¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, maio 08, 2006
 
ATÉ LÁ, MORREU O NEVES!



A justiça brasileira foi implacável na semana passada. O Tribunal Regional Federal condenou o ex-senador Luiz Estevão de Oliveira, os empresários Fábio Monteiro de Barros e José Eduardo Corrêa Teixeira Ferraz, sócios da construtora Incal, e o juiz aposentado Nicolau dos Santos Neto a um total de 115 anos de prisão, pelo desvio de verbas na construção do Fórum Trabalhista de São Paulo. Os indigitados réus foram também condenados a mais de R$ 5 milhões em multas. Verdade que, considerando-se um desvio de R$ 169,5 milhões, o investimento destes senhores teve uma rentabilidade extraordinária, fora do alcance dos comuns mortais.

O juiz Nicolau, mais conhecido na imprensa por Lalau, já condenado a 22 anos, recebeu mais 26 anos de reclusão. O ex-senador Estevão foi condenado a 31 anos de prisão: 9 anos e 4 meses pelo crime de peculato-desvio; 8 anos por estelionato qualificado; 8 anos e 8 meses por corrupção ativa; 2 anos e 6 meses por documento falso e, igualmente, 2 anos e 6 meses por formação de quadrilha. O empresário Fábio Monteiro de Barros também recebeu penas semelhantes às de Estevão, no total de 31 anos de prisão. José Eduardo Teixeira Ferraz foi condenado a 27 anos e oito meses.

Nesta mesma semana, Antonio Marcos Pimenta Neves, ex-diretor de redação do Estadão, assassino frio e confesso da jornalista Sandra Gomide, editora de Economia do mesmo jornal, no dia 20 de agosto de 2000, foi condenado pelo tribunal do júri a dezenove anos, dois meses e doze dias de prisão. Jornalista senil, não conseguindo mais exercer o direito de pernada sobre uma subordinada, preferiu matá-la. Por unanimidade, o júri considerou o jornalista culpado de crime qualificado, o que o torna sujeito à Lei de Crimes Hediondos, que prevê o cumprimento integral da pena em regime integralmente fechado. Entre o crime e a decisão do júri, decorreram cinco anos, oito meses e quinze dias. O assassino, confesso, passou a maior parte deste tempo em liberdade.

Dura lex sed lex. Finalmente o martelo da justiça abate os poderosos, estará imaginando o cidadão desavisado. Em sua inocência, este cidadão deve estar supondo que o senador, o juiz, os empresários e o jornalista estão encerrados no cárcere a que foram condenados. Acontece que estamos neste Brasil, onde o Supremo Tribunal Federal considera que criminosos devem responder a processo em liberdade, enquanto não forem esgotados os recursos a que têm direito. A situação do Lalau, 78 anos, não muda em nada. Já cumpria - e continuará cumprindo - prisão domiciliar, por problemas de saúde e de idade. A situação dos demais condenados no escândalo da construção do Fórum tampouco. Continuarão esperando o julgamento dos recursos.

Idem, Pimenta Neves, que já tem 69 anos e se aproxima da idade confortável da impunidade. A defesa vai apresentar recurso ao Tribunal de Justiça e o novo julgamento deve demorar pelo menos mais dois anos. Segundo o ex-juiz Luiz Flávio Gomes, que acompanha o caso, "até lá, Pimenta terá 70 anos e, se ficar comprovado que está doente, poderá ficar em prisão domiciliar mesmo condenado em definitivo". Considerando-se que cada instância demora cerca de três a cinco anos para julgar um recurso, o leitor já pode ter uma idéia muito precisa de quando estes senhores olharão o mundo por trás das grades: nunca.

Há alguns anos, o Estadão publicou artigo de uma ativista internacional que propunha a absolvição coletiva de todos os assassinos responsáveis pelo genocídio ocorrido em Ruanda, em 1994. Os criminosos eram tantos, de tão difícil identificação - alegava a generosa articulista - que qualquer processo se tornava impossível. No Brasil, parece que estamos rumando a esta solução proposta para Ruanda, embora os criminosos não sejam tantos e sejam perfeitamente identificáveis.

O segredo da impunidade? Advogados caros e safados, que jamais discutem o mérito da questão, atendo-se aos arabescos colaterais do direito adjetivo. A persistir esta tendência do Judiciário, teremos uma privilegiada elite de megatérios, todos devidamente condenados pelo rigor das leis e gozando das delícias de suas posses, em meio à afável companhia de amigos e parentes. Com uma pequena restrição, a de não poder viajar ou sair de casa. Mas idade provecta é idade de ficar em casa mesmo. Principalmente quando lei alguma impede a entrada de bons vinhos e champanhes, boa trufa e bom caviar.

Cada vez que comento esta malandragem perfeitamente aceita nos tribunais, não resisto a citar Swift, que já no século XVIII via este recurso tão usual no século XXI. Em As Viagens de Gulliver, escreve o deão, a propósito da hipotética disputa de uma vaca:

- Ao defender uma causa,os advogados evitam cuidadosamente entrar no mérito da questão. Mas são estrondosos, violentos e enfadonhos no discorrer sobre todas as circunstâncias que não vêm a pêlo. Por exemplo, no sobredito caso, não querem saber quais ou direitos ou títulos que tem o meu adversário à minha vaca, mas se a dita vaca era vermelha ou preta, se tinha os chifres curtos ou compridos, se o campo em que eu a apascentava era redondo ou quadrado, se era ordenhada dentro ou fora da casa, a que doenças estava sujeita, e assim por diante. Depois disso, consultam os precedentes, adiam a causa de tempos a tempos e chegam, dez, vinte ou trinta anos depois, a uma conclusão qualquer. (...) por maneira que são precisos trinta anos para decidir se o campo, que me legaram há seis gerações os meus antepassados, pertence a mim ou pertence a um estranho que mora a seis milhas de distância.

Enquanto isso, o ex-motorista e ex-mecânico Marcos Mariano da Silva, 57, conseguiu também na semana passada pensão indenizatória no valor de R$ 1.200 por mês, a partir de junho. A indenização foi concedida pelos dezenove anos em que esteve preso injustamente no Recife, acusado de homicídio. Foi preso por uma questão de homonímia: o criminoso se chamava Marcos Mariano Silva. Neste período, o outro Mariano perdeu sua frota de seis táxis, sua oficina, sua mulher e suas dez filhas. Não bastassem estas perdas todas, perdeu também a visão.

Dezenove anos de vida foram roubados deste pobre coitado, como também sua família e seus olhos. Mariano não teve a chance de ter advogado caro. Luiz Inácio Lula da Silva hoje recebe R$ 4.294 mensais, por ter passado ... 31 dias na cadeia. O investimento do Supremo Apedeuta nada deixa a invejar ao investimento do Lalau e seus comparsas.

Gente fina é outra coisa. Dez, vinte, trinta anos depois..., como diz Swift. Até lá, morreu o Neves. Terão morrido também o Lalau, o Luiz Estevão, o Monteiro de Barros e o Teixeira Ferraz. Morrerão condenados, mas terão vivido até seus últimos dias como passarinhos em gaiolas douradas.

É preciso terminar com essa lenda de que o crime não compensa. As novas gerações estão arriscando perder uma velhice confortável, melhor que qualquer aposentadoria, caso continuem a acreditar nessas potocas.