¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, março 20, 2006
 
A PROSTITUIÇÃO DO MERCADO LIVREIRO



Você gosta da boa companhia dos livros? Então já terá observado que, nas vitrines e gôndolas das grandes livrarias, não há livro que preste. Você dá de cara com os paulos coelhos da vida, dans browns, harry potters, dalais lamas, livrecos de auto-ajuda, uns explorando o cadáver de Cristo, outros explorando os cadáveres de Platão, Nietzsche ou Schopenhauer, filosofia sucateada, enfim, puro lixo literário. Livro bom, talvez escondido nas estantes e, mesmo assim, olhe lá!

Em reportagem de uma semana atrás, a Folha de São Paulo traz à tona um segredo de polichinelo: as livrarias cobram para exibir livros nas vitrines. Os preços de um pedaço de vitrine ou de uma pilha de livros em destaque variam, conforme as negociações, de 700 a 2.000 reais, dependendo do local e tempo de exposição. Duas das mais prestigiosas redes livreiras do país, a Cultura e Fnac, confirmaram ao jornal este procedimento. A Folha inclusive relaciona os preços: para as prateleiras que ficam nos corredores, 2.000 reais por dez dias de exposição. Para os cubos de livros montados em lugares estratégicos, 1.300 reais por um mês de exposição. Nas vitrines, 900 reais por quinze dias. Quais editores podem pagar tais preços? Os editores de bestsellers. Não é pois de espantar que você sempre encontre os paulos coelhos da vida, dans browns, harry potters, dalais lamas, livrecos de auto-ajuda, uns explorando o cadáver de Cristo, outros explorando os cadáveres de Platão, Nietzsche ou Schopenhauer.

"Todas, todas (as livrarias) fazem" - diz Ivo Camargo, diretor de vendas da Ediouro -. "A Siciliano faz. Fnac faz. Laselva faz. A Laselva, inclusive, tem um departamento que cuida só disso. Acho que está certo. Tem que cuidar mesmo". Ou seja, se você gosta de boa literatura, afaste-se das grandes redes do livro. Sem falar que o conceito que este tipo de livreiro tem do leitor é insultante. Ele considera que o leitor é uma besta quadrada, que compra um livro só porque este livro está bem exposto. O pior é que talvez tenha razão.

A discussão em torno à venda de livros - se é algo que possa se vender como sabonetes ou se é uma mercadoria especial - não é de hoje. Há editores e livreiros que julgam ser o livro uma mercadoria como qualquer outra. Também há os mais raros, se é que ainda existem, que consideram o livro uma mercadoria nobre. O fato é que os mercenários mandam no mercado. Eu, que sempre vivi cercado de livros, hoje tomo distância das grandes livrarias. E se, por necessidade, entro numa delas, a resposta é sempre uma só: o livro que o senhor procura, não temos no momento.

Em meus verdes anos, fui um defensor incondicional de tudo que se referisse a livro, campanhas pela leitura, feiras do livro, tardes de autógrafos. Em meus dias de jornalista em Porto Alegre, sempre incentivei a Feira do Livro, que acontecia na Praça da Alfândega quando os jacarandás começavam a florir. Abandonei Porto Alegre e, ao voltar, a feira tinha crescido. Começaram a surgir os convidados de honra, em geral autores de bestsellers, que nada tinham a ver com literatura. E quando tinham a ver, os freqüentadores da Praça não os procuravam exatamente por suas obras, mas por sua fama.

Em 95, fui convidado a fazer uma palestra na PUC gaúcha, sobre Camilo José Cela. Fui feliz a Porto Alegre, eu havia traduzido A Família de Pascual Duarte e Mazurca para Dois Mortos. O primeiro, a novela mais difundida na Espanha depois do Quixote, o segundo, um passeio pela Galícia espanhola, ao ritmo de uma estranha melodia, só ao alcance de quem curte a música das palavras. Cela, Nobel de 89, receberia um doutorado honoris causa na universidade e eu matava três ou quatro coelhos de uma só cajadada: revia meus amigos, revisitava a feira, conhecia o autor galego e fazia palestra sobre uma literatura que me fascinava.

Assim aconteceu. Mas um episódio empanou meu entusiasmo. Cela deu uma tarde de autógrafos na Feira. Formaram-se filas imensas ante o escritor, que teve de interromper os autógrafos, após duas ou três horas depois, por estar com câimbras nos dedos. Foi quando tive uma triste percepção do universo dos leitores. Aquela multidão toda, que fazia fila como russos diante de um McDonald's, nem tinha idéia de quem fosse Cela. Estavam ali para receber o autógrafo de um prêmio Nobel. A feira havia transformado um grande autor em uma celebridade qualquer. Alguns anos mais tarde, Paulo Coelho poluiu a Praça da Alfândega. De novo, filas quilométricas. Há um tipo de leitor para quem Coelho ou Cela têm o mesmo peso. São famosos e basta. Não importa o que tenham escrito. Mesmo quando compra um bom livro, este leitor nem sabe o que está comprando.

Existe também o que chamo de perversão da leitura. Conheço não poucas pessoas que lêem com sofreguidão, em grandes doses, pelo tal prazer de ler. Lêem com o mesmo entusiasmo tanto Dostoievski como Danielle Steel, e ao final da leitura são capazes de fazer tranqüilamente uma sinopse tanto de Crime e Castigo como de O Preço do Amor, não vendo diferença alguma entre uma obra e outra. Este hábito é doença das mais graves. Prazer de ler pelo prazer de ler é uma piada. Leitura é trabalho, e muitas vezes árduo. Mas falava de livros.

Leia a lista dos mais vendidos da Veja. Na liderança dos autores nacionais, ainda há pouco estavam estas sumidades das letras pátrias: Bruna Surfistinha e Danuza Leão. Na área da ficção, entre os dez mais vendidos pelo menos quatro são os Harry Potters da vida. Livros impostos ao leitor por uma publicidade agressiva, mas que nada tem a ver com boa literatura. Assim, por estas e outras razões, desde há muito mantenho distância das Bienais do livro. Não é ambiente dos melhores para um leitor exigente. Quando necessito comprar livros, busco alguma dessas livrarias pequenas, onde a bibliografia não está na memória de um disco rígido, mas na do livreiro.

Há muitos anos, passei em uma bienal. Rebanhos de criancinhas puxados por professoras, filas imensas para receber autógrafos de... Jô Soares, um calor infernal das luminárias, que não convidava ninguém a deter-se em um stand. Multidões zanzando como moscas tontas pelos corredores. Desde há muito cultivo uma filosofia, evitar qualquer coisa onde haja multidões. Naquele dia, fugi à minha filosofia. Só para voltar para casa irritado e de mãos vazias.

Emilio Calil foi à Bienal. O que Calil conta em seu blog - http://www.hotrod.blogger.com.br - só me reconforta: não perdi meu tempo indo até lá. Propaganda comunista, livros religiosos e de auto-ajuda, sempre em evidência. É óbvio que, garimpando, pode-se encontrar coisa boa. A verdade é que tais feiras são um fracasso total, os próprios exibidores admitem que não faturam o suficiente para cobrir o aluguel dos stands. Para que servem então tais eventos? Ao que tudo indica, para satisfazer vaidades e desovar bestsellers. Um livro com a credencial de bem vendido na Bienal tem suas vendas aceleradas.

O mercado livreiro, desde há muito, prostituiu-se. Cá e lá, restam alguns apóstolos, que inclusive se dão ao luxo de recusar vender lixo. Quando vivia em Curitiba, tirei o chapéu para o livreiro Chaim. Naqueles dias, o livro Zélia, uma paixão - fofocas em torno à ministra Zélia Cardoso de Mello - estava vendendo como pão quente. Era lucro certo para qualquer livreiro. Menos para o Chaim: "essa porcaria não entra em minha livraria".

Seguidamente, leitores me pedem orientação para leituras. Aqui vai uma: afaste-se das feiras mercenárias. Fuja das grandes livrarias. Livro não é sabonete. Busque aquele livreiro que conhece suas exigências e é capaz de dizer: "não compra esse aí, não é bom". E afaste-se, principalmente, dos "mais vendidos". Só por milagre você vai encontrar algo que preste nessas listas.