¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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terça-feira, maio 10, 2005
 
O MÉRITO DA CARTILHA DO NILMÁRIO

Nos Diálogos de Platão, Crátilo considera que os nomes das coisas estão naturalmente relacionados com as coisas. As coisas nascem - ou são criadas, descobertas ou inventadas - e em seu ser habita, desde a origem, o inadequado nome que as assinala e distingue das demais. Já Hermógenes pensa que as palavras não são senão convenções estabelecidas pelos homens com o propósito de entender-se. As coisas aparecem ou se apresentam ao homem e este, defrontando-se com a coisa recém-nascida, a batiza.

O mesmo não pensa o PT. Para este partido, de DNA stalinista, o homem não tem mais o direito de dar nome às coisas. Está causando escândalo nestes dias a cartilha Politicamente Correto & Direitos Humanos, editada no ano passado pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que tem como titular o mineiro Nilmário Miranda. De autoria de um antigo militante comunista, o jornalista Antonio Carlos Queiroz, a cartilha bane do vocabulário, como inconvenientes, mais de noventa palavras. O documento é fruto de um convênio entre a Secretaria com a Fundação Universitária de Brasília, que resolveu terceirizar o serviço e o repassou ao jornalista. Quem dá nome às coisas agora não é o povo, mas o PT. Os dicionários e dicionaristas que se lixem.

Esta tendência a censurar dicionários não é nova no PT. Uma de suas deputadas, Lúcia Carvalho, não teve pejo algum em apresentar à Câmara Legislativa de Brasília um projeto que retirava dos dicionários, livros didáticos e obras literárias, todas as expressões por ela consideradas machistas. Pra começar, "paraíba mulher-macho', que desde há muito faz parte do cancioneiro nacional.

O insólito em tudo isso é que um cacoete ideológico, surgido nas universidades americanas nos anos 8O, seja endossado por antigos servidores de Moscou. Costumo afirmar que brasileiro adora copiar achados do Primeiro Mundo. Mas copia com dez ou mais anos de atraso, e sempre copia o pior. No caso, os mais lídimos representantes das esquerdas brasileiras, de um anti-americanismo ferrenho, foram buscar nos States a inspiração para seus pendores autoritários. Pois a linguagem PC - politicamente correta - é o stalinismo aplicado à linguagem. Stalinismo curiosamente oriundo de uma nação que se jacta de defender a liberdade. Não contentes de censurar livros, os neostalinistas querem censurar dicionários. Palavras que sempre estiveram na boca do povo - afinal, dela nasceram - passam de repente a constituir algo ilícito, ou no mínimo inconveniente, quando proferidas.

A cartilha do Nilmário não tem muitas novidades. Pretende, por exemplo, banir palavras como preto (inclusive na expressão "a coisa ficou preta"), baianada, aidético, cabeça-chata, sapatão. A palavra negro também tem suas restrições: "a maioria dos militantes do movimento negro prefere este termo a preto. Mas em certas situações as duas expressões podem ser ofensivas. Em outras, podem denotar carinho nos diminutivos neguinho ou minha preta". Em suma, se você disser negro acompanhado de um sorriso, talvez passe. Mais um pouco e o PT passa a regulamentar o sorriso.

Ora, há muito os jornais brasileiros evitam essas palavras. A linguagem PC infiltrou-se até na legislação. Chamar alguém de negro, mesmo que negro seja, hoje constitui crime. Há alguns anos, um negro foi preso em Brasília por chamar um negro... de negro. É cada vez mais freqüente - numa cópia servil da imprensa ianque - o uso de afrodescendentes para negros. Se você, leitor, é desses que adoram pautar sua linguagem pela moda, ao ver um amigo negro, não mais o chame de negrão. Mas de "meu caro afrodescendentão". Se for miudinho, "meu querido afrodescendentinho".

Preto de alma branca, nem pensar. É "um dos slogans mais terríveis da ideologia do branqueamento no país, que atribui valor máximo à raça branca e mínimo aos negros. Frase altamente racista e segregadora". Por analogia, a velha expressão popular "serviço de negro" muito menos. Mas falar em serviço de branco, quando você quer elogiar um trabalho, por enquanto não está proibido. Lapso do Queiroz. A levar-se a sério a famigerada cartilha, até a Bíblia teria de ser reescrita. Pois Sulamita é negra. Pior ainda: negra, mas formosa. Esse "mas" tem sido até hoje uma espinha na garganta dos ativistas negros.

Já baianada é mais complexo. Os paulistanos mais pudicos, que já hesitam em chamar alguém de nordestino, ao referir-se aos nordestinos, os chamam de baianos. Para São Paulo, acima do Rio de Janeiro todo mundo é baiano. O gentílico, neste caso, não é um pejorativo para baiano, e sim um eufemismo para nordestino. O "baiano ACM" pode, afinal ACM é do mal. Mas que nenhum jornalista ouse grafar "o baiano Jorge Amado". Está arriscando seu emprego, pois Amado é do bem. Na fronteira gaúcha, curiosamente, baianada era tentar montar o cavalo pelo lado errado.

Quanto à cabeça-chata, não é por acaso que os nordestinos assim são chamados. Eles têm a cabeça chata - que se vai fazer? - e já tive em mãos estudos acadêmicos que tentam explicar o fenômeno. O fato é que nenhum jornal ousaria hoje chamar um nordestino de cabeça-chata. Muito menos de baiano. Ou seja, Queiroz está chovendo no molhado. A imprensa que hoje se diverte com a cartilha há muito vem utilizando a linguagem PC. Os jornalistas estão fingindo indignação ante o excesso de zelo do Nilmário, mas há muito se entregaram à censura da língua.

Índio, de repente, virou palavrão. Como não tenho a raridade em mãos, não sei se o autor sugere algum substitutivo. Em todo caso, pra começar, seria necessário uma nova denominação para o 19 de abril, Dia do Índio. Isso sem falar na censura a toda poesia indianista, estudos históricos e sociológicos. Melhor chamá-los de selvagens? Ou selvagem - o que vive nas selvas - terá também virado palavrão?

Baitola, bicha, boiola e veado, muito menos. Nem mesmo homossexualismo é recomendável, "tem carga pejorativa ligada à crença de que a orientação homossexual seria uma doença, uma ideologia ou movimento político". Melhor homossexualidade, como se a mudança de prefixo mudasse algo na preferência dos homossexuais. Quanto à palavra veado, parágrafo único: por especial deferência, é de uso reservado à Presidência da República, quando quiser referir-se aos pelotenses.

Sobrou até para expressões inocentes, como "farinha do mesmo saco", que não tem nenhuma conotação racial ou ideológica. "Junto com expressões como todo político é ladrão, todo jornalista é mentiroso, os muçulmanos são terroristas, ilustra a falsidade e leviandade das generalizações apressadas, base de todos os preconceitos. O fato de haver políticos corruptos, jornalistas imprecisos e muçulmanos extremistas não significa que a totalidade desses segmentos mereça aquelas respectivas acusações". A verdade é que esta expressão tomou corpo nestes últimos dois anos, quando os petistas chegaram ao poder. Anátema seja!

Ocorre que o autor foi mais realista que o rei. Em seu afã de cassar palavras, compilou várias de muito apreço por parte do Supremo Apedeuta. Lula, talvez por precaução, mandou suspender a distribuição da cartilha que, com poucos meses de existência, já virou raridade bibliográfica. Os homens desmoralizam as palavras e depois sentem-se obrigados a cassá-las.

Intelectuais e comunicadores são unânimes em seu repúdio à cartilha. Sem pretender bancar o original, vejo nela uma virtude: o autor colocou a palavra "comunista" entre as politicamente incorretas. Sem talvez lembrar que o PT tem suas origens, entre outras, no PCB e no PC do B, partidos hoje legalizados e atuantes. Esta é a grande novidade da cartilha. Alvíssaras: o autor intuiu que comunista passou a ser palavrão. Mas como definir, doravante, nulidades como Luiz Carlos Prestes ou Oscar Niemeyer? Não será fácil encontrar um novo adjetivo.

Durante décadas, os comunistas, particularmente os comunistas brasileiros, encheram a boca com a palavrinha, como se ela designasse os eleitos pelo deus da História. Ser comunista era entender o universo, ter uma idéia exata para onde rumava a humanidade. E ai de quem não o fosse. Era olhado com um misto de desprezo e piedade, como alguém que nada entendia do mundo, muito menos de si mesmo. Durante todo o século passado, estes senhores tiveram o monopólio da arrogância e sempre se julgaram os redentores da humanidade.

Caiu então o Muro de Berlim. A União Soviética desmoronou. A Rússia reduziu-se à sua desimportância. Secou a fonte financiadora da propaganda, da guerrilha e dos assaltos ao poder. Até Cuba ficou órfã. A arrogância dos salvadores do mundo foi minguando. Os partidos comunistas de todos os países começaram a trocar de nome. A palavra que era bandeira virou palavrão. Aqui reside, a meu ver, o grande mérito da cartilha. O reconhecimento, da parte de um velho apparatchik, que comunista não mais é título que dignifica, mas insulto que fere. Longa é a jornada dos camaradas até o entendimento. Aleluia, companheiro!

Mas estupidez não tem fronteiras e esta é a primeira lição que aprende o homem que viaja. Não caia o leitor no engano de pensar que o PT brasileiro é a única instituição ridícula no mundo. Em solidariedade ao obscurantismo petista ergueram-se na Itália dois advogados de Treviso, que empunharam um artigo do Código Penal para denunciar o jornal Manifesto, por ter-se referido ao novo Papa, Bento XVI, como pastore tedesco. Ou seja, pastor alemão. Mas não é o papa o pastor da Igreja? E no caso, não é alemão o pastor?

Precisamos consultar os cassadores de palavras do PT.