rio Grande do Sul, ouvi falar da história de um cidadão que só ia ao cinema para ver o mesmo filme. Tinha medo de decepcionar-se com filmes novos. Acho que cheguei lá. Se olho para trás, nos últimos cinco anos não consegui sair do triângulo Roma-Paris-Madri. Com algumas escapadelas a Amsterdã, Bruxelas e Barcelona. Amsterdã à parte, são cidades que adoro e onde me sinto em casa. Não deduza o leitor que não gosto de Amsterdã. A cidade é belíssima, um milagre do engenho humano. Mas não me sinto em casa. O holandês, para começar, sabidamente não é uma língua. Por outro lado, não me oriento bem na geografia etílico-gastronônica da cidade. Se as prostitutas nas vitrines e os shows eróticos me embasbacaram em meus dias de jovem, hoje só me produziriam bocejos. Além do mais - falha imperdoável - o país não produz vinhos.

Há horas o México me chama. Me falta ainda conhecer muito do Canadá. Mas na hora de assestar a proa, a Europa sempre vence. Enfim, acho que também cheguei àquela condição do Buñuel: "não visito países que não conheço". É de Buñuel também esta pergunta profunda: "Que vou fazer às três da tarde em Calcutá?". Mas acho que ainda este ano tomo vergonha e vou conhecer a terra dos mariachis. E depois, bem entendido, volto para meu triângulo dileto.

Amiga bastante viajada não recomenda revisitarmos países que um dia nos fascinaram. É arriscado. Verdade que Paris ou Madri até hoje não me decepcionaram. Mas Veneza, por exemplo, tenho medo de voltar. Creio que, com a demanda turística, já não terá o encanto dos dias em que a percorri, perplexo, com minha Baixinha. Nem daquele domingo glorioso em que marquei um encontro com uma namorada macedônia no café Florian. O que mais me marcou naqueles dias, estando perdido à noite na cidade silente, foi ouvir o chiado dos sapatos na calçada, ao perambular pelas ruelas desertas. Outros viajores me confessaram ter sido isto o que mais os encantou em Veneza.

Afirmei acima que o holandês não é língua. O leitor mais atilado deve estar perplexo. Mas, segundo não poucos lingüistas, trata-se em verdade de uma doença da garganta.

domingo, fevereiro 18, 2007
 
MELHOR QUE VIAJAR...



... só mesmo viajar sem compromissos de turista. Marujo de primeira viagem que chega a Paris tem de fazer a via sacra: Louvre, d'Orsay, Pompidou, Champs-Elysées, Opera, Arco do Triunfo, Montmartre, Notre Dame, torre Eiffel. Você pode até mesmo não subir, mas terá de no mínimo de dar uma olhadela na dama de ferro. De minha parte, acho que levei uns trinta anos para decidir-me a subir na torre. Quando vivia em Paris, sempre me pareceu de uma vulgaridade extrema, um lugar comum abominável, subir na torre Eiffel. Alguns anos mais tarde, concluí que era preconceito meu. Juntei minha Baixinha sob o braço e fomos até lá, dispostos a cumprir o ritual de milhões de turistas. Não deu. Havia filas de mais de duas horas em três patas da torre. Na quarta pata, destinada aos atletas que topavam subir a pé, havia pelo menos quatrocentas pessoas. Claro que não subimos. Anos mais tarde, viajando com minha filha, levei-a até a torre, com o devido alerta de que para nela subir seriam necessárias boas horas em pé na fila. Milagre dos milagres, naquele dia as filas estavam curtas. Foi assim que, visitando Paris quase todos os anos, só depois de uns 30 subi na torre Eiffel, quase por acaso.

Nesta viagem, meu descompromisso com monumentos foi total. Verdade que acabamos sempre tropeçando neles, ou Paris não seria Paris. Desta vez, dediquei-me a meu esporte predileto, a visita a livrarias, bares e restaurantes. Fiquei quase todo tempo no miolo da cidade, raramente me afastando além de um quilômetro da Notre Dame. Para a torre Eiffel só fiz um vago aceno, e isso de muito longe. Montmartre nem pensar. D'Orsay e Louvre, só de passagem rumo a algum boteco. Me afastei um pouco, é verdade, para mostrar a minhas companheiras de viagem La Défense, esta Paris insólita e com ares de Nova York. Fora isso, não arredei pé do centro da cidade.

De cara, um choque: a P.U.F., aquela acolhedora e farta livraria da Place de la Sorbonne, com cinco andares de livros, não existe mais. Eu, que adorava sentar-me na terrasse do bar contíguo, paquerando os últimos lançamentos na vitrine enquanto degustava uma Leffe, perdi um de meus prazeres na Lutécia. Na esquina, agora existe uma loja de confecções baratas. Se bem que o fim de uma livraria não faz nem mossa na cidade. Paris oferece ainda mais de quatro centenas. Mais as FNACs, megamagazines dedicados à música, livros e eletrônicos. Em matéria de livros, CDs e DVDs, a quantidade é tal que chega a assustar o cliente. Melhor ir logo às estantes especializadas, escolher o que se quer e fugir às pressas das tentações das compras por impulso. Sem falar que livro pesa na volta.

Quanto a bares e restaurantes, Paris parece sempre a mesma. Quando a visito, posso me dar ao luxo de eleger casas com mais de século. Lá estão, imutáveis, como se o tempo não tivesse passado, o Dôme, Deux Magots, la Rotonde, cafés sempre charmosos mas que prefiro evitar, por demais turísticos. Mesmo assim, tentei o Deux Magots, numa tarde de sábado ensolarada. Mesa na terrasse, só com milagre. Dentro do café, só com muita sorte. No Chez Lipp, em frente ao Deux Magots, só com hora e meia de espera. Dura é a luta pela comida em Paris. Melhor tentar o Procope, fundado em 1686 e tido como o mais antigo café do mundo. Foi freqüentado por La Fontaine, Molière, Racine, Rousseau, Voltaire, Diderot, d'Alembert e demais enciclopedistas, Balzac, Victor Hugo, Verlaine, George Sand, Anatole France. Nele, Benjamin Franklin trabalhou na redação da declaração de independência dos Estados Unidos. Numa vitrine, há um chapéu de Napoleão Bonaparte, que o teria deixado como garantia de uma dívida. Instalado em uma antiga casa de banhos turca, tem interiores belíssimos e - surpresa! - cardápio com preços relativamente humanos, pelo menos para Paris, onde você pode comer bem por algo em torno de 20 euros, vinho à parte. Restaurantes de São Paulo, com menos de 50 anos de idade, freqüentados por gente da laia de Sarney, Delfim Netto, José Dirceu ou Marta Suplicy, cobram cinco vezes mais que isso.

Ali por perto, no mercado Saint Michel, está o sempre refinado Aux Charpentiers, restaurante ligado ao movimento Compagnonnage e reputado por sua cuisine du terroir, isto é, cozinha das diversas regiões da França. Refestelei-me em seus boudins e andouilletes, sabores que me faltam no Brasil. Freqüento estas casas há mais de três décadas e são sempre iguais. Neles só mudam os preços e os garçons. É de supor-se que desde séculos tenham a mesma configuração e esta é a magia das capitais européias, a sensação de transportarmo-nos para séculos passados ao entrar em um restaurante. São Paulo pode ter quatrocentos anos, mas aqui só resta um restaurante com mais de cem anos, o Carlino, e assim mesmo em instalações recentes.

Se Paris me agrada, Madri me fascina. Lá também estive, sem compromisso algum com monumentos. Me dediquei a revisitar os cafés e restaurantes onde um dia fui feliz. Eles estão todos concentrados em um quadrilátero relativamente pequeno, que se pode percorrer a pé numa noite sem maiores esforços. Isto gera um hábito muito madrilenho, o de tomar alguns tragos em uma tasca, outros em outras e ir assim de bar em bar, até o momento de finalmente sentar em algum restaurante para comer. Difícil conceber os madriles sentados à noite frente a uma televisão. Estão todos na rua, celebrando o bom vinho e a boa comida.

Pelo Prado, só passei rumo ao Gijón, secular café literário do Paseo de Recoletos. Em meus dias de Madri, este café impediu-me qualquer visita à Biblioteca Nacional. Sempre que me dirigia à biblioteca, do outro lado da Recoletos, o café, com suas mesas de mármore, me convidava a uma pausa. E como sempre estava cercado de colegas de curso, nossas tertúlias se prolongavam até las nueve de la tarde, como dizem os madriles, quando qualquer esforço de leitura seria vão. Além disso, na biblioteca tinha-se de esperar mais de hora por uma comunicação. No Gijón, a comunicação com o garçom era quase imediata. Senti uma falta terrível de Madri quando estive em Nova York. Lá, mal pedia uma cerveja, a garçonete me perguntava: "Só?". E já vinha com a conta em punho. No Gijón, quando pensava em levantar o traseiro após duas ou três horas de boa charla, o garçom perguntava, surpreso: "Já?"

A uns cem metros do Gijón, o esplêndido El Espejo, cujos candelabros se refletem ao infinito por um jogo de espelhos justapostos. Frente ao restaurante, seu pavilhão no centro do Paseo de Recoletos, também belíssimo. Ou seja, num trecho de menos de trezentos metros, você tem programa para muitos dias de Madri. Isso sem falar no Sobrino de Botín, que se pretende o restaurante mais antigo do mundo. Data de 1725 e tem dois pratos que se impõem a qualquer outra escolha: o cochinillo e o cordero lechal. O cochinillo é um leitãozinho de pouco mais de vinte dias, cuja carne se desmancha na boca. O lechal é igualmente tenro. Se o leitor é pessoa atenta, já estará se perguntando como pode o Botín ser o mais antigo restaurante do mundo, já que o Procope data de 1686. O garçom prontamente lhe explicará. O Botín é o mais antigo sem interrupção de seus serviços. O Procope sucumbiu à concorrência e faliu em 1874, só voltando a funcionar algumas décadas depois.

Adoro esses três restaurantes, mas meu predileto é o café El Oriente, frente ao Palácio Real. O café tem esse nome por oposição ao palácio, que fica no Ocidente. Colunatas de mármore, mesas idem, cadeiras forradas de veludo vermelho e uma iluminação macia que convida à leitura e à boa charla. Mas o melhor está embaixo, no restaurante propriamente dito, uma cave de um mosteiro do século XVII. Tem três salas, uma bastante grande e duas menores. Numa destas duas, el Rey costuma receber estadistas. Se você quiser comer na mesa em que come o rei da Espanha, problema algum. Basta reservá-la. A única exigência é que você esteja acompanhado por três ou quatro pessoas, que a mesa comporta seis. Preços? Não são exatamente palatáveis, mas nada que um operário espanhol não possa permitir-se uma vez por mês.

Sem ser exatamente um defensor da monarquia, não me desagrada partilhar da real bona-xira algumas vezes ao ano. Na Espanha, estive também em outros restaurantes freqüentados pela realeza e gostei de constatar que seus cardápios estavam ao alcance do bolso de plebeus. E se alguém pensa que isto é conquista da atual Espanha, em muito se engana. Conheço a Espanha desde 1971, quatro anos antes da morte de Franco. Mesmo sob a ditadura, os espanhóis gozavam da mesma boa vida de hoje.

Viajar, dizia, é bom. Mas melhor mesmo é viajar sem roteiro ou obrigação alguma.

sábado, fevereiro 17, 2007
 
O SONO PONTIFICAL



Leio na Folha de São Paulo que o metrô paulistano tem outra preocupação além de crateras: o sono de Sua Santidade Bento XVI. "Nos próximos dias, uma equipe da empresa fará uma vistoria no quarto do papa, no mosteiro São Bento, por causa do barulho e da vibração causados pelos trens que passam embaixo do prédio. A missão é encontrar uma solução para para que o papa durma em paz".

Um dos problemas mais graves de São Paulo, como ocorre em toda cidade de Terceiro Mundo, é o total desrespeito pelo sossego alheio. Uma entidade, o PSIU!, teoricamente encarregada de vigiar o nível permissível de decibéis, só serve como cabide de empregos. Em vários bairros da cidade, inclusive em bairros ricos, os paulistanos recorrem em vão ao PSIU!, para depois concluir que a única solução para dormir em paz é mudar de bairro.

Nenhum prefeito ou governador jamais levou a sério o problema do ruído em São Paulo. Agora, só porque vem um papa ao país, as autoridades querem garantir seu direito ao sono. Quem sabe não se interrompe a circulação do metrô nos dias da visita pontifical?

Quanto ao cidadão comum, que precisa blindar janelas e tapar os ouvidos com cera para dormir, que se lixe. Não é papa. Não merece respeito algum.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007
 
A HISTÓRIA DO GRANDE RACIONAMENTO DE PALAVRAS



Conto de Tage Danielsson



Tradução do sueco de Janer Cristaldo




Um dia disse Nosso Senhor à sua mulher:


- Ouve, Elvira, é algo absolutamente incrível o que os homens falam e falam sem
parar. Acho que a situação piorou nos últimos tempos com tagarelices cada vez mais sem sentido. Para alguém como eu que tudo vê e tudo ouve, devo confessar que isso se torna um pouco irritante.

- Não seja idiota, Karl-Ragnar - disse a mulher de Nosso Senhor -. Uma conversinha de quando em quando, podes muito bem permitir aos pobres coitados.

- Besteiras aqui, besteiras lá, besteiras por todo lado - disse Nosso Senhor - mas
agora vou terminar com este eterno blá-blá-bá. Acho que vou racionar um pouco as palavras.

- Então faz o favor de te limitar aos teus homens - atalhou a mulher de Nosso Senhor -. Não te mete com minhas colegas, lembra-te bem disto.

- Não vamos brigar por uma coisinha destas - disse Nosso Senhor, conciliante -. Se todos os homens se tornam um pouco mais silenciosos, a coisa já melhora.

Nosso Senhor sentou-se e pensou: "Não será agora que vou ser parcimonioso, mas, pelo contrário, fartamente generoso. Vou dar-lhes dez mil palavras por dia, isto certamente lhes será suficiente. Vejamos... isto dá três milhões e seiscentas e cinqüenta mil palavras ao ano... acho que posso deixar de lado um acréscimo extra para os anos bissextos, este dia eles podem muito bem calar a boca em nome da paz... e assim em 78 anos teremos... bem, se ofereço a cada um cem milhões de palavras, contadas desde o nascimento, eles têm em todo caso uma boa margem para conversa fiada".

Nosso Senhor expediu uma circular com este conteúdo a todos os seres humanos do sexo masculino. Comunicava ainda que cada ocasião que alguém ultrapassasse a cifra exata de um milhão de palavras, soaria uma pequena campainha no ouvido do próprio. E quando a provisão de palavras estivesse quase esgotada e restassem apenas dez palavras, a campainha emitiria sinais curtos durante um minuto.

Nosso Senhor calculara certo, como sempre. A consciência de que a provisão de palavras era racionada fez com que muitos dos mais loquazes senhores na terra se pusessem a pensar um pouco mais cada vez que soava a campainha. Talvez eu tenha falado demais, pensavam. Talvez eu deva pensar um pouco mais e falar um pouco menos. E assim pensavam um pouco antes de continuar a falar. Para suas alegrias, observaram que suas conversas dali por diante se tornaram mais coerentes e interessantes de serem ouvidas, e tiveram grande sucesso na vida graças à sábia decisão de Nosso Senhor. Até aqui, apenas três pessoas deram cabo de suas cem milhões de palavras.

O primeiro foi um sacerdote que durante muitos anos de serviço desfiava as escrituras em tão longas prédicas que a campainha lhe tilintava freqüentemente no ouvido. Ele no entanto não se preocupava muito com aqueles avisos da campainha, pois achava que na condição de servidor de Nosso Senhor, certamente teria direito a uma reserva extra de palavras caso sua quota chegasse ao fim.

Um dia, justo quando havia começado sua prédica dominical, ouviu os curtos e insistentes sinais que significavam que agora ele tinha apenas dez palavras. Mas nem ligou para isso. "O chefe certamente me fornecerá um acréscimo extra, bom como ele é", pensou despreocupadamente.

Encontrava-se em meio a um raciocínio que começara com a caminhada de Jesus sobre as águas e continuava com uma comparação entre o passeio divino e o comportamento ímpio que dão prova muitos escravos do pecado em nossos tempos dissolutos ao banharem-se embriagados e nus, à noite, nos chafarizes em frente a nossos museus e instituições de cultura. E continuou como se nada tivesse acontecido em seus ouvidos:

- Objetará então o pecador: não é pecado gozar a vida.

Um silêncio divino inundou a igreja. Os paroquianos despertaram surpresos de suas semi-sonolências. Terminaria a prédica com estas palavras? Sim, pelo jeito, pois o pastor mantinha o rosto entre as mãos e nada mais dizia. Após alguns instantes, um órgão perplexo começou a soar.

Naquele dia todos chegaram alegres da missa em bom tempo para escutar programas da velha guarda, fortalecidos na alma pelas palavras finais do pastor que diziam não ser pecado gozar a vida.

- Foi uma prédica extraordinariamente linda - diziam os paroquianos um para o outro, e ninguém entendeu porque depois daquele domingo o pastor foi conduzido para um silencioso serviço na secretaria da paróquia.

O segundo pela ordem a ser atingido pelo racionamento de palavras foi um relações-públicas do ramo de detergentes. Sua profissão consistia em ser excepcionalmente gentil, da manhã à noite, e em especial durante o almoço e a janta, com todas as pessoas que sua firma entrava em contato. Então vocês podem imaginar que o relações-públicas conhecia todas as histórias engraçadas sobre detergentes que existiam e mais algumas ainda, e além disso dominava a arte de sorrir todo o tempo com seus dentes alvíssimos enquanto falava, de forma que as pessoas ficavam loucas por ele e por seus detergentes.

- Cada vez que eu abro a boca, um par de meias é jogado em nosso detergente em
alguma parte do mundo - costumava dizer com seu sorriso irresistível e, como isto havia sido calculado pelo departamento de estatística de sua firma, era indubitavelmente verdade.

Para um tal relações-públicas, a campainha evidentemente soava com freqüência. Após cada sinal ele ficava algo pensativo e naquele dia não tomava nenhum Dry Martini, pois Dry Martini lhe soltava de tal modo a língua que lindas palavras e lindos slogans lhe fluíam da boca sorridente como um lindo rio onde as associações de donas-de-casa e revendedores se afogavam prazerosamente.

Quando soaram os últimos e repetidos sinais curtos em seus ouvidos ele estava almoçando, por custa de sua firma, com uma delegação do Instituto de Pesquisas Domésticas. Já havia tomado seu Dry Martini aquele dia, e antes de perceber exatamente que soara o último sinal, deixou escapar:

- Apanhem o detergente que quiserem e comparem-no ao nosso.

Então controlou-se. Por Deus, a campainha das dez palavras. E nove já haviam sido ditas! Uma única palavra, pensou ele, uma única!

Enfiou a mão no elegante bolso de seu casaco e apanhou um pacotinho com o deteergente de sua firma, que sempre carregava consigo. Despejou uma dose mortal do detergente em sua taça de vinho, ergueu com seu sorriso alvíssimo a taça ante os encantados delegados do Instituto de Pesquisas Domésticas e disse:

- Delicioso.

Bebeu e caiu, elegantemente morto. Pois um relações-públicas não pode viver sem a possibilidade de dizer sem cessar coisas lindas.

Naturalmente agora vocês se perguntam quem foi o terceiro homem a dar cabo de suas cem milhões de palavras. Pois bem, vou dizer-lhes, foi um político. Ele desenrolava textos e conversava fiado e lançava acusações e sofismava e esbravejava tanto que antes mesmo de ter chegado aos cinqüenta a campainha já havia soado em seus ouvidos noventa e nove vezes. E agora se aproximavam as eleições e nosso político sentou-se em uma mesa em companhia de seus adversários e de um apresentador, para um debate na TV.

O político do qual falo olhava fixamente para a câmara e disse no seu minuciosamente ocupado espaço onze mil quinhentas e sessenta e três palavras, entre as quais podemos escolher, ao azar: segurança, todos, aposentadoria, vocês mentem, padrão de vida, conspiração, eleitores querem saber, aposentadoria, besteiras, 1956, orçamento, homens do povo, grupos de baixo salário, confiança e aposentadoria.

Ao chegar ao apelo final soaram os pequenos sinais curtos nos ouvidos daquele político. Ficou tão estupefato que disse espontaneamente a todo mundo:

- Já disse tantas bobagens que agora eu calo a boca.

Graças a este apelo final aquele político foi escolhido para ministro e governou por muitos anos. Como não podia mais dedicar-se a cacetear os eleitores com conversa fiada, dispunha então do dia inteiro para pensar um pouco e executar uma série de medidas, de modo que se tornou um dos melhores ministro de Estado que este país teve, como consta nos Anais do Partido. E se não estivesse morto, estaria governando ainda.

Enquanto vocês lêem isto, Nosso Senhor fez um levantamento para sua mulher do resultado de seu grande racionamento de palavras.

Podes notar que tudo ficou significativamente mais silencioso agora, Elvira - disse ele -. Seria agora o caso de pensarmos em estender as determinações de racionamento inclusive ao campo das mulheres, não achas? Hás de convir, tu que falas a todo instante de emancipação e dessa papagaiada toda. (Lá no fundo, Nosso Senhor pensou que seria melhor se inclusive sua mulher fosse submetida ao racionamento, mas evidentemente nem tocou no assunto).

- Emancipação aqui, emancipação acolá - disse a mulher de Nosso Senhor -. Mas um racionamento desses para mulheres tu só vais estabelecer em cima de meu cadáver, Karl-Ragnar.

E o fato é que a mulher de Nosso Senhor nunca morre. Esta é a sorte de vocês, adoráveis tagarelas.





Conheci Tage Danielsson (1928-1985) em Estocolmo, em 1982, quando visitei a Suécia a convite do Ministério de Relações Exteriores sueco. Jovial e sempre irônico, me recebeu com fidalguia em sua casa. Danielsson foi um dos mais importantes escritores suecos do século passado, dividindo sua criatividade entre a literatura e o cinema. Crítico mordaz de sua própria sociedade, a Suécia cosmopolita e superdesenvolvida, seus contos continuando ecoando no mundo contemporâneo. O conto traduzido pertence à coletânea Estórias para crianças de mais de 18 anos.

terça-feira, fevereiro 13, 2007
 
DUAS PUBLICAÇÕES DESMISTIFICADORAS



Aqui em Madri, Vargas Llosa anunciou no El País o lançamento de El Regreso del Idiota, continuação de El Manual del Perfecto Idiota Latinoamericano, pelos mesmos autores. Mas o livro ainda não chegou âs livrarias.

Ano passado, foi publicado o Tratado de los Tres Impostores: Moisés, Jesús Cristo y Mahoma, de um autor desconhecido do século XVIII.

 
NO ROR DOS CIVILIZADOS


Com a aprovação do aborto em consulta nacional no domingo passado, Portugal entra no ror das nações civilizadas da Europa. Faltam ainda as católicas Irlanda e Polonia.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007
 
UMA IDÉIA CAMBALEANTE



Parece que a idéia de Deus anda um pouco vacilante nos dias que correm. Não passa mês sem que a imprensa chame alguém de prestígio para provar que a figurinha existe. Há três semanas, Veja convocou nada menos que um cientista, o biólogo americano Francis Collins, diretor do Projeto Genoma e um dos responsáveis pelo mapeamento do DNA humano, em 2001. Até os 27 anos, Collins não acreditava em Deus: "Não passava de um rapaz insolente. Estava negando a possibilidade de haver algo capaz de explicar questões para as quais nunca encontramos respostas, mas que movem o mundo e fazem as pessoas superar desafios".

O douto cientista não deixa por menos: todo ateu é um insolente. Torquemada não diria melhor. E continua: "A busca por Deus sempre esteve presente na história e foi necessária para o progresso". Pelo jeito, fez gazeta nas aulas de História. A idéia de Deus é dogmática e contrária a toda transformação. As igrejas sempre se opuseram ao progresso. A humanidade só conseguiu avançar desvencilhando-se da idéia de Deus. "Civilizações que tentaram suprimir a fé e justificar a vida exclusivamente por meio da ciência - como, recentemente, a União Soviética de Stalin e a China de Mao - falharam". O Dr. Collins está precisando de algumas aulas de lógica. Se a União Soviética de Stalin e a China de Mao afundaram, não foi por ausência de Deus. Mas pela inércia inerente aos regimes comunistas. Se falharam, foi por não saber exercitar a democracia e não por não ajoelhar-se ante um deus qualquer. Por outro lado, a China tem tido, nos últimos anos, um estrondoso sucesso econômico. Certamente não terá sido por voltar a acreditar em Deus.

Continua o cientista: "Precisamos da ciência para entender o mundo e usar esse conhecimento para melhorar as condições humanas. Mas a ciência deve permanecer em silêncio nos assuntos espirituais". Onde está escrito isto? Em que tratado de gnoseologia? Em que tábuas da lei? A ciência, ou analisa todos os fenômenos que nos intrigam, ou não é ciência. Tentando ainda defender seu peixe, Collins afirma: "Apesar de tudo o que já aconteceu, coisas maravilhosas foram feitas em nome da religião. Pense em Madre Teresa de Calcutá ou em William Wilberforce, o cristão inglês que passou a vida lutando contra a escravatura". Wilberforce, vá lá. Mas madre Teresa foi comprovadamente uma vigarista internacional. Chamar madre Teresa de coisa maravilhosa é coisa de intelectual que vive encerrado em uma torre de marfim e desconhece o mundo em que vive.

Collins ainda diz acreditar na Ressurreição. E não só: "Também acredito na Virgem Maria e em milagres". Ora, cientista que acredita em milagres descrê da ciência. Existindo o milagre, não existem leis. Não existindo leis, não existe ciência. "Quem é cristão acredita nesses dogmas - ou então não é cristão". É interessante a proposição do cientista. Porque a ciência não pode aceitar dogmas. Daí decorre que nenhum cristão pode ser cientista.

Collins certamente entende de seu campo, a biologia. Quando inventa de filosofar, revela-se um desastre. O time dos defensores do Altíssimo - como disse recentemente um sedizente filósofo - está demonstrando cansaço. Talvez seja por isso que volta cada vez mais freqüentemente à baila o argumento atribuído a Dostoievski, a necessidade moral de Deus. Como aquelas velhas patranhas tomistas de causa não-causada já não convencem ninguém, recorre-se agora à suposta argumentação de um ficcionista.

Isto é uma bobagem que os católicos gostam muito de empunhar. Querem colocar Deus como fundamento de toda ética, como se não pudesse existir ética sem a crença em Deus. "Se Deus não existe, tudo é permitido". Esta frase é imputada a Dostoievski, em Os Irmãos Karamazov. Ora, ele jamais escreveu isto. Foi Sartre quem disse que ele havia escrito. Quem cita esta frase são geralmente pessoas que nunca leram Dostoievski e o citam de ouvir falar. Recentemente, me dei ao trabalho de reler Os Irmãos Karamazov para ver se Dostoievski havia realmente escrito tal bobagem. Encontrei mais de 270 referências a deus - seja o próprio, seja em expressões como "meu Deus", e não encontrei nada semelhante.O mais próximo que existe é isto:

- Ivan Fiodorovitch ajuntou entre parêntesis que lá está toda a lei natural, de maneira que se você destrói no homem a fé na sua imortalidade, não somente o amor nele perecerá, mas também a força de continuar a vida no mundo. Mais ainda, não existiria nada mais que fosse imoral; tudo será autorizado, mesmo a antropofagia. E não é tudo: ele acaba afirmando que para todo indivíduo que não crê em Deus nem em sua própria imortalidade, a lei moral da natureza deveria imediatamente tornar-se o inverso absoluto da precedente lei religiosa; que o egoísmo, mesmo levado ao crime, deveria não somente ser autorizado, mas reconhecido como uma solução necessária, a mais razoável e quase a mais nobre. Após um tal paradoxo, julgai, senhores, julgai o que nosso caro e excêntrico Ivan Fiodorovitch julga bom proclamar e suas eventuais intenções.

Mais adiante, Mitia se pergunta:

- Mas então, que se tornaria o homem, sem Deus e a imortalidade? Tudo é permitido e, conseqüentemente, tudo é lícito? (...) Que fazer, se Deus não existe, se Rakitine tem razão ao pretender que é uma idéia forjada pela humanidade? Neste caso, o homem seria o rei da terra, do universo. Muito bem! Mas como ele seria virtuoso sem Deus?

Ou seja, a pergunta não é exatamente sobre Deus, mas sobre Deus e a imortalidade. E imortalidade significa punições e recompensas. Os teístas querem ver nos personagens de Dostoievski a impossíbilidade de uma ética sem Deus. No entanto, o que o autor empunha é a promessa de céu... ou de inferno. O fundamento de sua moral - ou da de Ivan Karamazov, como quisermos - não é exatamente Deus, mas a esperança ou o medo. Neste sentido, nós, ateus, não temos preocupação alguma. Não temos medo de nenhum inferno nem precisamos de recompensas futuras para sermos éticos. No fundo, o que o católico Dostoievski quer dizer é que todo ateu é necessáriamente imoral.

E isto é uma solene besteira.

domingo, fevereiro 11, 2007
 
EN LA CALLE DEL VIEJO IDIOTA




Em Madri, estou hospedado no Hotel Inglés, onde me hospedo há mais de trinta anos. A localização é excepcional. Fica perto da Puerta del Sol, da Plaza Mayor, da Calle de Huertas, da Plaza Santa Ana, enfim, fica no centro geométrico da geografia etílica que mais me agrada na Europa. Fica também na Calle de Echegaray. José Echegaray, personagem polêmico de fins do século XIX, era engenheiro, matemático, dramaturgo, político... e recebeu o prêmio Nobel de Literatura em 1904.

Aqui entra na história um outro personagem não menos polêmico, Don Ramón del Valle-Inclán, dramaturgo, poeta e novelista, considerado um dos autores mais importantes da literatura espanhola do século XX. Era um personagem esperpentico. Esperpento foi um gênero literário por ele criado e que ficou ligado a seu nome. Se caracteriza pela estilização grotesca dos personagens e situações, detalhes grotescos e extravagantes, ao mesmo tempo que constitui uma crítica da sociedade espanhola de sua época. Certa vez, Don Ramón decidiu residir no México. E por que no México? - lhe perguntaram.

- Por que se escribe com equis (x).

Don Ramón perdera o braço esquerdo, em alguma estrepolia em Madri, que ele gostava de encher de mistério. No México, como convidado de honra a um espetáculo teatral, sentou-se à direita do presidente mexicano, Álvaro Obregón, que perdera seu braço direito nos combates com Pancho Villa. Ao final do espetáculo, não deu outra, Don Ramón pediu:

- Presidente, presteme su brazo para que aplaudamos.

Em outra ocasião, falando de suas conquistas amorosas, escreveu Don Ramón:

- Hicimos siete homenajes a Venus. Y repetimos la sétima.

Mas por que falo em Don Ramón? É porque residia na Calle Echegaray. E detestava o prêmio Nobel espanhol. Chamava-o de El Viejo Idiota e escrevia em seu endereço: La Calle del Viejo Idiota. Consta que as cartas chegavam.

Estou então na Calle del Viejo Idiota. No centro de todos os vinhos, lechales e cochinillos. Mas nem só por isso. Justo frente ao hotel, está o Venencia, tasca especializada em jerez. Venenciar é uma arte antiqüíssima, uma forma elegante de servir o vinho. O venenciador é um personagem que mais parece um toureiro, com seu traje de luces. Munido de uma haste com mais ou menos um metro de comprimento, com um pequeno cilindro na ponta, enfia o cilindro na barrica de jerez e o ergue ao alto com o braço esquerdo. No direito, tem um fino, que assim se chama o pequeno copo em que se despeja do alto a bebida, sem que se perca uma gota. É espetáculo que vale a pena ser visto.

Bom, no Venencia não há venenciador nenhum. Apenas o jerez. Em quatro versões: fino, oloroso, maderoso e manzanilla, a bebida dileta da Carmen, na tasca de Lilas Pastia.

J`irai danser la séguedille

et boire du manzanilla

j`irai chez mon ami Lilas Pastia.


É mais um corredor com um longo balcão, três ou quatro mesas e só. Uma espécie de picumã tornou as paredes e o teto pretos. No dia em que limparem aquela imundície secular, o Venencia perderá todo seu encanto. Os madrileños se aglomeram junto ao balcão e se entregam a uma algaravia em que o que importa é o falar, não o ouvir. Fim de noite, cria-se um ambiente surrealista, onde todo mundo fala e ninguém ouve.

Nos últimos anos em que por lá passei, um vira-lata de pelo negro e olhar triste interpelava os habitués. Em fim de noite, minha Baixinha já conversava com ele em espanhol. É que vínhamos de muitos vinhos e terminávamos os trabalhos com jerez. Depois de um fino, mais um oloroso, mais um maderoso, mais eventualmente um manzanilla em homenagem a Bizet, é claro que o planeta começa a girar. E quando o planetinha começa a girar, não adiante tentar segurar. Mas já estamos frente ao hotel.

E é por isso que não consigo abandonar la Calle del Viejo Idiota.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007
 
EN MI BURRITO



Jantei ontem no Mi burrito y yo, restaurante de Barcelona que curto há mais de trinta anos. O vinho foi um excelente Marqués de Riscal. E a canção que mais me comoveu foi Noches de Boda, de Joaquín Sabina.



Que el maquillaje no apague tu risa
Que el equipaje no lastre tu alas
Que el calendario no venga con prisas
Que el diccionario detenga las balas.

Que las persianas corrijan la aurora
Que gane el quiero la guerra del puedo
Que los que esperan no cuenten las horas
Que los que matan se mueran de miedo.

Que el fin del mundo te pille bailando
Que el escenario me tiña las canas
Que nunca sepas ni cómo ni cuándo
Ni ciento volando, ni ayer ni mañana.

Que el corazón no pase de moda
Que los otoños te doren la piel
Que cada noche sea noche de bodas
Que no se ponga la luna de miel.

Que todas las noches sean noches de bodas
Que todas les lunas sean lunas de miel
Que las verdades no tengan complejos
Que las mentiras parezcan mentira.

Que no te den la razón los espejos
Que te aproveche mirar lo que miras
Que no se ocupe de ti el desamparo
Que cada cena sea tu última cena.

Que ser valiente no salga tan caro
Que ser cobarde no valga la pena
Que no te compren por menos de nada
Que no te vendan amor sin espinas.

Que no te duerman con cuentos de hadas
Que no te cierren el bar de la esquina
Que el corazón no se pase de moda
Que los otoños te doren la piel.

Que cada noche sea noche de bodas
Que no se ponga la luna de miel
Que todas las noches sean noches de boda
Que todas las lunas sean lunas de miel.

quinta-feira, fevereiro 08, 2007
 
CABEÇAS-DE-TOALHA CONTRA LIBERDADE DE IMPRENSA


Tendo fracassado em suas tentativas de restringir a liberdade de imprensa no Ocidente, por ocasião da publicação das charges de Maomé num jornal dinamarquês, os muçulmanos atacam novamente na França. Foi aberto ontem um processo, ante a XVII Câmara Correcional de Paris, em seqüência da queixa depositada pela Grande Mesquita de Paris e pela União das Organizações Islâmicas da França, contra o jornal Charlie Hebdo, por "injúria estigmatizando um grupo de pessoas em função de sua religião". A queixa refere-se à reprodução, pelo jornal, há um ano atrás, das charges publicadas no jornal dinamarquês Jyllands-Posten.

Se a Justiça francesa julgar procedente a queixa, acabou-se a liberdade de imprensa na França e, provavelmente, em todo o continente europeu. Se não julgá-la procedente, teremos ameaças e atentados a jornalistas.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007
 
YO Y LAS SEVILLANAS



Há viajantes e viajantes. A espécie mais comum é a que costumo chamar de colecionadores de catedrais. Buscam paisagens e monumentos, em especial catedrais. Conheci vários destes colecionadores quando lhes confessei jamais ter subido na Torre Eiffel ou assistido um espetáculo no Moulin Rouge. Em catedrais, confesso que entrei em algumas, mas isto pouco ou nada acrescenta às minhas viagens. Tais viajantes não merecem este título. Pertencem à subespécie turistas, raça repelida por qualquer viajante que se preze.

Sou colecionador, mas não exatamente de monumentos. Interesso-me pela história de qualquer país, é claro, mas prefiro misturar-me a seu presente. Gosto de rostos, frases, pessoas, bares, odores, sensações. Há quem considere que viajante inteligente é o que vê museus e catedrais por fora e bares e restaurantes por dentro. Pode ser. Mesmo assim não resisti aos delírios de Gaudi, Goya e Dali. Seja como for, obra de arte alguma toma o lugar em minha memória do sorriso provocante daquela barcelonesa no porto, de um vinho bebido na bota com dois operários numa cabine de trem, pan y chorizos repartidos em meio a palmas e canções. Ou uma advertência em uma tasca:



ES TERMINANTEMENTE PROHIBIDO
DAR PUÑETAZOS EN LA TABLA



Ou uma quadrinha popular:



Dale limosna mujer

Que no hay en la vida nada

Como la pena de ser

Ciego en Granada.




Ou a saborosa pronúncia do catalão, que chega a nossos ouvidos brasileiros como eco ancestral de qualquer coisa que se aninha em nosso inconsciente:



Si veniu per bé, entreu, si us plau.

Si veniu per mal, no passeu el portal.




Em uma dessas deambulações, em que me entrego ao prazer de perder-me em cidades que não conheço, creio ter intuído alguma coisa da magia do flamenco, seu poder de transfiguração de uma mulher.

Estava em Sevilha. Antes de ir a um tablao resolvi flanar pelo Barrio de Santa Cruz. Estou tomando um cafezinho, duas moças entram no boteco para telefonar. Alguma coisa, sei lá o quê, me chama a atenção. Examino as duas do ocipital ao metatarso. Ambas me retribuem o exame, em silêncio. Me olham nos olhos, sem piscar, como quem pergunta:

- Que é que há?

Enunciassem a pergunta, eu responderia:

- Honestamente, não sei. Mas algo há.

Uma empatia qualquer me compelia a confraternizar com as sevilhanas. Como estava psicologicamente preparado para um flamenco naquela noite, sorvi meu café e continuei meu passeio sem rumo pelo Casco Viejo da cidade, espiando becos, bares e pessoas. As moças caminhavam à minha frente, uma pequena e leve, a outra grandalhona, pesada, caminhar duro, mais para elefante que para gazela. Logo as perco. Chego ao tablao El Gallo um pouco cedo. Quando entram as bailaoras, lá estão as duas.

A moça mais pequena e leve não era mais uma moça pequena e leve, mas uma mulher cheia de fogo e canção. A grandalhona, de andar elefantino, era agora um furacão de rendas e meneios. E lá estou eu de novo, boquiaberto, meditando sobre esse estranho ritmo que de muito longe me percute no sangue e que transforma aliás em gazelas, meninas em mulheres, velhas em jovens.

Sardana, zambra, cante hondo, flamenco e tantas outras... Se existe um povo nascido para a dança e a canção, com perdão dos italianos, este povo é o espanhol. Uma mulher em uma janela grita qualquer coisa para uma outra. Não está falando, sua inflexão é de canto. Um sevilhano decide que já é hora da siesta. Bate palmas e sapateia: "y dentro de poco me voy a la caaamaaaa". Entro em um bar. Passado o primeiro copeo, já está alguém cantando e contando uma trágica história na qual foi castrado. "Y en la ausencia de cojooooneees, te entrego mi corazóóóón". E já vi, juro que vi, uma mulher quase dançando ao caminhar pelas calles de Sevilha, fazendo toda a rua parar, enfeitiçada.

Ouvi em algum lugar que a espanhola "solo tiene boca para el canto y para hostias". Tenho minhas dúvidas e não quero morrer com elas.





(Folha da Manhã, 12/01/77)

terça-feira, fevereiro 06, 2007
 
YO Y LAS GUAPAS



Jamais levei muito a sério a famosa voz do sangue. Pelo menos antes de assistir a um flamenco. Já ouvira algumas canções flamencas e de cante hondo. À primeira audição, mais me pareceram uma sucessão de lamúrias e uivos guturais, mesclados com palmas e sapateado. Algo assim no gênero "ay, por qué mi madre no me matoooooo?" Enfim, estamos em Barcelona e consta que as bailaoras são as mais lindas mulheres de Espanha. Quem sabe não estaria lá - tenho robusta crença no Acaso - a atrevida que, em momento de patetice, deixei escapar no porto?

Tablao el Cordobés, nas Ramblas. Mal vou entrando, ouço as lamentações, ay, ay, ay, que no aguanto este hombre, este hombreeee me va a mataaaaar. E entrava uma rajada de castanholas e sapateado. Vai ser trágico assim no inferno, pensei. A saleta, com lugar para umas cinqüenta pessoas, estava quase lotada. Sentei-me próximo ao tablao, empunhei uma jarra de sangria y me quedé a mirar las guapas.

Há um consenso mais ou menos unânime de que as mais lindas mulheres do mundo estão na Escandinávia, mais especificamente na Suécia e Finlândia. A afirmação, como os silogismos dos estóicos e megáricos, é falsa e verdadeira ao mesmo tempo. É verdadeira no sentido quantitativo, o biótipo da escandinava é o de uma mulher alta e esguia, duas imensas vantagens para uma mulher que se pretenda linda. Além do mais, lá por aquelas plagas, a ginástica diária desde os primeiros anos é hábito que acompanha cada um até a morte. O bom estado físico do sueco é tão generalizado que se alguém tem uma hipótese de barriguinha já não encontra nas lojas calças que lhe sirvam. Em Estocolmo, tropeçamos na rua a todo instante com mulheres que só imaginamos em filmes. Se quisermos ver aquelas louras oníricas nuas, basta dar um pulo ao primeiro sexklubb que encontrarmos. Por algumas coroas pode-se apreciar aqueles animais belíssimos em ação e, inclusive, ser convidado a passar ao palco, isto é, um colchão.

Vi as suecas e vi as espanholas. As suecas, nuas, se contorcendo em acrobacias sexuais. As espanholas, vestidas dos pés à cabeça, sapateando como mordidas por tarântulas em um tablao. E afirmo tranqüilamente: se as escandinavas são consideradas as mais lindas mulheres do mundo é porque as espanholas, por modéstia, se mantém hors concours. Nenhuma sueca, mesmo em pêlo, consegue transmitir a sensualidade de uma bailaora da qual só vemos a pele das mãos e do rosto. A espanhola, quando inventa de ser bonita, abusa.

Permaneci horas, completamente hipnotizado, fascinado pelo corpo de baile. Ao levantar-se para a dança, homens ou mulheres mais parecem um galo eriçando-se para a rinha. Por vezes, uma bailaora mais experiente, ao solar, permanece imóvel, sacudindo apenas o queixo ao ritmo das palmas. É como se toda dança e paixão se concentrasse naquele queixo. Já nos primeiros minutos do solo um odor acre de axilas põe mais fogo ao baile. Os "olés! Que guapa! Loado sea el hombre que tiene por debajo!" saltam da platéia. E quanto mais entrada em anos é a bailarina, mais sua arte fascina. Lá pelas tantas, me pergunta uma delas:

- Pero le gusta el flamenco, eh?

Sí, claro, mucho, respondo. Outras também me interpelam. Desconfio de algo errado. Olho para trás a sala já está vazia. Um corpo de baile de umas quinze pessoas dançava e cantava exclusivamente para mim. Agradeci meio sem jeito, apanhei casaco e chapéu, disse buenas noches e me perdi, em paz comigo e com o universo, na madrugada e nas ruelas do Barrio Gótico.





(Folha da Manhã, 11/01/77)

segunda-feira, fevereiro 05, 2007
 
YO, EL GUAPO



Certo dia, fiz as malas e fui cumprir meu exílio. Exílio voluntário, nada nem ninguém me forçava a sair do Brasil, a não ser um irremediável fascínio pelo desconhecido, mais precisamente pela Europa. Escolhi para aportar, sei lá por que razões, Barcelona. Mal piso em terra, uma espanhola linda como imaginamos que seja uma espanhola, agrediu-me:

- Que guapo!

Não devia ser comigo, decididamente não faço o gênero. Olhei em volta, não havia mais ninguém no saguão do porto, era comigo mesmo. Não é todos os dias que um mortal é assim recebido em terra estranha, que viva la España! Atrapalhado com as malas - levava todas minhas posses, o que não era muito, mas sempre pesava um pouco - saí em busca da maldita da consigna, disposto a enfrentar a atrevida na volta. Achei onde deixar minhas malas, mas perdi a catalã. Em todo caso, os augúrios eram favoráveis, começava pisando em Barcelona com o pé direito.

Se viajo à Europa, insisto em começar por um porto: Barcelona. E, ao voltar, despeço-me em outro porto: Barcelona. Não voltei a ver a espanhola, tampouco as outras que encontrei me disseram "que guapo!", por certo eram mais realistas. Mas se amo uma cidade na Europa, ela tem por nome Barcelona.

E não a elegi por amor à primeira vista. O coup de foudre ocorreu, é verdade. Mas sou duro na queda e decidi primeiro conhecer outros povos e paisagens, não iria render-me sem mais nem menos a uma cidade que envia suas mais lindas filhas ao porto para dizer "que guapo!" aos forasteiros. Continuei a peregrinação em busca sei lá de quê, provavelmente de mim mesmo.

Estive próximo ao Círculo Polar Ártico e voltei ao sul. Três cidades me fascinaram na Europa, Estocolmo, Paris e Barcelona. Comecei pela primeira, por gostar de desafios. Estocolmo era a mais distante, a mais cara, mais fria, mais hostil e mais estrangeira. Faço depois Paris, pensei, e na descida vou refestelar-me em Barcelona. Mas viver não é preciso e cá estou sem chegar a possuir a amada. Mas ainda não depus as armas.

Voltei várias vezes a Barcelona, cada vez mais apaixonado. Por pequenas coisas. Por exemplo, um pequeno café no Barrio Gótico, o Mesón del Café. É quase um cubículo, consiste em uma prateleira com bebidas, um balcão e dois ou três bancos. Ao fundo, há duas mesinhas, com lugar para no máximo cinco ou seis pessoas. O ambiente todo transpira antigüidade, a história pinga das paredes. É uma impulsão doentia, dirá o leitor, mas que fazer? Mal chego em Barcelona, deixo as malas no hotel e vou direto ao Méson tomar o cafezinho inaugural. Nem livrarias ou bares interrompem a caminhada pressurosa até o café. Cumprido este ritual, estou então disponível para os demais encantos da cidade.

Já que estamos próximos da Catedral, vamos à sardana. Diante de uma retreta, homens e mulheres amontoam casacos e sacolas na calçada, dão-se as mãos e dançam. A cena não deixa de ter toques buñuelescos, mas afinal estamos na Espanha. Pessoas que jamais se viram, das mais distintas nacionalidades, interrompem seus trajetos para dançar. Entra quem quer na roda. Quando se torna muito ampla, alguém puxa um grupo e forma outra roda, dentro ou fora da anterior. Em poucos minutos, várias rodas saltitam e giram em meio à multidão. A sensação de euforia e confraternização universal que nos envolve em meio a uma sardana talvez não possa ser experimentada em nenhum outro lugar ou data. Em poucos minutos, uma multidão amorfa de desconhecidos se transforma em um clube de velhos amigos. Condição para ser sócio: desembaraçar-se de casacos pesados e sacolas e dar as mãos ao súbito amigo que se apressa em nos estender a sua. Não sou exatamente um emotivo, mas uma sardana sempre me provoca um discreto nó na garganta. Não é todos os dias que vemos uma multidão de homens despidos de suas couraças e com armas depostas.



(Porto Alegre, Folha da Manhã, 10/01/77)

PS - Estou em Barcelona. Reproduzirei, nestes dias, crônicas de minhas primeiras impressões da cidade, quando por aqui aportei, há mais de trinta anos.

sábado, fevereiro 03, 2007
 
POMBINHA MANCA



Como são as mulheres em Paris? me pergunta um leitor. Pelo que vejo, e nada diferem das mulheres de Porto Alegre. Duas pernas, um par de seios, uma boca, dois olhos, dois braços, das mãos, cinco dedos em cada, e assim por diante. Se vestem de um jeito muito sacana, é verdade, e em geral falam francês. Exceto no modo de vestir e de falar, nada vi de diferente nas mulheres de Paris ou Porto Alegre, Estocolmo ou rio. Assim leitor, eu diria que as mulheres de Paris, em princípio, de especial nada têm. Riem quando estão alegres, choram quando estão tristes, gemem quando... Prefiro falar de pombas.

Adoro pombas. Seu arrulho, se a muitos pode parecer fúnebre, a mim me parece carinhoso. Arrulhasse minha garganta como a de uma pomba, seria aquele rum-rum meu mais profundo diálogo com uma companheira. Acho que mais não se precisa dizer. Era muda, uma das mulheres mais inteligentes que conheci. Ao readquirir o dom da voz, readquiriu também o da palavra, e passou a complicar tudo. Foi o fim de nosso arrulhar.

Não me parece ser por azar que a pomba é um símbolo da paz. A pomba está sempre tranqüila, nada abala sua serenidade. Seu ruflar é carícia, não luta para manter-se no ar. Certa vez, na Piazza São Marco, ofereci ao pombaredo um pacotinho de pipocas. Fui assaltado por bandos, pousavam em meus braços e meu chapéu sem a menor cerimônia. Mas suas bicadas eram gentis, tinham mais o ar de quem pede do que o ar de quem toma.

Semana passada, no parque Montsouris, vi uma ironia do universo. Não era um par de xipófagos, tampouco o terneiro de duas cabeças ou cinco pernas. Mas os deuses foram indubitavelmente mesquinhos com aquela pomba.

Era manca.

Podia voar, é verdade. Mas caminhava pelo parque, insistindo em exibir ao mundo seu aleijão. Era tranqüila, como todas as pombas. Mancava resolutamente, com a paz dos justos, capengueava rumo aos jardins, rumo a seus insondáveis projetos.. E sua cauda assumia um trágico rebolado.

Ah! Pombinha manca, quanto me doeu te ver mancar! Tenho visto homens sem pernas, outros sem braços, e a estes chamamos heróis de guerra. Seu aleijão, chamamos heroísmo, pois se batem em nome de nomes. Ou infortúnio, deserdados que foram pelo deus Acaso. Mas em nome de que bate uma pomba suas asas? Sei, tuas asas ainda batem firme, mas por quer insistes em caminhas, que queres dizer com teu mancar?

Volto às mulheres. Moro ao lado da Cité Universitaire e o metrô que me deixa em casa é pródigo em mulheres lindas. Não francesas, mas geralmente estrangeiras que enfrentam Paris no peito e na raça. E para enfrentar Paris, toda estrangeira se mune de um mínimo de confiança física. Se escrevo que toda moça que enfrenta Paris mete os peitos pra frente e desafia o mundo, não estou usando uma imagem.

Tomei ontem o metrô Cité-Universitaire e à minha frente sentaram-se duas mulheres. Uma linda, alta, fornida, um poderoso par de coxas. Soberba. De botas. Me olhava de cima. E que me restava senão olhar de baixo? Esta contre-plongée já me deliciava.

Ao lado da moça alta e soberba, sentou-se uma velhota, baixinha e feia. Como a pombinha de Montsouris, também mancava. Perguntou-me as horas, tinha pressa de chegar a qualquer parte. Disse-lhe as horas e ela ficou resmungando qualquer coisa para si própria. Assim como destoava do universo a pombinha manca, assim destoava de Paris a velhota baixinha e feia. Mas a alta e soberba só só me inspirava desejo, vontade de refocilar-me naquelas botas que subiam até o regaço.

E a pombinha manca, rumo a seus mancos destinos, me encheu de ternura e entendimento.



Paris, 02/03/78

sexta-feira, fevereiro 02, 2007
 
DICAS DE PARIS




· Os grandes bares de esquina ou de bocas de metrô são sempre mais caros que os botecos mais discretos. Lá, se paga pela paisagem. Num botequinho modesto de meio de rua, pode-se tomar a mesma cerveja dos bares mais imponentes, quase pela metade de preço. Vale o mesmo para cafezinho ou refeições

· Mesmo assim, estacionar em pelo menos um dos dois cafés frente ao metrô Odéon: o Danton e o Rélais de l Odeon, um quase em frente ao outro. Apanhar um jornal, pedir algo e olhar a fauna. Vale a consumação. Por outro lado, sentar numa terrasse numa tarde de setembro, mesmo que o cafezinho custe um pouco mais, é uma boa hipótese para observar as gentes

· Se quiseres uma taça de vinho, deves pedir um ballon, rouge ou blanc, conforme teu gosto

· Dar um giro pela rue Mouffetard, perto do Panteon. Há uma feira deliciosa nas manhãs de domingo. Almoços ótimos e abordáveis. A Mouff merece uma visita, é uma rua para onde os parisienses tentaram fugir, para escapar ao Quartier Latin. Se bem que o turismo já chegou lá. Saindo da Sorbonne, dá uns 10 ou 15 minutos a pé

· Um restaurante interessante a visitar é o Polydor, na rue Monsieur Le Prince, a uns cinco minutos da Sorbonne. Almoços relativamente baratos. Gosto muito, particularmente quando tem boudin no cardápio, o que não acontece todos os dias. Modesto, honesto e tradicional. Bom para um almoço sem maiores pretensões.

· Bem no início da Rue du Faubourg Montmartre, há um restaurante peculiar, o Chartier, bem no início, à esquerda, no fundo de uma cour. Simpático, folclórico e muito barato. À noite, fecha às nove. Só pelo ambiente, vale a visita. Lembrar que em Paris as mesas, mesmo pequenas são coletivas. Não te importa de sentar junto a estranhos ou que eles sentem em tua mesa. É normal em muitos restaurantes de Paris

· Na Gare de Lyon há um restaurante suntuoso, um teto de cair o queixo, o Train Bleu. Vale a pena a visita, que mais não seja para tomar um cerveja no bar e contemplar o ambiente. Não aconselho comer nele. Muito caro

· Há um belíssimo restaurante, o Julien, na rue du Faubourg Saint-Denis. Pratos excelentes, nada caros em termos de Paris. A rua é de prostituição, mas freqüentável sem problema algum

· Na rue Mabillon, procurar o Charpentier, excelente cozinha, preços humanos. Recomendo vivamente. O restaurante, simpaticíssimo, é ligado ao movimento de Compagnonage, uma confraria meio paralela à maçonaria.

· Na Île St. Louis, ilha ao lado da ilha da Notre Dame, na rue St. Louis en l?Île, procurar Le Sergeant Recruteur ou, ao lado, Nos Ancêtres, les Gaulois. São dois restaurantes com menu a preço fixo. Entradas, queijos e vinhos à vontade. Quanto aos pratos propriamente ditos, escolhes um entre três opções. Não esquecer que o vinho é à la volontê. Não é lugar para se ir sozinho. Como é ambiente de alegria coletiva, o solitário fica um tanto deslocado

· Algo mais sofisticado e, evidentemente, mais caro: o Bofinger, numa pequena travessa da Place de la Bastille. É só chegar na Place e perguntar pelo restaurante. Sem falar na cozinha, só o interior vale uma tarde e alguns euros a mais. Quando sento lá, não tenho mais vontade de sair. Em frente, o Petit Bofinger, caso o Bofinger esteja lotado. Mas a arquitetura do Petit não se compara à do primeiro

· Um excelente restaurante, o preferido do Mitterrand, é a Brasserie Lipp, no boulevard Saint Germain . As esquerdas sempre sabem onde se come bem. Recomendo fortemente. O plat de resistance é o cassoulé

· Frutos do mar há por toda parte. Mas um dos locais mais reputados é o Au Pied de Cochon, no Les Halles

· O Tour d?Argent tem preços assustadores à noite. Mas tem (ou tinha) um menu ao meio-dia por algo em torno a 50 euros

· Em quase todos os restaurantes que arrolo, se quiseres vinho, em vez da bouteille podes pedir um pichet, ou, para amadores, un demi pichet ou un quart pichet. Ou seja, uma jarra de vinho, uma meia jarra ou um quarto de jarra. Em geral, o vinho é potável. Em restaurante bom, o vinho é bom



· Tivesse eu de visitar apenas cinco restaurantes, pela ordem, eu começaria pelo Bofinger, continuaria pelo Julien e Charpentier, e terminaria com a Taverne du Sergeant Recruteur e a Brasserie Lipp



· A gorjeta sempre vem incluída na conta. Sempre. Lei do Mitterrand



· Fora isso, deve existir mais uns cinco mil restaurantes e cafés por lá, à tua espera