¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, dezembro 25, 2006
 
MARTA, MARTA...



Convencionou-se no Ocidente, desde há muito, que Natal é época de presentes. Se um dia a data teve algum significado religioso, hoje é sinônima fundamentalmente de comércio. Ora, o significado religioso é falso. Se o Natal pretende marcar o nascimento do Cristo, a Bíblia não fixa data alguma para este nascimento. A data só foi fixada no ano 350, pelo papa Júlio I ou, segundo outros historiadores, em 354, pelo papa Liberius. A intenção era cobrir as comemorações pagãs, pelos povos do hemisfério Norte, do solstício de inverno e de adoração do sol. E principalmente o Dia do Nascimento do Sol Invicto, proclamado no 25 de dezembro, no ano de 274, pelo imperador Aureliano.

Assim, se algum cristão acha que está comemorando o nascimento do Cristo, em verdade está participando de uma farsa. Os cronistas choramingas de final de ano, que deploram o festival de consumo justo no dia em que nasceu aquele pobre menino numa manjedoura, podem tirar seus cavalinhos da chuva, porque naquele dia, se nasceu algum Jesus na Galiléia, nada tem a ver com aquele da cruz. E tem mais: não nasceu em Belém, como repete toda a grande imprensa e até mesmo jornais sérios. Nasceu em Nazaré. E só mais um pouquinho: não nasceu no ano em que a Igreja diz ter nascido. Segundo Renan, o grande historiador do cristianismo, o nascimento "teve lugar durante o reino de Augusto, em torno do ano 750 de Roma, provavelmente alguns anos antes do ano 1 da era que todos os povos civilizados fazem datar a partir do dia em que ele nasceu".

Em nossos dias, Natal está mais relacionado a TVs, DVDs, PCs, notebooks, MP3, celulares e máquinas de fotografia digitais do que ao nazareno. Só que isto não é farsa. É fato. Natal é a grande festa, não da cristandade, mas dos shoppings. Ganhar presentes é bom? Quem ganha sempre gosta. Dar presentes é bom? Também. Existe um inegável prazer em dar. Pelo menos para quem pode dar-se a este luxo. Até mesmo pessoas pobres reservam seu 13º salário - quando o recebem - para investir em presentes. Não gosto de shoppings. Ocorre que um deles instalou-se a uma quadra de meu prédio e, nestes dias, tenho visto multidões saindo de lá com um ar de beatífica felicidade no rosto.

Felicidade besta? Pode ser. Mas felicidade. Neste país em que um governo demagogo enfia a mão no bolso de pobres e ricos - e muito mais no dos pobres que no dos ricos - para entregar seus suados ou não suados ganhos a deputados e senadores corruptos, a bugres ociosos e bandoleiros do MST, a quilombolas e invasores de prédios, melhor que o contribuinte consuma seus trocados em futilidades. Ao menos está tendo algum prazer.

O cronista é um defensor do consumismo, já estará pensando o leitor que não me conhece. Sem me conhecer, tem toda a razão. Defendo a sociedade de consumo. Todo consumo, por idiota que seja, gera empregos. Você quer este Natal regado a bons vinhos, champanhes e perus? Não se iniba, só porque a grande maioria do país não tem acesso a vinhos, champanhes e perus. Ao fazer sua festa, você está dando trabalho a todos os profissionais do ramo, tanto aos que produzem tais mercadorias como aos que as embalam, transportam e comercializam. As sociedades de consumo vão muito bem, obrigado. O que vai mal são as sociedades onde não há consumo algum. Cristo? Ah! Se os jornais não insistissem cada ano em lembrar - erroneamente - que ele nasceu no 25, ninguém lembrava mais.

O cronista é um consumista, já estará pensando aquele mesmo leitor que não me conhece. Por não me conhecer, não tem razão alguma. Nunca tive carro, nem jamais senti necessidade de tais geringonças. Não tenho sítio nem casa de praia, adereço de todo profissional bem sucedido. Diga-se de passagem, detesto sítios. Quando algum amigo me convida para visitar o seu, peço que o ponha em CD-Rom, e eu o visitarei na tela de meu computador. Nunca usei relógios caros e, nos últimos anos, desisti de qualquer relógio. Não freqüento restaurantes de luxo nem consumo bebidas na faixa dos três, quatro ou mais dígitos. Se um assaltante passar algum dia aqui em casa, sentirá a desagradável sensação de ter perdido seu tempo. Sim, tenho computador. É o instrumento de comunicação e trabalho de todo jornalista.

Fora comer e beber, sem o que não existo, meu consumo nada tem de supérfluo. Meus gastos são geralmente em livros e música, e não vejo isto como consumismo. Livros, compro para estudar e tentar entender o mundo que me cerca. Música, para tornar a vida um pouco mais alegre. Gosto de ópera. (Mas também de Inesita Barroso e Miguel Aceves Mejía). Fora isto, não compro quase nada. Conheço pessoas que se sentem no nirvana quando saem a comprar roupas. Para mim, é uma tortura. Enfim, mais dia menos dia, alguma roupa tenho de comprar. É meu dia aziago do ano. Gosto de dar presentes, mas jamais dou presente algum no Natal. Tampouco recebo presentes no Natal. Nenhum amigo seria tão indelicado para cometer tal gafe. Por que dar presentes em um dia preciso, quando o bom do presente é o imprevisto?

Quando vejo essas multidões natalinas, correndo como formigas ante a ameaça de um temporal, não posso deixar de deplorar a miséria humana. São pobres diabos que, por força da propaganda, se sentem compelidos a comprar e comprar e comprar. Que mania é essa de ter de comer peru no Natal, quando se pode comê-lo o ano todo? Que tem a ver o peru com Cristo? A instituição do Papai Noel é significativa. Parece que a cristandade, envergonhada de associar o consumo ao nascimento do filho de Deus, delegou esta função ao Santa Klaus.

Se isto os faz felizes, que direito temos de condená-los? Sejam felizes, caros. Natal é isso mesmo. Não estão cometendo nenhum crime. Pelo contrário, estão azeitando a economia do país. O Natal rega os sistemas vasculares de todo o Ocidente. Mas se faço a defesa do capitalismo, nos natais sou o anticapitalista por excelência. Nestes dias, o sistema não recebe um vintém a mais de meus bolsos.

Enquanto a cristandade compra desesperadamente, eu, o ateu, me dedico ao recolhimento. Nas últimas décadas, sempre estive em algum distante lugar do mundo, com minha Baixinha adorada. Como não é fácil jantar nessa data, geralmente nos muníamos de um bom vinho, pão, queijo e patês e os degustávamos no quarto do hotel. Foram certamente os melhores vinhos e os melhores pães e queijos que tive em minha vida. Foram também os melhores natais. Hoje, sem Baixinha, gosto de ficar sozinho ou com pessoas muito próximas. Mas o vinho não tem aquele mesmo sabor, nem mesmo o pão.

Nestes dias, não posso deixar de lembrar o homenageado da data: "Marta, Marta, estás ansiosa e perturbada com muitas coisas; entretanto poucas são necessárias, ou mesmo uma só".

Dito isto, boas festas a todos!