¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, julho 29, 2004
 
PORQUE CÁ ESTOU



Leitor me pergunta porque, tendo corrido tanto mundo, sempre acabei voltando para cá e aqui estou. A resposta é simples. Voltei para a mulher que adorava. Ela era funcionária pública. Se saísse, teria de largar uma carreira na qual já estava inserida. Eu não queria viver longe dela, de forma alguma. Não há país que valha uma mulher que adoramos. Havia a chance malandra, da qual muito estrangeiro se aproveita, a de casar com - ou simplesmente engravidar - uma cidadã do país. Essa chance eu a tive. Mas desonestidade não rima comigo. Além disso, não trocaria minha Baixinha nem por dez Gretas Garbos em plena adolescência. Foi feliz o dia em que aterrissei pela primeira vez em Arlanda, sob um céu plúmbeo de dezembro. Às três ou quatro da tarde já era noite cerrada e um lençol imenso de neve a iluminava. Me parecia ter descido em Plutão e isto me fazia bem. Mas feliz mesmo foi o dia em desembarquei do Eugenio C, sob o sol escaldante do Rio. Lá estava ela, chorando grudada às grades do portão do cais. Mal o portão se abriu, nos jogamos nos braços um do outro e o Brasil - de onde partira com asco - se tornou subitamente cheio de significado.

A resposta seria simples demais se se resumisse a isso. Lá pelas tantas, na primeira viagem, chegou o momento de lavar pratos. Ora, se eu não lavava pratos nem em casa, não seria para suecos que eu iria lavá-los. Nunca tive vocação para imigrante de segunda categoria. Em Estocolmo, sempre me perguntavam em que diska eu trabalhava. (Att diska é lavar pratos). Ora, eu não lavava prato nenhum. Estava lá para conhecer o país e a língua. Buscava cultura, paisagens novas, sexo, queria conhecer o que era então tido como uma utopia realizável. Não buscava as coroas que eram pagas à mão-de-obra imigrante.

No Exterior, por melhor que você esteja situado, mesmo tendo adquirido passaporte do país, sempre será um cidadão de segunda categoria. Se você critica o país em que vive, lá vem a pergunta: e por que não voltas para o teu? Viesse eu do Congo ou de Burkina-Fasso, a resposta seria simples: porque meu país é um fim de mundo. Não é o caso do Brasil. Até os exilados pós-69 sentiram isto. Juravam que só voltariam de metralhadora em punho e para tomar o poder. Mal Figueiredo decretou a anistia, desembarcaram chorando no Galeão ou Cumbica.

Ultimamente, quando minha mulher estava prestes a se aposentar, voltamos a pensar na idéia de morar por lá. Chegamos a ver apartamentos em Paris e Madri. Mas o preço do metro quadrado terminou com qualquer veleidade. Em Paris, por exemplo, o espaço que tenho aqui seria reduzido a um terço, talvez um quarto. Não daria nem pra instalar a biblioteca. Mesmo a Espanha está muito cara para residir. Portugal, depois que virou Europa, também. Nórdicos e alemães, fascinados com as pechinchas imobiliárias de Portugal (pechincha para quem recebe em moeda forte), elevaram excessivamente o preço do metro quadrado. Recebesse eu em moeda forte, tudo bem. Mas não é o caso. Melhor então ficar por aqui. Volto lá como turista e não tenho os dissabores do cidadão que lá habita. Os dilemas do turista consistem em escolher o bar ou restaurante em que jantar, o filme ou espetáculo que vai curtir, a cidade onde vai flanar. Já quem lá vive tem preocupações mais chãs, tipo renovação de visto, impostos, taxas, enfim, essas coisas que nos chateiam em qualquer lugar do mundo.

Mudar-se para o Exterior dependendo de moeda instável de Terceiro Mundo é um risco muito grande. Pode ocorrer que, do dia para a noite, você se veja sem um vintém. Em meus dias de correspondente em Paris, o cruzeiro teve duas desvalorizações de 30%. Em poucos meses, meu salário se reduziu em 60 %. Não fosse a bolsa do Ministério da Cultura francês, estaria de novo ameaçado de lavar pratos. O apedeuta que nos governa tem falado muito em auto-estima nos últimos dias. Auto-estima seria ter uma moeda nacional sólida e aceita em qualquer quadrante. O dia em que o Brasil chegar lá, até pensaria em residir naquelas cidades que adoro. Mas isto não será para meus dias. Suponho que nem mesmo para os de meus netos, se netos houver. Os patrioteiros que me desculpem, mas não pertenço à estirpe dos que imaginam que o Brasil um dia será melhor.

Fosse milionário, há muito estaria lá. Não entendo estes senhores que compram apartamentos aqui em São Paulo por cinco milhões de dólares. Com esse patrimônio, eu estaria em Paris ou Madri e ainda comprava um chalezinho nas Ilhas Canárias e outro nas gregas para receber os amigos. Para os curtos de grana, enviaria passagens para visitar-me. Com direito a todos os vinhos, queijos e patês. Uma das vantagens de ser rico é a possibilidade de ser generoso. Infelizmente, para meus amigos, não sou rico.

segunda-feira, julho 26, 2004
 
À JANELA

(primeiro texto literário, escrito talvez em 67, 68)
Com as mulheres aprendi a ser homem. Surpreendeu-me, de início, a descoberta. Mas, pensando bem, esta é a única aprendizagem possível. Não são as mulheres e seus caprichos os critérios últimos de nossas ações, angústias e atitudes éticas? Não é com a mulher que aprendemos a ser ternos e amantes, impiedosos e cruéis? Quando o filósofo disse ser o homem a medida de todas as coisas, generalizava, é claro. Fosse mais específico, estaria mais próximo da verdade.

Viajar (o ato físico, o locomover-se) torna-me lúcido, as idéias resvalam ágeis e únicas. Por mais que me inquira, não encontro razões precisas. Aventuro hipóteses: talvez por estar acompanhado e em verdade só. Ou quem sabe por sentir-me rasgando a noite - nunca viajo quando dia - afastando-me a cada minuto dos lugares que habito, numa espécie de desmama, de corte umbelical. E sei que qualquer dia não mais voltarei...

A cidade, amarelecida pelo sol que morre, vai se tornando cada vez menos densa, menos populosa, mais subúrbio. Os passageiros escondem-se em suas golas, afundam seus corpos tensos nas poltronas, como se isto os aquecesse nesta melancólica tarde de julho. O dia faz-se penumbra, a penumbra faz-se noite e na noite os homens calam. Amo este silêncio ruidoso do viajar.

O vento gelado nas faces, os cabelos esvoaçantes, outra possibilidade para explicar meu estado de espírito. Sinto nitidamente os contornos de meu rosto, o vento desenha no espaço as linhas além das quais não existo. Sempre compro um lugar à janela e, por frio que esteja, conservo-a aberta.
- O senhor não se importaria de fechar a janela?

Pois não, cavalheiro, vosso pedido fazia-se esperar. Desde há muito ouço esta pergunta, quase já sei exatamente a temperatura suportável por vossas peles. Isso depende também muito de temperamento. Uma pessoa tímida suporta mais frio que um passageiro de índole agressiva, por exemplo. O cavalheiro estará no rol dos últimos, pois não? Mas não vou cerrá-la de todo, preciso mais da brisa que você de calor. A janela fechada sufoca e o frio, no máximo, enregela. De modo que...

Luzes sonolentas surgem na noite. Multiplicam-se, diferenciam-se, ferem meus olhos, passam e somem na distância. Uma cidade sem nome dorme tranqüila. Quadrúpedes semi-calvos e barrigudos abrigam-se desajeitadamente sobre Alvos Lençóis, no Recesso do Lar, o Esteio, após cumprir suas obrigações de estado com a Rainha. Milhares de seres sonham pesadelos mais sinceros que suas ilusões de despertos. Jamais saberão da passagem deste proscrito, tampouco dos juízos que faço. Já vos vi em outros lugares, em circunstâncias por vezes irônicas. Ides às praias, substituir vossa flácida e incolor epiderme. E código algum legisla sobre esta criminosa proximidade entre mar e mortos.

E mais me contraem o sorriso suas ambições antropocêntricas. Três bilhões de centros do universo. "Nossa meta é o homem". Já ouvi isso de louvados e ilustres humanistas e também de vendedores de enciclopédias. "Ama teu próximo como a ti mesmo", e seja anátema não aceitar este slogan fóssil, síntese de vinte séculos de mórbida cultura.

Mas... será vida o vagido destes vermes, cujo engatinhar um incomensurável universo ignora? Como, cavalheiro? Ah, sim, a janela. Mas como sois mesquinho, interrompendo minhas íntimas reflexões.

Um troglodita em plena urbe, assim me sinto. Parece-me existirem algumas diferenças psicológicas entre um ser cujo leito foi na infância a grama, e teve por lençóis o orvalho e o luar gelados, e outros que nasceram no asfalto, vivendo em escuros e sufocantes cubículos. Para estes, a claustrofobia é doença. Cães uivando sem razões que eu saiba, ruídos surdos de dentes bovinos triturando a grama, que só ouço se colado ao chão, grilos bordando o silêncio, estrelas cuja visão destrói quaisquer ambições mais altas, eis meu universo mais primeiro, mais bem guardado, e agora, o mais distante. Existirá algum significado nestes milênios de cultura, que tiraram um animal de seu ambiente de magia, para torná-lo um ser frágil, cultural e doente? Claustrofobia, cavalheiro, é saúde.

Outra cidade. De novo, seres tranqüilos, porque inconscientes. Mesmo despertos, não têm angústias e lhes são absurdas e doentias as torturas que me impinjo. Sempre tranqüilos, é incrível, e eu os invejo. Mas não consigo sê-lo. Já saindo, nos subúrbios, uma luzinha vermelha pisca na porta de uma casa onde ainda existem sons. É possível que lá dentro um farrapo de mulher, exausta de sua absurda faina diária, sabiamente olhe o vácuo. Se o faz, é minha irmã. E não saberá, mesmo ouvindo os ruídos que me acompanham, que passei a poucos metros de sua lúgubre morada, e confraternizei com seu desespero silente.

Embaça-se o vidro do arfar das bestas. Também dormem, o próprio motorista talvez esteja dormindo. Subrepticiamente, abro um bocado a janela. E respiro a terra, a noite e os pastos que ela cobre.

Não tenho tempo para amar-vos. Minha carne débil e branca (vossas cidades destruíram sua antiga cor e rijeza e sua docilidade a meus ímpetos) atesta a marcha implacável de retorno ao húmus. Dêem-me a vida eterna, e amar-vos-ei nas horas vagas. Talvez assim até mesmo teça um poema otimista à espécie. Esta ternura irônica que ainda em mim resta, não se origina de vossos compêndios ou ideais, mas dos lamentos frágeis que ouvi de vossas fêmeas insaciadas. No burilamento de meu espírito rude e áspero, a mulher ocupa um lugar cuja importância me intriga.

Aos 15, eu as temia e amava: medo e fascínio do desconhecido. Aos 20, amei-as: acabou-se o mistério. Entreguei-me, mostrei-me qual era, fiz-me vulnerável e ao perdê-las, sofri por tal ingenuidade. Hoje, só conhecem meus gestos exteriores. Apresento-lhes mil faces, deixo-as confusas, conservo meu ego perfeitamente camuflado, faço-as chorar e seu apego à dor me comove. Desta comoção, brota minha quente simpatia por certos seres humanos. Que se extingue, porém, quando reflito sobre a nebulosa de Andrômeda, por exemplo.

O próprio ato amoroso tornou-se-me algo dorido. Ao fazer amor, preciso sair de mim mesmo, estabeleço uma ponte até outrem. Essa concessão machuca-me quase fisicamente.

- A janela, por favor, meu filho está gripado.

Perdão, senhor, ignorava que esse apêndice vivo que sempre carregais em vossas viagens fora atacado por este inquietante e desconhecido vírus. Já fecho a janela, não serei descortês com meus companheiros de viagem. Devo confessar porém que o único motivo que me impede a paternidade é ver-vos carregados com vossas crias, quais membros aleijados de vossos próprios corpos, que não conseguis comandar.

Cerro a janela. No vidro, os contornos difusos de meus traços. Mergulho o rosto no calor ambiente. Mas nem assim adormeço.

Os termos de vosso contrato não me satisfazem. É claro que renuncio às vantagens que me seriam outorgadas. Por algumas, lamento. Mas, no cômputo total, que falta de perspicácia tendes!

Luz já quase dilucular. Vontade de noite, desejos de não chegar.





quinta-feira, julho 22, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXII)
 
 
 
Jornalista, o autor não precisou de lupa para ver que havia uma só imprensa no mundo soviético:

Na URSS nunca existem duas opiniões a respeito de um mesmo fato ou acontecimento, porque o direito de pensar e opinar é prerrogativa apenas das elites diri­gentes. O governo pensa prodigiosamente por 200 milhões de cabeças, obedientes e sub­missas dentro das fronteiras da contraditória democracia do proletariado. (...) As rotativas dessa poderosa usina geradora do pensamento comunista rodam ininterruptamente, dia e noite, para alimentar uma das mais fantásticas organizações de propaganda mundial de que se tem notícia. Essa verdadeira enxurrada de literatura marxista inunda os pontos mais re­motos da terra e representa a persistente contribuição de Moscou aos seus fiéis, para as tarefas de catequese e proseletismo do proletariado universal. São milhares de toneladas de papel e tinta despejadas mensalmente na garganta anônima das grandes capitais do mundo, numa batalha obsedante pela arregimentação dos rebanhos humanos extraviados na voragem dos conflitos sociais e econômicos do nosso tempo.

Jorge Amado, "ruidoso camelô do marxismo", como diz Loureiro, participa desta comitiva e sabe disto muito bem. Em uma visita à União dos Escritores Soviéticos, diz a Loureiro: "Na Rússia Soviética todo o trabalho intelectual é regiamente pago. As tiragens são geralmente elevadas e os escritores recebem grandes somas em direitos autorais. Há poetas que podem viver como milionários."

Amado sabe o que quer. Loureiro prefere contar o que vê:

A União dos Escritores funciona como um Vaticano para a moderna literatura so­viética. O julgamento das obras a serem lançadas obedece a um critério estreito e sectário de crítica literária. Esta função é exercida por um conselho reunido em assembléia, que discute os novos livros e sobre eles firma a opinião oficial da sociedade. A exegese não se restringe aos aspectos literários ou artísticos da obra julgada, senão que abrange com particular severidade o seu conteúdo filosófico, que deve estar em harmonia com os con­ceitos da "realidade socialista" e guardar absoluta fidelidade aos princípios ideológicos da doutrina marxista. Se o livro apresentar méritos do ponto de vista dessa moral conven­cionada, se resistir ao crivo desse teste de eliminatória, então passará por um rigoroso trabalho de equipe dentro dos órgãos técnicos da União, podendo vir a transformar-se num legítimo best-seller, com tiragens astronômicas de 2 a 3 milhões de exemplares. E o seu modesto e obscuro autor poderá ser um nouveau riche da literatura e será festejado e exal­tado e terminará ganhando o cobiçado Prêmio Stalin.

O que explica a fortuna dos Amados e Nerudas da vida, ambos detentores do Prêmio Stalin, suas inúmeras traduções e tiragens milionárias, às custas da opressão, massacre e assassinato de milhões de seres humanos. O relato de viagens de Loureiro, um dos raros a intuir a essência do regime so­viético, escassamente mereceu uma segunda edição.

Falar em comunistas gaúchos e não citar Luís Carlos Prestes é ignorar o embuste maior que Porto Alegre já produziu. Embalado pelas proezas de uma coluna absurda, que se tornou famosa por suas "gloriosas" retiradas, ao refugiar-se nas margens do Prata acabou sendo contaminado pela mosca azul do poder. Treinado em Moscou, veio a mando do Kremlin fazer a "revolução" no Brasil. Deu no que deu: uma intentona ridícula e sangrenta, liderada por desvairados que de Brasil pouco ou nada conheciam. Preso e derrotado, acabou morando vários anos em Moscou. Cego e teimoso, em todo esse tempo não conseguiu ver o que Loureiro constatou em apenas dois meses. Morreu em odor de stalinismo. E ainda hoje há quem queira erguer-lhe monumentos.

Uma estranha patologia contaminou o final de século em Porto Alegre. Por todas as partes do mundo, as sociedades derrubavam mitos, monumentos, símbolos de tiranias passadas. Parece que a peste se entranhou de tal forma na universidade e nas instituições culturais da capital gaúcha que, enquanto a humanidade avança - para a frente, como é normal - a intelectuália do Portinho vira as costas para o futuro e fica acariciando um baú repleto de coisas mortas.

 


segunda-feira, julho 19, 2004
 
DORMIR E RIR
 
Ney Messias
 
 
Conceição Porto Leite foi fotografada, no seu melhor sorriso, pela objetiva do repórter. Não pertence a nenhum trio vocal; não é artista de televisão; nunca escreveu certamente um poema; se falarem para ela de Kant, Hegel ou Marcuse, ficará olhando intrigada para o ar, tentando descobrir onde é que eles têm o seu boteco. Conceição, segundo o repórter, chegou de São Gabriel há uma semana. Não tendo, em parte alguma, parentes ou conhecidos, passa os dias e as noites nos bancos da Estação rodoviária. A polícia já a botou para fora de lá, mas ela volta sempre. Ninguém sabe onde ela come, e todos dizem que não incomoda ninguém: quando acorda fica o tempo todo rindo; depois cansa e dorme novamente. Deve comer nalgum portal, tranqüilamente, a dádiva de umas sobras que o lixo comeria com a enorme boca dos latões. A sucessão de sono e riso, sobre os bancos duros da Estação Rodoviária, mostra que Conceição é uma mulher ocupada; não há melhor ocupação, nesta terra convulsa, em que tanto se canta, em que tanto se mata, do que dormir e acordar sorrindo, os dois momentos mais genuínos da graça da contemplação.
 
O grande momento do homem, segundo o mito, foi o do sono imposto a Adão pelo Criador, para lhe tirar a costela de que fez Eva: se não fosse o sono adâmico, que os anestesiologistas querem que seja a primeira forma de anestesia com fins operatórios, Conceição não estaria ali na sua improvisada cama na rodoviária. Ela é a mulher, linha multiplicada de milhões de Evas que surgiram da costela do Adão solitário, para que houvesse a seu lado uma companhia. Ninguém duvida que, ao acordar vendo a primeira mulher, o primeiro homem tenha esboçado o sorriso inicial do amor, filho do que enxergou nos lábios de Eva: pois a primeira mulher, vendo-se mulher, não podia deixar de sorrir, porque era a festa nascente, a fonte da canção, a rima de todos os versos, o ritmo do primeiro poema e a secreta alegria de ser fecunda como a terra, mil vezes assolada pelos temporais, trezentas mil vezes calcinada pelo sol, bilhões de vezes devastada pelos invernos, e outras tantas vezes fecundada para verdejar na gargalhada dos galhos, para tingir de flores a estrada dos ventos e para estourar na oferta dos frutos. Conceição dorme, e quando acorda ri. Pode ser feia ou bela, jovem ou velha, valente ou medrosa. Conceição pode comer o refugo de algum almoço, ou a varredura de um jantar.
 
Seu banquete solitário, devorado em pé, na soleira de uma vivenda, ou no corredor de um edifício, não é uma humilhação: é um momento ritual subterrâneo, passageiro, que precede o sono sobre o banco da Estação Rodoviária; o sono abandonado de quem dorme na graça de uma liberdade que não está no leito convencional dos quartos de dormir; o sono que é um vôo para o astro do riso, para a bem-aventurança dessa festa muscular da face que se entrega ao mundo aberta e receptiva como uma abreviatura do júbilo celeste. Dormir e sorrir é o que fazem os pássaros, que mergulham, com o sol, na escuridão das noites, para trazerem a madrugada no riso da garganta e na gargalhada inquieta das asas que tecem pelo espaço a velocidade das fugas.
 
Talvez já tenham arranjado para Conceição uma casa, uma cama e uma janela. Em um asilo, ou na furna encantada de um salão de loucos. Não importa: lá onde estiver, Conceição dormirá, acordará para rir e quando ficar cansada do riso, dormirá de novo, o que não deixa de ser (e só os insones sabem) uma forma profunda, secreta e misteriosa de continuar rindo. Não inventei Conceição. O repórter a descobriu. Mas gosto de pensar que ela continuará sempre ocupada em dormir e rir, as mais sérias ocupações que alguém pode ter para não ter preocupações, que são o objeto trágico da Economia Política.   
 

quinta-feira, julho 15, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXI)


Entre os que escrevem, salvo engano, além deste que vos irrita, só um outro jornalista gaúcho teve topete para denunciar a peste. (Excluo Dom Vicente Scherer, príncipe da Igreja que combatia o marxismo em nome de uma visão medieval de mundo). Vejamos algumas observações deste jornalista sobre o mundo soviético:

Sem qualquer exagero, pode-se dizer que o sistema de granjas coletivas, os chamados kolkhoses, em linhas gerais, significam o produto mais acabado da transposição evolutiva, para a esfera do trabalho agrícola, do mesmo regime aplastrante de exploração do braço trabalhador que impera nas fábricas soviéticas. (...) Pois o que realmente existe na URSS, em matéria de agricultura coletivizada, analisado friamente, sem os antolhos da propaganda comunista, fica reduzido apenas ao azorrague dum contrato leonino, imposto aos camponeses com o mesmo espirito desprezível de rapina que definia o regime feudalista, no qual os donos da terra eram também os senhores absolutos de todos os destinos. A diferença - se isto é diferença - é que, na União Soviética, o único senhor feudal de tierras y haciendas é o próprio Estado, cujo poder e riqueza estão tristemente alicerçados na miséria e na escravidão de imensas legiões de trabalhadores, espoliados nos seus mais elementares direitos e aspirações por uma societas sceleris de oportunistas e charlatães. Ao infeliz mujik que vivia confinado na solidão da isba, vítima da exploração desapiedada do pope e do paizinho czarista, sucedeu o kolkhoziano das granjas coletivas, cruelmente explorado pelos novos potentados do superfabuloso império dos sovietes. A exploração e a prepotência não mudam de nome apenas porque mudaram seus fautores. No caso da União Soviética, a verdade decepcionante é que a opressão e a violência contra a criatura humana jamais poderão atingir aos extremos limites de aviltamento e degradação que o Estado conseguiu impor em pouco mais de 30 anos de experiência bolchevista.

Propositadamente, omiti nome do autor e data destas afirmações. Continuasse a omitir estes dados, elas seriam absolutamente contemporâneas, e mesmo velhos stalinistas como Jürgen Habermas ou Cornelius Castoriadis as assinariam embaixo, com a solenidade de quem acaba de descobrir a América. Acontece que elas foram publicadas em 1954, quando ainda um Jorge Amado acreditava em Stalin, oito anos antes das revelações de Osvaldo Peralva. Foram publicadas no mesmo ano em que Sartre, ao voltar da União Soviética, dava entrevista ao Libération alertando que a França, caso não mudasse de rumos, em cinco anos, no mais tardar, seria ultrapassada pela URSS. A única mudança de rumos, evidentemente, era seguir o caminho do socialismo. As citações supra estão em A Sombra do Kremlin, de Orlando Loureiro, cria de Santa Cruz do Sul. O livro foi editado pela Globo e suas reflexões são decorrentes de uma viagem à ex-União Soviética, nos meses de dezembro de 1952 e janeiro de 1953, ou seja, antes da morte do Paizinho dos Povos. Sartre fez escola. Loureiro, inimigos.

A viagem foi logo após um Congresso dos Povos pela Paz, em Viena, uma dessas reuniões em que os fiéis discípulos de Stalin pregavam a guerra. Neste encontro, entre outras cortesãs internacionais, rodavam a baiana Sartre, Jorge Amado, Pablo Neruda, Louis Aragon. De Viena, Loureiro é selecionado para ir a Moscou. Tem como companheira de comitiva, entre outras personalidades, Maria Della Costa, o que explica em boa parte sua carreira no Brasil. Ela viu de perto a tirania e silenciou. Palmas para a atriz. O mesmo não ocorreu com Loureiro.

quarta-feira, julho 14, 2004
 
O CONSTRUTOR DE MISTÉRIOS

Ney Messias*



Há grupos de trabalho investigando por todos os lados. Mas tudo que investigam diz respeito a bens vitais: a carne, o leite, o vestuário, as estradas, os viadutos. Se me perguntassem o que é que um grupo de trabalho deveria investigar com prioridade absoluta, responderia sem hesitar: a maneira mais fácil e urgente de construir mistérios. O grande mal do mundo é a ausência sistemática do misterioso, e a mania demasiadamente científica de desmanchar tudo aquilo que ainda apresenta uma face misteriosa. Claro que o grande sentido da vida é dado pelo mistério da decifração: não existe trabalho que não seja, em certo sentido, a procura da chave de uma charada. Pois se a vida é uma constante decifração do mistério, tão importante é o próprio ato de decifrar como a existência da coisa misteriosa.

Por isso os viventes estão divididos em duas espécies, os que decifram mistérios e os que criam mistérios. O grupo dos primeiros está aumentando, e diminuindo a falange dos segundos. Por isso estamos constantemente nos aborrecendo, e tentando, sobre os destroços dos mistérios destruídos, erguer outros para a nossa fome especial de incógnitas. Acreditamos nos discos voadores, na serpente do lago Ness e no Iéti, aquele abominável homem das neves, por absoluta necessidade de ter um mistério à disposição das nossas almas, um mistério que valorize a plana e tediosa sucessão de horas que nos consomem e dos bifes que consumimos.

Penso que haverá um dia de generalizar-se o uso da mescalina, da maconha e outros alucinógenos exatamente porque, com essas drogas, podemos penetrar em mundos desconhecidos e indecifráveis.

Não é nada difícil criar mistérios. Descobri isso quando era muito menino, ainda na época em que as crianças furtam os doces do armário misterioso da varanda. Foi assim: naquela época remota, e não de muitas abundâncias, abriram em minha casa uma lata de compota de abacaxi. Por qualquer motivo o doce ficou na própria lata, à espera da hora da janta. Quando foram servi-lo à noite, com espanto verificaram que a caldas toda tinha desaparecido, o abacaxi estava seco. Passei a escutar, então, as teorias mais desencontradas a respeito do fenômeno. Uma criada que tinha pavores noturnos, ligados sempre aos vampiros, levantou a hipótese de um animal desses ter sugado a calda. Minha mãe pensava que o suco tinha evaporado com o calor. Uma prima levantou a teorias, mais complexa, segundo a qual,em contato com o ar, o abacaxi mesmo se punha a sugar a sua própria calda, teoria que grangeou alguns adeptos, embora fosse evidente que a compota estava seca de verdade. E eu, que havia bebido de um sorvo só aquela calda, fiquei a assistir a cópia de teorias, aquela soma fabulosa de filosofias a respeito do fato de ter secado uma compota de abacaxi. Nunca esqueci o episódio, e é por isso que sei o quanto não é difícil criar mistérios, e o quanto é fácil destruí-los: bastava que eu dissesse que havias bebido a calda para destruir a graça daquela história.

E nisso que penso quando leio que o Chanceler da Cúria Metropolitana da Guanabara, cônego Castelo Branco, falando da substituição da tradicional hóstia pela broa, declarou reconhecer que as modificações introduzidas na missa irão a princípio chocar os católicos... mas "por outro lado, a Igreja conseguirá tirar do povo a impressão de mistério sobre seus ritos tradicionais". É bem assim que ele diz, não lamentando, mas gabando o afinco com que se põe a Igreja a espancar as brumas que coroam o seu lago de mistérios. Não tenho nada com isso. Apenas sorrio de quem se gaba de esfacelar mistérios, tanto mais quanto o que os esfacela é o mesmo que os deve guardar e preservar. Se lhe pudesse dizer pessoalmente alguma coisa diria que o único momento em que me senti sacerdote, e criador, foi aquele em que, menino, bebi às escondidas a calda de uma compota de abacaxi.

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* Ney Messias foi um dos mais brilhantes cronistas que o Brasil já teve. Como não participava de igrejas literárias ou ideológicas, morreu praticamente desconhecido, em Porto Alegre, em 1970. Boa parte das crônicas escritas enquanto agonizava
foram por mim compiladas na antologia O Construtor de Mistérios, hoje só encontradiça em sebos.

terça-feira, julho 13, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XX)



Em 1962, Osvaldo Peralva, ex-apparatchik do Kominform em Bucareste, lança O Retrato. Peralva conhecia por dentro a máquina de mentiras do PCUS e a revelou tal como era. Ninguém acreditou. Mais recentemente, dois escritores não pouparam o malho nos comunistas. Na área do ensaísmo, Leo Gilson Ribeiro, com O Continente Submerso, anatematizado pela intelligentsia nacional. No jornalismo quotidiano, o genial Nelson Rodrigues. Graças a seu teatro, Nelson conseguia manter-se à tona no mundo das comunicações. Como desmontava a hipocrisia da então chamada classe burguesa, louvado era. Suas crônicas, o melhor do Nelson, sempre foram vistas como seu lado doentio.

No Rio Grande do Sul, desconheço ensaísta que tenha estudado a fundo a influência marxista na cultura gaúcha. No entanto, ela foi forte. Ao lado de um escritor de porte como Dyonélio Machado, temos expressões menores como Lila Ripoll, Laci Osório, Ivan Pedro de Martins, Edith Hervé, Isaac Axelrud, Otto Alcides Ohlweiler, Juvenal Jacinto de Souza, Josué Guimarães. Mais para nossos dias, aí estão Voltaire Schilling, Marco Aurélio Garcia, Luís Pilla Vares, Tarso Genro et caterva. Com a mania que têm os stalinistas de erguer monumentos a si próprios, estes últimos já devem estar planejando futuros bustos, ruas ou fundações com seus nomes. Você já imaginou a desgraça de ver um dia um seu neto marcando encontro na rua Pilla Vares, esquina Tarso Genro?

Estes fatos, que até as pedras da Rua da Praia conheciam, não podiam ser comentados. Ai de quem dissesse em público que estes notórios comunistas eram comunistas. Seria expulso de todos os círculos e proibido nas redações de jornais. Sem falar que portaria pelo resto de seus dias a pecha de delator. Verdade que João Batista Marçal, em Os Comunistas Gaúchos, tentou apanhar o touro pelas guampas. Deu-se mal. Jornalista interiorano, deslumbrado com a ideologia vigente na capital, tentou erguer pedestais a quem só fez por merecer a famosa lata de lixo da História.

Entre estes ilustres equivocados, há um que sempre recordo com carinho. É o Dyonélio. Conhecendo o homem de perto como o conheci, é difícil entender como endossou, durante toda sua vida, o embuste do século. Quando tentava extrair-lhe alguma coisa, o que pensava de Stalin, dos gulags, Dyonélio tirava o corpo fora: "não quero dar argumentos para eles". Preferia falar-me de coisas mais antigas. Dispunha uma Bíblia sobre um atril, apanhava um tomo de Renan e me passava sua interpretação de cada versículo. Atitude idêntica tomou em relação à sua obra. Entregou o Naziazeno (seu personagem mais forte, um pobre coitado torturado pela urgência de pagar um litro de leite) à sua própria sorte e mergulhou na Grécia e Egito de antes de Cristo com tal determinação que chegou a estudar grego e o regime das cheias do Nilo para estabelecer a geografia de seus personagens. Escreveu Os Deuses Econômicos. Para mim não resta dúvida alguma: temeroso de ver seu sonho despedaçado pela truculência real do socialismo, Dyonélio abandonou seu tempo e fugiu a trote largo rumo aos antigos.

Quanto aos demais escritores gaúchos que desenvolveram obra, perdoem-me os cultores de ídolos: de Erico Verissimo a Moacyr Scliar, todos foram omissos na denúncia da peste que contaminou o século. Verissimo constitui um problema para minha geração. Afável, receptivo, carinhoso com todo jovem que fosse visitá-lo, torna-se imune a qualquer crítica. Nélson Rodrigues, que estava longe de sua aura, escreveu: "Nunca me esqueço de Erico Verissimo. Tem tão escassa formação política que é capaz de pensar que somos governados ainda por Pedro II. E o nosso Erico achou-se na obrigação de vir a público meter o pau nos Estados Unidos. No Brasil, o intelectual tem que xingar a grande nação para sobreviver".

Denunciar o regime soviético, na época, era perder espaço nas universidades e na imprensa nacional. Esta sabotagem, eu a vivi na própria pele. Perdi empregos, tribunas, amigos e até mesmo mulheres, por sempre ter dito e escrito o que pensava da utopia soviética. Certa vez, estive debaixo do chuveiro com uma jornalista de esquerda, das mais excitantes, que me afastou de seu corpo com todas suas mãos e um argumento imperativo: "sinto por ti atração física e intelectual, pena que não afinamos ideologicamente". Assim eram aqueles dias.

Um pouco antes da queda do muro de Berlim, em visita a Dom Pedrito, fui visitar um dos melhores mestres que já tive, o professor Hugo Brenner de Macedo. Entre um chimarrão e outro, fui contando o que havia visto nos países do Leste por onde andei, mais o que sabia sobre outros. O professor Hugo me olhava com paciência e ceticismo. Ao final da charla, comentou: "deves receber fortunas fazendo palestras nesse tom mundo afora". Candura de quem não saiu da aldeia: fortuna teria feito se dissesse o contrário, como fortuna fizeram Amado, Neruda, Picasso, Brecht, Sartre e milhares de outros.

domingo, julho 11, 2004
 
JORNALISTAS E CORRUPTOS

Está invadindo o Brasil mais uma dessas tantas superproduções americanas, o Homem-Aranha 2, besteirol oriundo de histórias em quadrinhos para adolescentes. Vem precedido de um importante critério estético, como sói acontecer com tais empulhações: em uma semana faturou sei lá quantos milhões de dólares nos Estados Unidos. Pois este parece ser o critério contemporâneo para a avaliação de um filme. Está em 80 salas em São Paulo e em quase 700 no país todo. Tem recebido páginas inteiras dos jornais.

Você quer saber porque bons filmes merecem algumas linhas - quando merecem - e porque solenes abacaxis recebem páginas inteiras? É simples. Olhe o pé da matéria. Lá está: o jornalista Fulano de Tal viajou a Los Angeles a convite da Columbia Pictures. E só porque o jornalista viajou a cargo de uma produtora ianque, o público nacional acaba engolindo o pior cinema americano.

Não há nisto nenhuma novidade. A crítica cinematográfica da grande imprensa desde há muito se prostituiu. Não passa dia sem que vejamos em algum jornal editoriais ou artigos indignados defendendo a ética do jornalista. Claro que jamais passa pela cabeça do articulista que seus colegas de redação vendem a pena prazerosamente por algumas mordomias. Ora, dirá o jornalista, eu não recebi nenhum vintém para promover nenhum filme, estou apenas informando. Pode ser que não tenha recebido. Recebeu apenas passagens aéreas internacionais, hospedagem em hotéis de primeira linha, excelente gastronomia e mimos outros tais como festas regadas ao melhor champanhe ou scotch. Muito melhor que qualquer jabá em espécie.

Entende-se que um festival de cinema patrocine a viagem de repórteres ou críticos. O jornalista vai ao festival, tem chance de ver filmes que jamais veria se não viajasse, e escreve sobre o que bem entender. Diferente é ter tudo pago para a estréia de um único filme e sentir-se obrigado, na volta, a pagar suas mordomias com uma página inteira de jornal. Os coleguinhas que me desculpem, mas isto se chama corrupção, essa mesma corrupção que seus jornais denunciam com tanta ênfase quando ocorre no campo político ou administrativo. Corrupção que ocorre com a óbvia cumplicidade do editor e da própria chefia do jornal, pois o jornalista por si só não tem cacife para oferecer página inteira às grandes produtoras de abacaxis.

Ao destacar quem patrocina as mordomias do jornalista, os editores parecem estar dando um atestado de honestidade, quando em verdade escancaram sua venalidade. Aos leitores, repassam matéria paga ? e muito bem paga ? disfarçada de reportagem. Como pequenas produções, muitas vezes geniais, não têm recursos para financiar mordomias a críticos, o melhor cinema nos é sonegado. Esta prática corrupta travestida de transparência é o que lhe empurra goela abaixo, caro leitor, o lixo das produtoras ianques.

Mas não sejamos cruéis com nossa crítica corrupta. Em outras áreas do jornalismo é também considerado normal que o jornalista venda sua opinião. Particularmente nos cadernos de turismo. Outro dia volto ao assunto.

sábado, julho 10, 2004
 
GRANDES POEMAS GAÚCHOS

ORACIÓN

Serafin J. Garcia


Tata Dios: yo no dudo que siás juerte;
que gobernés vos solo tierra y cielo;
que a tu mandao se apague'l rejucilo
y se amanse'l más potro de los vientos.

No dudo que haygas hecho esas estreyas
que sirven de candiles a los sueños,
y p'aliviar el luto de las noches
priendas la luna en su reboso negro.

No dudo que siás vos el que le puso
al colmiyo'e la víbora el veneno;
el que afiló las uñas de los tigres
y le dio juersa'l pico de los cuervos...

Pero dudo'e tu amor y tu justicia,
pues si juera verdá que sos tan güeno
no te hubieras yevao aqueya vida
qu'era pa mí más grande que tu cielo.

Vos sabés, Tata Dios, cómo la quise.
Eya jué'l sol que amaneció en mi pecho.
Por eya tuvo primavera mi alma
y echaron alas mis mejores sueños.

Eya era linda como las mañanas
cuando dispiertan yenas de gorjeos;
alegre como el ruido'e las colmenas;
graciosa como el'unco'e los esteros.

¡Y era tan güena, Tata Dios!... ¡Tan güena!
Nunca un rencor se cubijó en su pecho.
Pa tuitos tuvo corasón sin trancas
rebosao de ternuras y de afetos.

Y creyó siempre'n vos: tuitas las noches
s'endulsaba en su boca el Padre Nuestro,
mientras su almita'e pájaro aletiaba
ofertándose entera en cada reso.

¡Y tuviste coraje pa matarla!
¿No pensaste que yo tamién juí güeno,
que no meresco este dolor que sangra
la herida siempre viva'e su ricuerdo!

¿Cómo no viá dudar de tu justicia?
¿Cómo viá crer que tengas sentimiento
si vos, provalecido de tu juersa,
nos quitás siempre lo que más queremos?

¿Pa qué nos diste corasón, entonce'?
¿Pa qué nos esigís que siamos güenos,
si nos encariñás con este mundo
y en él ponés nomás que sufrimientos?

¿Cres que consuela tu promesa'e gloria?
Si aquí and'hemos nacido, ande queremos,
nos negás el derecho'e ser dichosos,
¡no sé pa qué nos va'servir tu cielo!

segunda-feira, julho 05, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XIX)


Andei mais tarde por Berlim Oriental e contei o que vi em minha coluna na extinta Folha da Manhã. Manifestei minha perplexidade ante o muro, de sinistra memória. Tentei traduzir ao leitor o ar fedorento que se respirava, mal se saía da outra Alemanha. O medo estampado nos rostos, olhares sem esperança alguma, por toda parte cinzento e desolação. Soube que uma alta instância do PC gaúcho queixou-se na Rua da Praia, de que era um absurdo a Caldas Júnior estar publicando aquilo tudo, particularmente por uma razão: eu estava observando os fatos in loco, e portanto falava com autoridade. Até hoje meus amigos preferem não declinar-me o nome deste senhor.

Em 1985, o especialista por excelência em Assuntos para a (ex) Alemanha Oriental nas Letras Jurídicas Gaúchas, o Dr. Antonio Pinheiro Machado Netto, ilustre membro da Ordem dos Advogados do Brasil, ousou publicar pela L&PM uma plaquete intitulada O Muro de Berlim: muro da vergonha ou da paz?, onde assegurava que só existia uma possibilidade de união entre as duas Alemanhas: ela ocorrerá, dizia o arguto analista, quando a Alemanha Ocidental for também socialista. E ainda posava de defensor dos direitos humanos.

Dizer que a minha ou a nossa geração era marxista, fale-se de Rio Grande do Sul ou Brasil, América Latina ou Europa, é pecar por omissão. O século XX todo foi marxista. Morto o deus cristão, os órfãos europeus criaram um deus laico, Stalin. Os mais ativos escritores, desde um Gorki ou Maiakovski, a um Brecht ou Sartre, se tornaram arautos ou cúmplices da nova religião. Pois o marxismo foi religião. A fé dos crentes o confirma: sempre definiram como paraíso o que desde 1917 foi um inferno. Tornam-se então compreensíveis as lamúrias de meu desolado amigo. Ele confundia geração com marxismo. Com a derrocada da União Soviética, deduziu que sua geração havia fracassado. Quando na verdade o que afundou foi a mais longa e cruel tirania exercida sobre dezenas de nações durante décadas do século passado.

Se europeus cultos e viajados, como um Sartre ou Kazantzakis, irmãos Webb ou Aragon, se deixaram embalar pela miragem soviética, a ninguém surpreende que os intelectuais de Pindorama - sempre duas ou três décadas a reboque dos modismos europeus - tenham enveredado por esta trilha de muares. Primo inter pares, Jorge Amado, que após editar páginas do jornal nazista Meio-Dia, intuindo que este tipo de fascismo não tinha futuro sequer a curto prazo, jogou suas moedas no stalinismo. A aposta foi oportuníssima: defendendo a tirania urbe et orbi, Amado tornou-se bilionário com seus panfletos em louvor do fascismo eslavo e passou a julgar-se um campeão na luta pela libertação dos povos. O baiano caiu na vida através de Raquel de Queiroz, que por muito tempo usufruiu dos juros de sua militância.

Raros foram os escritores no Brasil - e mesmo na América Latina - a intuir o caráter totalitário e opressivo da nova religião. No Brasil, por exemplo, o primeiro a fazer esta denúncia foi Pagu, a Patrícia Galvão, musa da suposta revolução literária que a USP batizou como modernismo brasileiro. Pagu viveu mais tempo em Moscou que os turistas desejosos de crer na nova fé e, ao voltar, contou o que viu. Pagou o preço de sua audácia. Na prisão, sofreu mais com a tortura mental de seus companheiros de cela que com a polícia do Estado Novo. Deixemos de lado um Gustavo Corção: embora fossem procedentes suas denúncias, lutava em nome de outro totalitarismo, o católico.