¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

terça-feira, dezembro 07, 2004
 
AFFONSO CELSO REDIVIVO


Nos anos 60, minha mãe, professora primária rural, que pouco ou nada entendia dos bastidores da política, queimou não poucos livros meus, como também alguns artigos. Não por censura, mas por medo e amor ao filho. Dona Clotilde não foi exceção. Naqueles dias conturbados, muitas mães tomaram as mesmas providências. A polícia política adotava, na época, a estratégia estúpida de procurar livros que pregassem ou sugerissem socialismo ou comunismo. E quem os tivesse passava maus momentos até explicar porque os tinha. Naqueles dias foi apreendido até O Vermelho e o Negro, de Stendhal. Se tinha vermelho no título, por certo era subversivo. Este zelo de analfabetos fez a festa das esquerdas, que passaram a qualificar os militares como trogloditas. E em boa parte tinham razão.

Ao começar a cronicar diariamente em Porto Alegre, fiz uma assinatura para a dona Clotilde de meu jornal, para que acompanhasse as andanças do rebento. Certa vez, assustada, escreveu-me: "filho, por que não falas de flores? Há flores tão lindas no Brasil".

Ocorria que minha coluna não era de botânica. Até hoje me comove esta intenção ingênua de minha mãe. Já não me comove a visão nada ingênua do Supremo Apedeuta, apedeuta mas vivaldino. Nesta quinta-feira passada, Lula se queixava de que a televisão só divulga desgraça. Segundo a Folha de S. Paulo, disse que os brasileiros têm o costume de mostrar apenas as desgraças do país. "Nós permitimos que só as desgraças apareçam e não apresentamos as virtudes, sem negar as desgraças que existem", declarou. Mais uma vez, acometeu-lhe a providencial amnésia: parece ter esquecido que em seus dias de oposição, só via desgraças nos governos vigentes e virtudes nenhumas.

De acordo com Lula, a violência joga contra o Brasil quando o assunto é vender o país no exterior. "Não precisa negar isso, mas temos de mostrar as coisas boas também". Pretenderá voltar ao regime dos militares, que só exibiam coisas muito boas, boníssimas aliás, nas embaixadas e consulados do mundo? Mulatas deslumbrantes, de glúteos generosos, Corcovado e Pão de Açúcar, mulatas de novo, futebol e vitórias-régias, Pelé e Garrincha, mais mulatas, coqueirais, sombra, água fresca, Sete Quedas e de novo mulatas. Era o que Brasil tinha de melhor, então, na visão dos militares e do Itamaraty.

Lula também criticou as emissoras de TV: "Se a pessoa ficar apenas assistindo à televisão, vai achar que no Nordeste só tem seca, no Rio só tem violência e em São Paulo só tem seqüestro. Então a pessoa fica em casa e viaja o Brasil inteiro pela televisão. Temos que colocar as coisas boas". Bem que podia ressuscitar os documentários do Jean Manzon, que quando filmava a caatinga era capaz de transplantar até mesmo um cacto, para o fundo de barro rachado de um açude seco, para melhor compor sua imagem do país.

Em seguida, Lula voltou a citar o Nordeste, região onde nasceu. "As pessoas só vêem as notícias do Nordeste pela miséria: ou quando tem muita seca, e aí a gente vê gado morrendo e as pessoas carregando latas de água na cabeça, ou quando tem enchente, e aí vê pessoas morrendo afogadas. Ou seja, entre a seca e a enchente não existe nada. Mas tem sim, tem praias maravilhosas, recantos históricos, cidades belíssimas. É isso que precisamos divulgar".

Não sei se o Supremo Apedeuta leu o conde Affonso Celso. Se não leu aquela cartilha clássica, Porque me ufano de meu país, mesmo ignorando-a quer ressuscitá-la. Affonso Celso, em época em que não havia televisão para mostrar-lhe os horrores que horrorizam o presidente, invasões de terra, tiroteios em favelas, crianças abandonadas nas ruas, capitais deterioradas pela incúria de seus administradores, podia dar-se ao luxo de louvar o Amazonas, "uma das maravilhas da natureza, o maior rio do mundo. Uma de suas ilhas, a de Marajó, excede em tamanho a Suíça. O rio luta contra o oceano: vence-o".

Ou a cachoeira de Paulo Affonso: "os americanos do norte têm immenso orgulho da sua cataracta do Niágara, que Chateaubriand qualificou - uma columna d?água do dilúvio. O Brazil possue uma maravilha igual, sinão superior, - a cachoeira de Paulo Affonso. Encontra-se nesta tudo quanto naquella encanta, apavora e maravilha".

Ou as nossas celebérrimas florestas: "Nas matas virgens do Brazil - que occupam espaço igual ao de vastos Estados, reside um dos espetáculos mais augustos da creação. Sobrelevam o oceano em mysterio, em diversidade de panoramas, em excesso de vida, em magnificência que, ao mesmo tempo, acabrunham a intelligencia humana e a arrebatam, acentuando-lhe a idéia das forças superiores regedoras do planeta (...) Todos os sentidos ficam ahí extasiados. Gozam todos os nossos instinctos artísticos. Com effeito, deparam-se-nos na floresta brazileira primores de architectura, de esculptura, de musica, de pintura, e, sobretudo, de divina poesia.?

Isso sem falar nos nobres predicados nacionais, a saber: sentimento de independência, hospitalidade, affeição á ordem, á paz, ao melhoramento, paciência e resignação, doçura, longanimidade, desintesse, escrúpulo no cumprimento das obrigações contrahidas. "Julgar-se-hia desairado quem, no interior, allegasse prescripção de dívida". Honradez no desempenho de funcções públicas ou particulares. E por aí vai.

A televisão brasileira está renunciando a estes instantes de divina poesia, para mostrar índios estuprando mulheres, bugres trucidando garimpeiros. Em vez das magníficas cataractas que o Senhor nos concedeu, a televisão fala sôbolos rios que em quinze minutos de chuva, quais oueds no Sahara, tornam São Paulo uma Veneza tropical. Em vez dos "nobres predicados nacionais", senadores ladrões, deputados e juízes venais, funcionários desviando dinheiro do Erário para contas em paraísos fiscais, policiais corruptos, máfias controlando cidades, bandidos seqüestrando velhos e crianças, Igreja e Ongs defendendo criminosos.

O neo-Affonso Celso, confortavelmente instalado na Ilha da Fantasia, certamente há muito não vê nada disso. Seus aspones provavelmente lhe fornecem, todas as manhãs, clippings ad usum delphim. Tanto que, nesta mesma semana, disse que estamos vivendo num mar de rosas. Para que atribular o Sumo Mandatário com essas micharias do dia-a-dia nacional?

Por que raios então a televisão não nos mostra flores? Por que nossos jornalistas não se inspiram naquela saudosa imprensa da China e União Soviética do século passado, que só mostrava grandes feitos, belos números, soberbos discursos de autoridades e notícias das "manhãs que cantam"?

Há algo errado em nossa imprensa - e é para isso que aponta o presidente. Urge levá-la ao rumo certo, torná-la mais sensível às rosas que ornam nosso mar. Como diria Dona Clotilde: porque vocês não falam de flores? Se naquela pequena ilha chamada Cuba os jornalistas já descobriram esta pauta, porque não o fariam seus colegas brasileiros, neste país abençoado onde motivos para ufanar-se é o que menos falta?