¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

domingo, fevereiro 27, 2005
 
DA INUTILIDADE DOS CURSOS DE LETRAS (II)


Sobre meu desencanto - Meu depoimento carrega o desencanto de quem perdeu boa parte de sua vida navegando pelas tais de Ciências Humanas. Estudei Filosofia na UFRGS, de 1965 a 1968. Discutimos, durante quatro anos, essa bosta de religião laica, o marxismo. Ou seja, foram quatro anos jogados ao vento. De minha passagem pela Filosofia me restou um ensinamento, o de que as diferentes visões de mundo se atropelam e se anulam com a passagem dos séculos. E só. Foi importante, eliminou em mim qualquer tentação de dogmatismo. Mas para chegar a essa conclusão, não precisava ficar com o traseiro pregado na universidade por quatro anos. Boas leituras de história me bastariam.

Fiz também o curso de Direito em Santa Maria. Mais cinco anos jogados ao lixo. Optei pelo jornalismo, em época em que não existia esta excrescência criada pela ditadura militar, os cursos de jornalismo. Desta opção não me arrependo, embora o jornalismo hoje seja mais ficção que tradução dos fatos. Mas não o aprendi na universidade. Em jornalismo, me formei nos bares e redações. Universidade não forma ninguém em jornalismo. É outro curso inútil: o professor de comunicações, que muitas vezes jamais pisou numa redação, ganha muito mais que o redator ou repórter que sofre a profissão. Sem falar que goza de estabilidade no emprego, sonho que jornalista algum ousa sonhar na empresa privada.

Viajei pelo mundo das Letras. Durante quatro anos, estudei Letras Francesas e Comparadas, na Université de la Sorbonne Nouvelle, em Paris. Só não foram mais quatro anos jogados ao vento porque o que menos fiz foi estudar literatura. Dediquei-me a pesquisar Paris, a França e a história deste século. De meus professores de literatura, de meu curso, não recebi nada, mas nada mesmo. Tive um professor de poesia francesa contemporânea que se chamava M. Décaudin. Eu vivia mordendo a língua para não incorrer em um ato falho e chamá-lo de M. Décadent. Tinha um projeto de tese em torno à literatura de Ernesto Sábato. Levei-o a bom termo por respeito a Sábato e ao Ministério de Cultura francês, que me concedera uma bolsa. Defendi minha tese, fui ator bem comportado durante toda a encenação. Mas tinha perfeita consciência de que tudo era farsa.

Para que serviu minha tese? Para mim, garantiu quatro anos de Paris. Para meu orientador, abriu novos rumos em suas pesquisas. Ele, que jamais ouvira falar de Sábato, acabou escrevendo um livro sobre o autor argentino. Mas e daí? Para Sábato, foi mais um título em sua fortuna literária. E só. Meu país não se tornou mais rico com minhas pesquisas, nem econômica nem espiritualmente. Muito menos a França ou a Argentina. Do ponto de vista da construção de uma sociedade, minha tese é uma peça perfeitamente inútil, descartável. Como aliás todas as teses literárias. Outra coisa é uma pesquisa sobre uma proteína mais barata, sobre uma vacina mais urgente, sobre um chip mais rápido. Estima-se em torno de 100 mil dólares ao ano a formação de um doutor. Logo, a França terá gastado uns 400 mil comigo. De minha parte, muito honrado. Mas para quê? Se analisarmos a questão a fundo, para nada.

Lecionei mais tarde Literatura Brasileira e Comparada na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), em Florianópolis, nos cursos de graduação e pós-graduação em Letras. Para isso também serviu minha tese, para dar-me de comer e beber por mais quatro anos. Foi o período mais inútil de minha vida, que só me rendeu uma hipertensão. Cingido a obrigações curriculares, tive de digredir sobre esse suposto movimento literário, o modernismo brasileiro, no fundo uma ficção criada pelos PhDeuses uspianos. Lecionava para alunos que só queriam um papelucho ao final do curso para aumentar seus proventos na função pública.

Durante quatro anos fui pago para realizar um trabalho rumo a nada. Como eram, são e continuam sendo pagos, para marchar na mesma direção, as dezenas de colegas que tive no colegiado e os milhares de professores de Letras do país todo.

Puta velha - Quem presta este depoimento não é portanto uma virgenzinha que olha espantada para a realidade de um bordel, mas uma puta velha que muito girou bolsinha nos corredores universitários. Se vejo as defesas de tese e concursos como farsas, é porque também participei delas e por isso sei do que estou falando.

Dezenas de professores foram, são e serão enviados ao exterior para mestrados e doutorados. Muitos cumprem seus compromissos. Mas não poucos voltam de mãos abanando e tudo fica por isso mesmo. No caso do curso de Letras, observei que os candidatos a bolsas no exterior eram, em sua quase totalidade, moças mal-amadas, em geral solteiras ou divorciadas, que partiam em busca de maridos ou similares. Ao final de alguns anos, as mal-baisées voltavam sem tese nem marido. Não sei se o mesmo fenômeno ocorrerá na UFRGS. Mas deveria ser capitulado como crime, na legislação sobre a função pública, usar dinheiro do contribuinte para fazer turismo sexual às margens do Sena ou do Tâmisa.

Quanto à crítica mais radical, que agora faço, me permito citar Chesterton: "só podemos conhecer uma catedral quando a olhamos de fora". O absurdo do ritmo de tartaruga dos cursos da área humanística me saltaram com força aos olhos quando passei a trabalhar com jornalismo eletrônico em São Paulo. A pesquisa que um professor achava difícil cumprir em cinco meses, um redator da Folha de São Paulo, por exemplo, tem de executá-la em cinco horas. E sem direito a errar.

Essa passagem da empresa pública para a privada, do emprego eterno para aquele sob a ameaça diária de um pontapé no traseiro, permite o contraste que evidencia o obsoletismo e a inutilidade de um curso de Letras. Se um professor de uma universidade pública fica quatro, cinco ou dez anos no estrangeiro para defender uma tese e volta de mãos vazias, nada acontece com ele. Não devolve o dinheiro público que lá despendeu nem perde seu emprego. Se um jornalista interpreta mal a declaração de um político - ou pior, se a interpreta com clareza excessiva - no dia seguinte pode estar no olho da rua.

O leitão e o cocho - Resumindo: os cursos de Letras constituem uma máquina autofágica, que se alimenta de si mesma. Professores de Letras formam professores de Letras que formarão professores de Letras, ad nauseam. Se a bicicleta pára, o ciclista cai. Loureiro Chaves ouviu o galo cantar, só não soube dizer onde. Intuiu a inutilidade dos cursos de Letras. Em um gesto de auto-defesa, excluiu a si mesmo do projeto do qual participou durante trinta anos. Foi cúmplice de todos os atos e fatos que levaram o curso a ser área morta. Agora acusa seus pares, como se suas mãos fossem imaculadas. Se levar a crítica mais a fundo, terá de constatar a inutilidade de seus ensaios, de sua carreira, de sua tese, de sua vida, tão socialmente improdutiva quanto o curso que critica. Se o curso de Letras da UFRGS se caracteriza, nas palavras do professor, por sua "absoluta inutilidade social", o mesmo pode se dizer de sua obra. Por que não estender, reitero, esta crítica à USP? Qual a utilidade social do curso de Letras da USP? A meu ver, a mesma de qualquer curso de Letras. Isto é, nenhuma.

Em meus dias de campo, tínhamos uma expressão para tal tipo de comportamento. Era o gesto do leitão mal-educado, que costumava virar o cocho onde comia.

----------
(Artigo publicado nos idos do século passado)