¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

sábado, agosto 19, 2006
 
VIAJAR - NO ASSEKREM



As três grandes religiões contemporâneas nasceram no deserto. Michel Onfray vai mais longe: o monoteísmo surge da areia. Ateu, cheguei a imaginar que deus, se existisse, deveria estar pairando em meio à nudez e ao silêncio daquelas paragens do Saara. Que o deserto inspira os místicos, sobre isto não há dúvidas, e não foram poucos os anacoretas que o buscaram. Terá sido este sentimento talvez que levou o padre Charles de Foucauld a buscar a solidão no Assekrem, um dos picos de El Hoggar. Beatificado em novembro passado por Bento XVI, exilou-se no Hoggar e estudou hábitos e a língua dos tuaregues, tendo organizado a primeira gramática tamahaq. Filho de família nobre e visconde de Pontbriand, Foucauld teria se convertido ao catolicismo aos 28 anos. Uma de suas virtudes propaladas seria a humildade. Não é o que penso.

Difícil entender como humilde um homem que instala sua choupana em meio ao deserto, no cume de uma montanha de 2780 metros de altura. Com o sol se pondo, todas as tardes, do outro lado do Tridente, três picos soberbos fazendo face ao Assekrem. Acampamos junto à ermida, já em ruínas, de père Le Foucauld.

Sem pretender usar de oxímoros, o silêncio é estridente. Um forte zumbido, emanando talvez de nosso próprio cérebro, tão pouco habituado à ausência absoluta de sons, fere os ouvidos. Em meio à noite gelada, nos reuníamos junto à fogueira com os tuaregues. Solenes, hieráticos, num francês escasso, eles narravam histórias do deserto. Em um ritmo coerente com o tempo daquelas imensidões. Uma ou duas palavras a cada dois ou três minutos. Assim devem ter nascido as lendas e a própria literatura. Me senti de volta à infância no Ponche Verde, quando em meio ao fogo de galpão, meu pai me recitava os versos de Fierro, antes de apojar as vacas. No fundo, o ser humano é o mesmo em todos os azimutes. E onde houver dois ou três homens em torno ao fogo haverá histórias a contar. Momentos mágicos, hoje distantes deste ser urbano que vos escreve, que me provocaram uma estranha vontade de chorar.

Não me espantaria que um dia as agências de turismo programassem excursões rumo ao silêncio. Corre-se o risco de que os turistas matem o silêncio, é verdade, mas sempre sobrará algum espaço para gozá-lo. Em uma viagem pela Terra do Fogo, lá pelas tantas, passeávamos ante um glaciar. O guia reuniu o pequeno grupo e pediu que todos permanecessem alguns minutos em silêncio. Sem as vozes, ante aquela massa de gelo que há cinco mil anos ali estava, podia-se sentir como era o mundo em suas origens, antes que a humana algaravia o conspurcasse. Foi outro grande momento de minha vida e de novo me acometeu um nó na garganta.

Mas isto já é outra história. Foram doze dias no deserto, comendo areia e alho, sem banho. Para o tuaregue ou harratine, é o dia-a-dia. Para seres urbanos, de início incomoda. No primeiro dia a areia arranha o corpo. No segundo, arranha menos. No terceiro, nem a sentimos. Na volta a Zeralda, enchi a banheira e deitei. A água foi ficando preta, preta que nem petróleo. Troquei-a e deitei de novo. Melhorou, ficou marrom. Na terceira imersão, voltei definitivamente a meu universo urbano.