¡Ay de aquel que navega, el cielo oscuro, por mar no usado
y peligrosa vía, adonde norte o puerto no se ofrece!
Don Quijote, cap. XXXIV

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quinta-feira, julho 15, 2004
 
MEMÓRIAS DE UM EX-ESCRITOR (XXI)


Entre os que escrevem, salvo engano, além deste que vos irrita, só um outro jornalista gaúcho teve topete para denunciar a peste. (Excluo Dom Vicente Scherer, príncipe da Igreja que combatia o marxismo em nome de uma visão medieval de mundo). Vejamos algumas observações deste jornalista sobre o mundo soviético:

Sem qualquer exagero, pode-se dizer que o sistema de granjas coletivas, os chamados kolkhoses, em linhas gerais, significam o produto mais acabado da transposição evolutiva, para a esfera do trabalho agrícola, do mesmo regime aplastrante de exploração do braço trabalhador que impera nas fábricas soviéticas. (...) Pois o que realmente existe na URSS, em matéria de agricultura coletivizada, analisado friamente, sem os antolhos da propaganda comunista, fica reduzido apenas ao azorrague dum contrato leonino, imposto aos camponeses com o mesmo espirito desprezível de rapina que definia o regime feudalista, no qual os donos da terra eram também os senhores absolutos de todos os destinos. A diferença - se isto é diferença - é que, na União Soviética, o único senhor feudal de tierras y haciendas é o próprio Estado, cujo poder e riqueza estão tristemente alicerçados na miséria e na escravidão de imensas legiões de trabalhadores, espoliados nos seus mais elementares direitos e aspirações por uma societas sceleris de oportunistas e charlatães. Ao infeliz mujik que vivia confinado na solidão da isba, vítima da exploração desapiedada do pope e do paizinho czarista, sucedeu o kolkhoziano das granjas coletivas, cruelmente explorado pelos novos potentados do superfabuloso império dos sovietes. A exploração e a prepotência não mudam de nome apenas porque mudaram seus fautores. No caso da União Soviética, a verdade decepcionante é que a opressão e a violência contra a criatura humana jamais poderão atingir aos extremos limites de aviltamento e degradação que o Estado conseguiu impor em pouco mais de 30 anos de experiência bolchevista.

Propositadamente, omiti nome do autor e data destas afirmações. Continuasse a omitir estes dados, elas seriam absolutamente contemporâneas, e mesmo velhos stalinistas como Jürgen Habermas ou Cornelius Castoriadis as assinariam embaixo, com a solenidade de quem acaba de descobrir a América. Acontece que elas foram publicadas em 1954, quando ainda um Jorge Amado acreditava em Stalin, oito anos antes das revelações de Osvaldo Peralva. Foram publicadas no mesmo ano em que Sartre, ao voltar da União Soviética, dava entrevista ao Libération alertando que a França, caso não mudasse de rumos, em cinco anos, no mais tardar, seria ultrapassada pela URSS. A única mudança de rumos, evidentemente, era seguir o caminho do socialismo. As citações supra estão em A Sombra do Kremlin, de Orlando Loureiro, cria de Santa Cruz do Sul. O livro foi editado pela Globo e suas reflexões são decorrentes de uma viagem à ex-União Soviética, nos meses de dezembro de 1952 e janeiro de 1953, ou seja, antes da morte do Paizinho dos Povos. Sartre fez escola. Loureiro, inimigos.

A viagem foi logo após um Congresso dos Povos pela Paz, em Viena, uma dessas reuniões em que os fiéis discípulos de Stalin pregavam a guerra. Neste encontro, entre outras cortesãs internacionais, rodavam a baiana Sartre, Jorge Amado, Pablo Neruda, Louis Aragon. De Viena, Loureiro é selecionado para ir a Moscou. Tem como companheira de comitiva, entre outras personalidades, Maria Della Costa, o que explica em boa parte sua carreira no Brasil. Ela viu de perto a tirania e silenciou. Palmas para a atriz. O mesmo não ocorreu com Loureiro.