¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

Powered by Blogger

 Subscribe in a reader

quinta-feira, novembro 04, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXXIV)


Minha primeira inadaptação na Folha de São Paulo é que eu fora contratado como redator e, afinal, para esta função fiz o concurso. Mas detesto ser redator. É ofício muito honroso, exige alta capacitação e agilidade e tive grande apreço pelos meus colegas de redação. O problema é que não me sinto muito bem na pele de redator. O redator redige, não escreve. Revisa textos alheios, põem-nos em boa forma, titula e só. O espaço que tive na Folha para escrever era curto. Mas o problema não era este, e sim certas práticas que me faziam mal à saúde. Vou citar apenas uma.

Guerra da Iugoslávia, nos dias de independência da Croácia. Eu trabalhava na editoria de Internacional. Nosso correspondente responsável pelo Leste europeu mandava suas matérias de Berlim, que isso de cobrir guerras no front é muito arriscado. Por volta das três horas da tarde, começava a enviar seus despachos, a partir do noticiário dos jornais da manhã. Isto é, os jornais haviam sido redigidos ontem, os fatos ocorridos anteontem e o leitor brasileiro os leria amanhã, com pelo menos três dias de atraso. As agências noticiosas, mais ágeis, nos enviavam notícias fresquinhas.

A nós, redatores, cabia substituir o lead da reportagem por material mais quente. Lá pelas cinco da tarde, o despacho enviado caíra para o pé do texto. Quando o correspondente informava que os iugoslavos planejavam um ataque, nós já tínhamos os alvos destruídos e os aviões de volta às bases. A cobertura da guerra, em verdade, era feita da redação na alameda Barão de Limeira, em São Paulo. Que, de certa forma, estava mais próxima dos fatos que o correspondente na Alemanha. Muitas vezes não sobrava sequer uma linha do despacho original. O texto todo era redigido na redação. Mas a matéria saía assinada por Fernando Gabeira, "enviado especial". Que deveria sentir-se muito surpreso se lesse sua matéria publicada, falando de fatos dos quais ele, o suposto autor do texto, nunca ouvira falar.

Mais ainda: o Gabeira jamais soube onde colocar um acento. Seus textos eram uma tortura para qualquer redator, precisavam ser corrigidos palavra a palavra. Mas sua matéria assinada saía no dia seguinte, corretíssima e atualizada. Ora, estas coisas machucam. É duro para um profissional dar o melhor de si mesmo e ver seu trabalho assinado por um analfabeto. Por vezes, o correspondente assumia essa característica que, até agora, só a Deus foi conferida: a onipresença. O redator ia costurando os comunicados sobre a repercussão nas capitais de cada país e os inseria no corpo da notícia. O efeito era no mínimo curioso: o correspondente estava não só no campo de batalha, mas ao mesmo tempo em Washington, Paris, Londres e Moscou.

Já nos primeiros meses de redação, comecei a vomitar. Todos os dias. Não era exatamente vômito, eram arcadas de vômito sem vômito algum. Sempre pela manhã, lá pelas dez ou onze, quando começa a preparar-me para enfrentar a redação. As arcadas eram tão violentas, que cheguei a pensar, quando ocorreram pela primeira vez, em edema de glote. Consultei médicos, alergologistas e clínicos gerais, e nada feito. Após um ano e meio de trabalho, tirei férias e fui para Paris. Passou tudo. A cura era então Paris? Podia ser, mas saía muito cara. Na volta, estava demitido. Não tive arcadas. Aí fui trabalhar no Estadão. Trabalhei quase um ano, sem problema algum. Voltei então para a Folha. As arcadas recomeçaram na hora. Passei lá acho que quase um ano mais, agüentando como podia as náuseas. Até que não deu mais.

Aconteceu em função do Chile. Deram-me um artigo de Clóvis Rossi para pôr na medida. Segundo o articulista, a prosperidade do Chile era obra do Patrício Aylwin. Fiz minha tarefa e saí da Folha acometido pelas arcadas de vômito. Desta vez, pra valer. Jamais tive carro e sempre voltava a pé para casa. Às duas da madrugada, eu estava me segurando a um poste da avenida São João para não cair, tentando controlar minhas convulsões. Não dava pra continuar mais na Folha. Consultei minha mulher e decidi por pedir demissão. No dia seguinte, não vomitava mais.

Tentando analisar estas minhas reações físicas ao jornal, concluí que a obrigação de redigir textos que me indignavam, a impotência ante esta obrigação, o fato de sentir que eu aperfeiçoava textos que seriam assinados por um outro, tudo isto me levava à náusea. Prova disto é que as arcadas cessaram - pela segunda vez - tão logo me afastei da Folha. É claro que se minha condição não fosse a de redator, mas de articulista que escreve o que bem entende e assina embaixo, eu não reagiria assim. Ocorre que articulista de grande jornal não escreve exatamente o que bem entende. Ou ele tem intuição suficiente para seguir a linha do jornal, ou acaba dançando.

Ou seja, a censura é muito sutil. Em todo caso, vivi um episódio interessante. Foi em 93. A União Soviética, seguindo a insuspeita previsão de Marx, tomara os rumos anunciados no Manifesto: tudo que é sólido se desmancha no ar. Das agências, recebemos em fim de tarde uma charge de alguma revista internacional: em Moscou, uma velhota russa, com uma cesta vazia no braço, procurava abastecer-se no mercado. No balcão de pães, não havia pães, apenas bombas atômicas em formato de pães. Dei vazão a toda minha verve. Titulei com gosto:

O PÃO QUE MARX AMASSOU

Não é todo o dia que a musa desce num fechamento de jornal. Me pareceu ter ganho com garra meu pão naquele dia. No entanto, estávamos no deadline e o caderno não fora fechado. No computador ao lado, o editor suava a cântaros e gemia como em trabalhos de parto. Pousei em seus ombros como um papagaio e notei que tentava um novo título. Mas o meu não está ótimo? - quis saber. Me olhou indignado. Os minutos corriam e o novo título não dava os ares da graça. Desesperado, o editor retomou o antigo e substituiu uma palavra:

O PÃO QUE STALIN AMASSOU

Assim não vale, protestei. Xingar o Stalin é chutar cachorro morto. Entre nós, só o Niemeyer e o Prestes ainda o cultuavam. Que mais não fosse, não tinha aquele efeito aliterativo, Marx amassou. O Velho, não! - insistia o editor. Para não atrasar o fechamento, optou pela média:

O PÃO QUE LÊNIN AMASSOU

O jornal quase atrasou. Mas o Velho foi salvo.