¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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segunda-feira, fevereiro 28, 2005
 
SUA SANTIDADE E O FÓRUM



Num dos últimos bastiões das esquerdas tupiniquins, a revista Caros Amigos, lemos um emblemático artigo de Elaine Tavares, intitulado "A democracia agonizante". A articulista, considerando que os povos gestam novas formas de poder, faz um breve apanhado das restrições das esquerdas à idéia de democracia, expressas no último jamboree dos utópicos desvairados em Porto Alegre, que também atende pelo pomposo novo de Fórum Social Mundial. O conceito de democracia foi um tema dominante nos debates, e a jornalista arrola algumas opiniões das estrelas mais fulgentes do fórum.

Para José Saramago, está mais do que na hora de romper com essa falsa questão que coloca a democracia como santa de altar. É em nome dela que os Estados Unidos fazem a guerra, por exemplo, ou que o capital financeiro governa o mundo. "Não foram os povos que decidiram isso. Então, que democracia é essa?", inquiriu o escritor português. Para o professor peruano Aníbal Quijano, é preciso fazer nascer um outro tipo de conhecimento, nascido das práticas sociais. Segundo ele, a América Latina deve sair de seu eurocentrismo, criar outra forma de fazer ciência social e re-inventar o conceito de democracia que, hoje, nada mais é do que uma igualdade de desiguais. "Apenas 20% das seis bilhões de pessoas têm acesso aos bens produzidos no mundo. Isso é uma acumulação jamais vista".

O professor parece ainda não ter entendido que democracia é um sistema político e não um regime econômico.Com ele concordou Saramago que, dizendo-se um não-utopista, desancou a democracia alegando que dela ninguém mais espera milagres. Para ele, a democracia há tempos foi seqüestrada e amputada pelo capital financeiro que governa o mundo. Claro que jamais foi seqüestrada ou amputada pelas repúblicas democráticas (sic!) soviéticas.

Edgardo Lander, da Venezuela, também se coloca a favor de um novo padrão de conhecimento que não esse trazido pela modernidade, que significou conquista, escravidão, submissão, genocídio. Para ele, a democracia liberal e suas conquistas estão em franco declínio. O modelo social-democrata está fazendo água, a esfera pública, a liberdade de pensamento, os direitos conquistados, tudo se esvai. O controle dos meios de comunicação impede novas formas de pensar. "O modelo de democracia em vigor é o padrão de poder. Nega a diversidade da história, da cultura, da forma de ser e estar no mundo. A democracia precisa ser re-pensada na totalidade das operações de poder, inclusive nas relações individuais". Para Lander, claro que o regime comunista, que imperou no século passado, nada tem a ver com conquista, escravidão, submissão ou genocídio. Apesar dos cem milhões de mortos que produziu no decorrer da História.

James Petras também criticou a democracia burguesa afirmando que, nela, tudo está delimitado pelo poder financeiro. Há limites e políticas muito bem definidas para o poder eleitoral. Escolhe-se - e todos sabem como - o governante, mas o sistema não consulta o povo sobre as mudanças na previdência, a intervenção na Amazônia, ou sobre qualquer grande tema nacional. "Se a população passar do limite, o Estado burguês intervém. Por isso, só se pode derrotar o Estado se o povo se organizar". Como se nos regimes comunistas alguém consultasse o povo sobre qualquer mudança.

A jornalista de Caros Amigos, em seu estro poético, fala de novas liras que "dão seus primeiros acordes e propõem formas alternativas de decidir e viver em comunidade". Arrola como exemplo os novos zapatistas da região de Chiapas, México, onde a forma de exercer o poder passa pelas Juntas de Bom Governo. "Lá, as pessoas se reúnem em grupos de quatro, cinco, e colocam o tema em discussão até chegar a um consenso. Depois, vão para o grande grupo formar outros consensos. (...) Ninguém manda mais ou menos. Tudo é decidido em comunhão. Não passa pela eleição, por exemplo".

Para o representante chiapaneca no Fórum, "tudo o que queremos é mudar esse mundo. Sair dessa lógica capitalista, opressora". Outras formas decisórias em marcha para substituir a agonizante democracia seriam as proclamadas pela sedizente República Bolivariana da Venezuela, liderada pelo último guru das esquerdas do continente, o coronel Hugo Chávez. A constituição de 1998 instituiu os plebiscitos, nos quais o povo tem a chance de mudar tudo o que quiser. Desde o presidente (desde que não seja o presidente Hugo Chávez, é claro) até as decisões do legislativo, desde que não conflitem com as decisões do presidente Chávez, é claro.

No plano da organização comunitária, os Círculos Bolivarianos e as Missões também apresentam novas maneiras de exercício do poder que se explicitam como pequenos coletivos de democracia direta. A jornalista deve ser jovem e provavelmente nunca ouviu falar nos sovietes, afinal a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas já afundou há quatorze anos e este incomensurável lapso de tempo deve escapar à escassa memória da moça. Também seriam alternativas à democracia burguesa os trabalhadores bolivianos de El Alto, com suas gigantescas marchas e seus protestos, os cocaleiros, os piqueteiros argentinos, os indígenas do Equador, os camponeses do Paraguai, todas essas são experiências de novas formas organizativas e de reação ao mundo do pensamento único.

"Novas liras para novas conjunturas". A democracia liberal está nos seus estertores. Já não serve mais, conclui a jornalista anunciadora dos novos tempos. Até aí, tudo muito coerente com os propósitos do Fórum, pois para isto se reuniram os derrotados do século, para transudar seu ressentimento ante a vitória do mundo democrático com o desmoronamento da União Soviética na década passada. O que espanta e foge à coerência é ver um dos líderes do planetinha - que graças a um providencial traqueostomia nos poupará de suas bobagens nas próximas semanas - formar fileiras com os alucinados do Fórum. Trata-se, nada mais nada menos, de sua Santidade, o papa João Paulo II, que considera que a democracia não pode ser entendida como um valor em si, desligada da "lei de Deus".

Esta brilhante percepção, que revela um viés teocrático que João Paulo nunca conseguiu esconder - está no seu livro Memória e Identidade, lançado na semana passada em vários países, inclusive no Brasil. Para o papa, a permissividade moral - leia-se o direito de cada pessoa dispor de seu corpo para seu prazer - é um programa que conta com "enormes meios financeiros em escala mundial, impondo-se nos países em desenvolvimento. Face a tudo isso, é legítimo questionar se não estamos perante uma nova forma de totalitarismo, dolosamente velado sob as aparências de democracia".

De cambulhada, João Paulo se pergunta se o casamento entre homossexuais não seria motivado "por mais uma ideologia do mal, talvez mais astuciosa e encoberta" e sugere que a democracia possa embutir riscos muitas vezes ignorados. Para ele, a lei natural deve ser o limite para a lei do homem, e os legisladores, como Moisés, deveriam ser veículos das determinações de Deus. Em bom português: por lei natural o papa entende o que os dogmas eclesiásticos acham que seja lei natural. E que os estados contemporâneos deveriam reger-se pelas determinações de um personagem mítico de mais de 20 séculos atrás, cuja obra conhecida está longe de ser provada como de sua autoria.

Mas que tem a ver este potentado de Roma com a sexualidade humana? Em que tábuas ou pergaminhos está escrita esta tal de lei natural? Mesmo que estivesse escrita, que temos nós, homens do século XXI, a ver com ela? Mesmo agonizante, João Paulo ainda luta por um Estado teocrático.

"Quando um Parlamento autoriza a interrupção da gravidez", declara o papa, "comete uma grave prepotência contra um ser humano inocente. Os Parlamentos que aprovam e promulgam semelhantes leis devem estar cientes de terem extravasado as próprias competências, pondo-se em aberto conflito com a lei de Deus e com a lei natural". Ou seja, Sua Santidade considera-se o dono da verdade - e a partir de tal pretensão - julga que o mundo todo deve submeter-se a seu cetro. Como se todos os seres humanos cressem no deus cristão e tivessem de submeter-se à vontade soberana do Vaticano. Aiatolá algum pretenderia mais do que isso.

O papa ainda alerta que não se pode canonizar a democracia - colocá-la como santa no altar, como diria o companheiro Saramago - e diz que outras formas de governo, como aristocracia e monarquia, podem, em determinadas condições, servir para a realização do objetivo essencial do poder, isto é, o bem comum, respeitadas as "normas éticas fundamentais". Esqueceu de esclarecer que há monarquias e monarquias, e que as monarquias européias têm um parlamento que elabora leis segundo a vontade de seus eleitores.

Exceto a monarquia vaticana, onde só ele - Sua Santidade - tem poder de voto e ainda se pretende infalível. Diferença alguma da monarquia cubana. Não por acaso, há alguns anos Castro e João Paulo II mantiveram um afável tête-à-tête. À Sua Santidade agonizante, só posso desejar mais vida. Para que ainda possa participar do próximo Fórum Social Mundial e mostrar ao que vem, cerrando fileiras com os inimigos da democracia.