¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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domingo, julho 03, 2005
 
TAXADO COMO DIREITISTA
Quando voltei de Estocolmo, em 72, dei uma longa entrevista ao Correio do Povo, de Porto Alegre. Lá pelas tantas, o repórter me pergunta: como é a oposição na Suécia? Respondi que lá não havia oposição, pois a Suécia era o país do consenso. Os deputados debatiam no plenário e se acertavam nos corredores. No outro dia, a manchete letal:

Segundo Janer, não há oposição na Suécia por ser o país do bom senso

Ou algo semelhante, estou citando de memória. Reclamei ao repórter, mas preferi não pedir retificação. A menos que se trate de grave ofensa à honra, calúnia ou difamação, retificação em jornal é gol contra. O leitor que não havia lido o jornal ontem fica sabendo hoje do que você não afirmou, mas segundo o jornal teria afirmado. Como eu não era de esquerda, o repórter me via como de direita. Em seu bestunto, a manchete errada fazia sentido.

Minha fama de direitista já era antiga. Começou, creio, em 64, quando eu estudava em Santa Maria. Mal eclodiu o movimento militar, fui convidado para participar da guerrilha. Sem sequer levar em conta considerações ideológicas, me recusei. Considerava a guerrilha luta suicida, algo como lutar de bodoque contra tanques. Mas os candidatos ao suicídio tinham suas convicções. Que o Palácio de Inverno, em 17, fora tomado por um punhado de homens decididos. Que outro punhado de barbudos havia derrubado Fulgencio Batista em 59, em Cuba. Que os rumos da História sempre haviam sido decididos por um punhado de homens decididos. Esqueciam que o tzar vivia num palácio estival em São Petersburgo, completamente desprotegido, mais adequado a bailes da corte que ao exercício do poder. Tivesse o Kremlin como sede de seu governo, o século passado certamente não sofreria a tirania de assassinos como Lênin e Stalin. Esqueciam também que Cuba era uma ilhota, guarnecida por um exército despreparado. Desde então - quando tinha 17 anos - fui jogado às trevas da direita. Trinta anos depois, o jornalista e guerrilheiro Fernando Gabeira chegou à minha mesma conclusão. Mas só depois de cárcere, tortura e exílio. Longo é o caminho das esquerdas até o entendimento.

Em meus dias de universidade, por não participar de grupos de esquerda, fui jogado na direita. Cursei Filosofia, o mais aguerrido ninho de marxistas da capital gaúcha. Tachado como direitista, paguei preço caro por não seguir a filosofia do alemão iracundo. (Para começar, nunca considerei Marx filósofo, mas um economista). Perdi um monte de mulheres. Mal me aproximava de uma, vinha a informação: "cuidado, esse cara é direita". Logo fui promovido a agente do DOPS.

Um episódio fez folclore em Porto Alegre. Estava com uma jornalista debaixo de um chuveiro (vínhamos da praia), ambos nus, quando ela me repeliu suavemente com os braços: "Estou com vontade, mas me desculpa. Não combinamos política e ideologicamente". Assim eram aqueles 70 e este "direitista" que vos escreve ficou a ver navios.

Os jovens de hoje certamente ignoram, mas houve época em que o Partido Comunista proibia seus militantes de falar com qualquer pessoa que não fosse comunista. Para evitar contágios burgueses, suponho. Com o tempo, fui promovido ao SNI, e a pecha teve conseqüências mais graves. Perdi amigos e empregos, o que torna a vida nada fácil para quem a está começando. Em 71, fui para Estocolmo. Ao voltar, nova promoção: agora eu era agente da CIA.

Tudo isto para chegar a um outro lapso, desta vez meu. Em um debate na Internet, falei que fora taxado como esquerdista. Entre mais de 50 mil participantes do fórum, pelo menos um notou minha gafe e corrigiu-a asperamente. Me penitenciei, mas logo percebi o lapso como providencial. Quem é tachado de direitista, é ao mesmo tempo duramente taxado. E a taxa é alta, particularmente para um jovem. Hoje tenho vida estável, acusações de tal jaez não me fazem mossa. Mas podem destruir o futuro de quem está se iniciando na vida. Como destruíram, por exemplo, a carreira de Wilson Simonal. E de tantos outros que foram barrados no jornalismo, no magistério e no mercado das artes e não ficamos sabendo.

Gostei de meu lapso, tanto que o uso como título. Talvez tenha emergido do inconsciente. Mas, se não sou de esquerda, nada tenho a ver com a tal de direita, hipótese que o maniqueísmo das esquerdas não admite. Deixemos de lado a origem da classificação, oriunda da divisão entre jacobinos e girondinos, que hoje perdeu o sentido e não passa de mera curiosidade histórica. Por esquerdas, entendo os que se proclamam esquerdistas. Se assim se proclamam, que o sejam. Mas que é a direita? Direita, hoje, é quem não aceita os dogmas das esquerdas. São as esquerdas que definem o que seja direita, algo assim como se um desafeto meu resolvesse batizar meu filho. Ora, não tenho razão alguma para aceitar definições ideológicas alheias. Pago a taxa até hoje, mas recuso o epíteto.

Há também os que me tacham de ateu, como se ser ateu fosse crime. De fato, sou ateu. Como não vivo em nenhum estado teocrático, não estou cometendo crime algum e devo confessar que não sinto este apodo como taxa. Pelo contrário, o assumo como comenda. Que vivam os ateus, estes seres estóicos que dispensam muletas para enfrentar a intempérie metafísica.

A propósito, direita no Brasil de hoje está assumindo um significado ainda mais restrito. Direitista, nestes exatos dias, é quem denuncia a azeitada rede de corrupção do PT, ainda que tal rede venha sendo denunciada por aliados do próprio. O conceito está assumindo novos contornos. Recentemente, fui incluído na "direita que alimenta a tropa do desbunde anaeróbico". Esta não entendi. Ça me dépasse.

O jornalismo, desde sempre, teve suas gralhas e falhas, equívocos de nomes e grafias erradas. Gralhas e falhas que subsistem no jornalismo eletrônico. Semana passada, cometi mais uma. Na última crônica, atribuí a Nelson Rodrigues a frase: "o mineiro só é solidário no câncer". E concluí, em função dos dois terroristas mineiros designados para a chefia da Casa Civil, que eram solidários também na estupidez.

Pelos mails que recebi, a crônica teve extensa circulação e os cumprimentos choveram na telinha de meu computador. Mas as Alterosas, mesmo endossando os termos da crônica, caíram em cima de mim. Reproduzo parte do protesto mais indignado:

"Excelente o artigo do jornalista! Só que as referências infelizes e desairosas - generalizando que "os mineiros são solidários também na estupidez" mexeu com minhas origens, de nossos ilustres e alguns também modestos antepassados, de minha família, de milhares de amigos e seus parentes nascidos nas ALTEROSAS MONTANHAS, ONDE PULSA UM CORAÇÃO DE OURO NUM PEITO DE FERRO de nossos coestaduanos!"

Sobrou também para o Nelson Rodrigues: "Peço, sob veemente protesto que ele se retrate das infelizes comparações, partindo ainda de outro suspeito filósofo de grandes aberrações, tão ao gosto dos esquerdinhas que endeusam todo aquele que, nos seus escritos, peças, e todos os meios, buscam desmoralizar a nossa "célula máter" - a família brasileira. Nelson Rodrigues pautou sua "magnífica" obra literária e teatral em explorar o lado podre da família, do relacionamento pais e filhos, expostos nos seus degradantes filmes e peças teatrais, para gozo dos ideólogos do marxismo-leninismo e gramscismo e outros "ismos" dessa desgraça ideologia que tanto mal nos tem feito e onde fincou os pés. Pobre dos cubanos! Minas não pode aceitar tamanha ofensa a seus filhos. Estupidez deve pautar os atos e escritos daquele jornalista. Apenas um deslize pode justificar palavras tão insensatas. (...) Não dá para segurar uma justa revolta face à infeliz comparação dos jornalistas Nelson Rodrigues e Janer Cristaldo, uai!" Segue-se um extenso ror de ilustres filhos da terra para comprovar as excelências das Gerais.
Perdão mineiros, perdão Nelson. (Que, aliás, foi um ferrenho adversário das esquerdas). "O mineiro só é solidário no câncer" é frase de Otto Lara Resende, mineiro da gema, de São João del-Rei. De tanto ler a frase em Nelson, julguei que fosse de sua autoria. Entre os milhares de leitores da crônica, havia felizmente uma leitora mais perspicaz, que me apontou o erro. Grato, leitora. Quanto à estupidez, eu me referia evidentemente aos dois terroristas mineiros, Zé Dirceu e Dilma Roussef.