¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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sexta-feira, dezembro 22, 2006
 
PARIS SE ENFEIA



Quando digo que já subi do Quartier Latin a Montmartre de barco, nunca falta quem ache que estou fazendo piada. No entanto, já subi. No Sena, nas proximidades da piscina Deligny, há - ou havia - um pequeno barco, o La Patache, que fazia o trajeto, percorrendo o canal Saint-Martin e subindo através de suas eclusas. O barco saía às nove da manhã e só chegava a Montmartre ao meio-dia, devido ao tempo gasto em abrir e fechar eclusas. Certo domingo, tomei o La Patache com uma amiga. Após um trecho subterrâneo, já nas proximidades do monte, o canal vem à luz sob uma magnífica alameda. É um dos mais belos passeios que se pode fazer em Paris e que o turista geralmente desconhece.

Conto o episódio em Ponche Verde, posto que um acidente não previsto no percurso marcou aquele dia:

"A manhã era gloriosa, Paris recém despertava, além dele o barco transportava alguns turistas sonolentos fotografando o Pont des Arts, Notre Dame, Conciergerie quando, após a ilha Saint Louis, pouco antes de entrarem no Saint Martin, na pracinha frente a Jussieu, qualquer coisa se movia onde não devia existir movimento algum, uma escultura modernosa e cheia de curvas pareceu adquirir vida, o conjunto era todo cor de ébano e parte do ébano, também curva, parecia mover-se e contorcer-se e acariciar, os turistas todos olhavam perplexos numa tentativa de entender o que estava acontecendo naquele setor do universo quando, após um bom minuto de estupefação o episódio adquiriu - ou pareceu adquirir - sentido: um negro nu, lança em riste, confundia-se em formas e cor fazendo amor com o bronze. C'est drôle! - disse a guia. E mais não disse".

Eu estava com a máquina fotográfica em punho. Mas a cena era tão insólita que sequer lembrei de acioná-la. Meu cérebro - e suponho que os demais que me rodeavam - precisaram de alguns segundos para entender que o acontecia era exatamente o que estava acontecendo. Naquele dia, talvez tenha perdido a grande foto de minha vida. Bom, deixo o negrão de lado e volto ao Saint-Martin. Cuja beleza você pode contemplar aqui: http://www.davidphenry.com/Paris/CanalSaintMartin_fr.htm. Curta com carinho estas imagens. Pois o Saint-Martin está virando uma favela.

Leio no Estadão de hoje que um grupo de sem-teto - ou SDF, como são chamados na França, Sans Domicile Fixe - está tomando as margens do canal. Um dos líderes os SDF está exortando os parisienses "bem-alojados", a juntar-se aos moradores de rua acampados em volta ao canal. A ocupação surpresa foi feita antes que a polícia pudesse impedir. Durante a semana, centenas de barracas vermelhas foram instaladas na região, reunindo também sem-teto verdadeiros.

Mais alguns anos e Paris vira São Paulo. Vai logo, leitor, vai logo antes que acabe. Estou indo mês que vem e desde há muito sei que não estou voltando à Paris de minha juventude.