¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, julho 03, 2006
 
ONTEM HERÓIS, HOJE LEPROSOS



- Para quem você torce hoje? - perguntei no sábado a um motorista de táxi. O homem me olhou com estranheza e reagiu com certa hostilidade:
- Para o Brasil, ué! Sou brasileiro.
Pensei em perguntar-lhe em que código está escrito que brasileiro deve torcer pelo Brasil, mas preferi ficar calado. Com fanáticos, sejam religiosos, sejam futebolísticos, de nada adianta argumentar. O fanatismo do povinho, dizia em crônica passada, é o que me afasta do futebol. Fanatismo igual irracionalidade. Mesmo se você é daqueles leitores que ao pegar um jornal vai logo jogando fora o caderno de esportes, vale a pena dar uma olhadela nos suplementos esportivos deste domingo. É o império do irracional.

O Estadão, no sábado, titulava em primeira página:

A seleção em busca do erro zero

Bastaram 90 minutos de jogo para que, no domingo, a manchete fosse:

Um time para esquecer

A Folha de São Paulo, que no sábado cocoricava um ufanístico Ou vai ... ou racha, no domingo foi implacável: "sem mágica sem tática sem fôlego sem craque sem time sem raça sem hexa sem desculpa". O melhor jogador do mundo em todas as épocas, do dia para a noite virou um Judas a ser malhado:

Ronaldinho Gaúcho fechou sua participação na Copa da Alemanha de forma melancólica. Jogou mal, não driblou, não deu nenhum chute na direção do gol, errou passes e, em nenhum momento, assumiu a responsabilidade. Decepcionou não só os brasileiros, mas todos na Alemanha. O melhor do mundo nas últimas duas temporadas teria de atuar melhor. Muito melhor. O confronto com a França foi um retrato de sua participação no Mundial: apático, burocrático, medíocre, com medo de decidir. Mesmo diante de seleções mais fracas, como Croácia, Austrália, Japão e Gana, o meia-atacante do Barcelona não foi capaz de pôr em prática seu talento. Esteve apagado do primeiro ao último jogo da competição.

Ontem heróis, hoje leprosos. Tivesse a seleção, por um mero golpe de sorte, ganho a partida, mesmo que tivessem jogado da forma canhestra como jogaram, os heróis continuariam sendo heróis. Mesmo que tivessem feito um gol com "la mano de Diós", não seriam hoje reles bodes a serem enviados para o deserto da mídia. A mão que afaga, dizia o poeta, é a mesma que apedreja. Que essa súbita mudança de humor ocorresse junto a esta escória que infesta as ruas com cornetas e bandeiras nos dias de Copa, se entende. Mais difícil se torna entendê-la quando ela parte de jornalistas, que passam a comportar-se como fanáticos torcedores.

Há duas semanas, manifestei o desejo de uma derrota, de preferência humilhante, para meu país. O leitor já pode imaginar o sorriso imenso e feliz que me iluminou o rosto no sábado passado. Poderia ter dito ao motorista de táxi que tenho sérias razões para torcer pela França. É país onde me sinto melhor que no Brasil, foi onde vivi meus melhores dias e país do qual recebi auxílios que o Brasil jamais me deu. Durante quatro anos, além de uma bolsa, o governo francês pagou religiosamente metade de meu aluguel. A cada início de mês, o carteiro batia em minha porta, abria a carteira e me repassava um generoso pacote de francos, estalando de novinhos. Apanhava depois um porte-monnaie e completava o montante até o último centime. Eu não precisava nem mesmo ir a um guichê para receber meu auxílio-família. Recebia-o em casa. Para isso, tinha de preencher algumas condições. Entre elas, meu apartamento deveria ter alguns requisitos básicos: uma confortável metragem mínima, banheiro e sanitários (o que nem sempre existe ao mesmo tempo em um apartamento em Paris) e determinadas condições de higiene. O governo completava meu aluguel não apenas para que morasse, mas para que morasse bem.

Bem entendido, esse auxílio não era para comprar meu voto. Estrangeiro, não votava na França. Tampouco é uma esmola jogada a quem nem casa tem. É um auxílio para residir. Isto meu país jamais me deu. Nem bolsa, nem complemento de aluguel. Por que torcer pelo Brasil? Torci pela França. Mas apenas mentalmente. Não imagine alguém que fiquei apalermado diante de uma TV gritando "Allez les bleus!" Pra falar a verdade, não consigo suportar uma partida de futebol por mais de cinco minutos. Me soa tão monótona como pornografia. Sempre a mesma coisa: disputa pela bola, arremetida contra o adversário, gol. Não me é fácil entender como, nestes dias de Copa, milhões de pessoas permaneçam coladas ao televisor para ver, todos os dias... o mesmo filme. Haja pobreza mental.

Torci pela França não pelos benefícios que dela recebi. Desde a primeira Copa que vi, sempre torci por qualquer país que jogue contra o Brasil. Não porque tenha ódio a meu país, nada disso. Mas é preciso acabar com esse anestésico, ministrado de quatro em quatro anos, que faz com que uma nação inteira pare. Não só pare como esqueça as mazelas todas do país, a miséria, a corrupção, o desmando, o desrespeito generalizado às leis, a começar pelas próprias autoridades que por elas deveriam zelar. Há alguns meses, o candidato das oposições, o patético Geraldo Alckmin, fazendo piadinha com sua antiga profissão, dizia que o Brasil precisa de um anestesista. Ora, o candidato parece ignorar que anestésicos temos o ano todo. Quando não é futebol é carnaval, quando não é carnaval é loteria e se não é loteria é o jogo do bicho. A cada Copa, uma dose reforçada, cavalar, de anestesia. Se o Brasil ganha, o país todo, entorpecido, entra em euforia. O doping é geral. Vibram os ricos atrás de suas barricadas, a classe média em seu sufoco, vibra o favelado em sua miséria, o prisioneiro atrás das grades, o mendigo debaixo do viaduto. Se um extraterrestre de longa milhagem em anos-luz aqui chegasse após a conquista da Jules Rimet, não teria dúvidas de ter chegado ao planeta de maior índice de felicidade per capita entre as galáxias.

Quando digo isto, com a velocidade de uma bola rebatida, salta a pergunta: que estás fazendo no Brasil? A pergunta é feita de duas formas. Ora, de modo afável e por curiosidade. Ora, agressivamente, como quem ordena: rua deste país! A pergunta vem de longe, desde quando escrevi meus primeiros artigos, não contra o futebol, mas contra o fanatismo em futebol. Há mais de trinta anos ouço esta objeção e já estive perto de pugilatos em mesas de bar. Quando a pergunta vem em tom irado, tenho resposta pronta: "Meu passaporte é brasileiro, resido em qualquer lugar do Brasil sem pedir autorização a autoridade alguma, saio e entro neste país quando bem entendo e me reservo o sagrado direito de criticá-lo". Esta censura dos fanáticos é mais violenta que a censura das ditaduras. Nas ditaduras, criticar o país sempre é permissível. O que não se permite é a crítica ao poder. Os fanáticos - que nestes dias confundem futebol com pátria - não admitem crítica alguma.

Para os que perguntam com afabilidade, esclareço também com afabilidade. Há 35 anos, fiz minhas malas e saí para não voltar. Acabei voltando. Uma mulher me chamava e todo país é lindo quando há nele alguém que amamos. Fora isto, o preço do metro quadrado na Europa é um poderoso argumento para ficar por aqui. O Brasil, apesar dos pesares, é país para onde se volta. Os exilados de 64, que degustaram em Paris ou Londres o amargo caviar do exílio, juravam só voltar de metralhadora em punho. Mal foi decretada a anistia, em 79, voltaram sem armas nas mãos e com lágrimas nos olhos.

Minhas preces por uma derrota brasileira nesta Copa foram atendidas neste sábado. Obdulio Varela ressurgiu das cinzas, desta vez falando francês. Isto não significa uma ojeriza ao Brasil. No dia em que formos reconhecidos por feitos na área da ciência ou tecnologia, quando a moeda nacional for aceita no estrangeiro, no dia em que brasileiro não mais precisar lavar pratos no Primeiro Mundo, quando analfabetos forem para a escola e não para o poder, nesse dia torcerei pela seleção. Esse distante dia, suspeito que nem meus hipotéticos netos verão. Enquanto isso, é bom ver os leprosos voltando abaixo de vaias.